Da forma como funciona hoje, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) apenas protege os grandes contribuintes em débito com a Receita Federal. A avaliação é de Cláudio Damasceno, presidente do Sindfisco Nacional, entidade que representa os auditores fiscais.
— Os grandes contribuintes sempre acham uma forma de se proteger nas decisões do Carf.
Ligado ao Ministério da Fazenda, o Carf é uma espécie de “tribunal da Receita”: a última instância administrativa para julgar recursos de contribuintes (empresas ou pessoas físicas) autuados pela Receita Federal. Se perderem seus recursos no Carf, os contribuintes ainda podem recorrer à Justiça para contestar o débito. Já a União, se perder a disputa no Carf, a decisão será definitiva.
São 216 conselheiros que atuam no órgão como julgadores, sendo metade representando a Receita (auditores fiscais concursados) e a outra metade representando os contribuintes (profissionais indicados por confederações e entidades de classe).
Para Damasceno, esse modelo de indicações "paritárias" está "ultrapassado", já que os conselheiros dos contribuintes, que são sempre funcionários “voluntários”, não recebem por sua atuação no Carf, mas trabalham de fato para empresas com interesses privados.
— Essa mistura não é salutar para o processo de julgamento administrativo.
Leia a seguir a entrevista completa:
R7 – A operação Zelotes mostrou que alguns conselheiros tinham contatos dentro de escritórios de advocacia, que por sua vez defendiam empresas com recursos no Carf. Isso é resultado desse modelo de escolha dos conselheiros?
Cláudio Damasceno – Sem dúvida. É um modelo ultrapassado e precisa ser revisto urgentemente. A Operação Zelotes tem que servir para que essa discussão seja feita, e não pode ser de mera perfumaria, mas sim de discutir a essência do próprio Carf, que não faz parte da estrutura da Receita Federal. O Carf é um órgão do Ministério da Fazenda.
R7 – Mas a Receita e a Fazenda têm interesses distintos?
Damasceno – Não. Apenas porque muitas vezes foi dito que o Carf é um órgão da Receita, mas ele é um tribunal apartado da Receita. O Carf possui representantes dos contribuintes e representantes da Fazenda. Como representantes da Fazenda, temos auditores fiscais da Receita Federal do Brasil. Estes se submetem a um processo seletivo rigoroso, de conhecimento e experiência acumulada. E, a partir daí, aprovado nesse processo, é que o auditor da Receita passa a integrar a estrutura do Carf.
R7 – Essa formação paritária do Carf (108 conselheiros representantes da Fazenda e 108 dos contribuintes) garante que os contribuintes e a Fazenda sejam bem representados?
Damasceno – Essa representação atua contra a própria Fazenda pública, e essa é uma das questões que deve ter uma análise aprofundada. Por que se nós olharmos bem, a Fazenda pública já sai perdendo por 3 a 0, porque as turmas são formadas por três representantes dos contribuintes e três representantes da Fazenda.
R7 – Mas então não seria 3 a 3? Por que a Fazenda já sai perdendo de 3 a 0?
Damasceno – Porque, pelo histórico das decisões do Carf, geralmente os conselheiros dos contribuintes atuam de uma forma contrária à Fazenda pública. Não é a regra. Entretanto, é muito difícil ver decisões diferentes. E até um dos conselheiros investigados na Zelotes foi bastante enfático, numa das gravações, que ali “só pega coitadinho”. Os grandes contribuintes sempre acham uma forma de se proteger nas decisões do Carf contra as autuações feitas pela Receita Federal.
R7 – Você é a favor da extinção do Carf ou de uma reforma em sua estrutura?
Damasceno – Se for para manter da forma como está, defendemos a extinção, porque esse modelo está ultrapassado. Esse modelo tem servido tão somente para que os grandes contribuintes tenham mais um instrumento a seu favor. Quando não derrubando os autos de infração lavrados pela Receita, ou reduzindo substancialmente esses valores, mas quando os autos são mantidos, o Carf atua somente como um instrumento protelatório, na medida em que o contribuinte, se perder nessa instância administrativa, ainda pode socorrer à via judicial, iniciando todo o procedimento. Isso faz com que a Fazenda pública seja prejudicada, pois os recursos demoram muito tempo para efetivamente entrarem nos cofres [públicos]. E aí não é só a Fazenda, mas a própria sociedade que fica prejudicada.
Agora, se é para fazer uma reforma, que seja profunda, e que ela venha para blindar a Fazenda pública e a sociedade dessas maquinações que estão sendo desvendadas pela Zelotes.
R7 – Como é o caminho de um auto de infração até chegar ao Carf?
Damasceno – O auto de infração é aplicado por auditores fiscais, responsável por fazer a fiscalização. O contribuinte tem 30 dias para manifestar a impugnação. Se isso acontecer, ele [o auto] é analisado em primeira instância pela Delegacia da Receita Federal de Julgamento (DRJ), essa sim pertencente à Receita Federal — formada por julgadores, todos auditores da Receita, que não possuem ligação direta com o auto de infração. Ele passa por uma primeira instância para fazer essa revisão. Se o auto for mantido na DRJ, o contribuinte tem direito a uma segunda instância, que é o Carf, formado por representantes fiscais e também pelos representantes dos contribuintes. Se esse auto for mantido na segunda instância, não significa que o contribuinte ficará obrigado a recolher a importância à Fazenda Púbica, porque ele ainda tem direito à via judicial, conforme determinado pela Constituição. E lá o processo recomeça do zero.
R7 – Argumenta-se que, se o Carf for extinto, a Justiça comum não teria condições de julgar esses imbróglios. Mas a Justiça então já julga os casos dos contribuintes que perdem os recursos no Carf.
Damasceno – Sim, ela já julga. Dizer que a Justiça Federal não teria condições de fazê-lo é um argumento falacioso, porque ela já faz. O contribuinte cujo auto foi mantido no Carf, ele tem assegurado pela nossa Constituição o direito ao reexame pela Justiça. Então, o fato de o Carf existir ou não, não impede o contribuinte de reiniciar essa discussão na via judicial, e é o que tem acontecido.
Mas o que acontece no Carf é que, se a Fazenda pública perder a decisão, aí já é definitivo. A Fazenda não tem o direito de recorrer à Justiça, porque só o contribuinte tem esse direito.
R7 – E quanto à proposta de os conselheiros serem escolhidos por concurso público?
Damasceno – Ela é importantíssima. Hoje já ocorre um processo seletivo para os conselheiros representantes dos contribuintes indicados pelas entidades, como as confederações. Mas não é um processo que a gente considera seguro, porque a gente entende que um concurso público seria um grande avanço, na medida em que abriria esse leque de oportunidades para todos da sociedade.
R7 – Mas isso não significaria mais uma oportunidade para inchar o Estado, num momento em que se discutem cortes nos gastos públicos?
Damasceno – Não, porque poderia ser uma seleção pública determinando um mandato específico, da mesma forma que é hoje, dando oportunidades a mais pessoas e não criando reservas de ‘mercado’, nem vagas específicas para determinadas confederações ou ramos de atuação, mas sim para toda a sociedade. Não estamos aqui propondo o inchaço da máquina, mas somente a qualificação das vagas que já existem.
Seria interessante também porque o que a gente tem hoje são conselheiros que fazem trabalho voluntário — os conselheiros dos contribuintes, né, porque os conselheiros da Fazenda são todos concursados. Esse “voluntariado” é uma situação que não se sustenta, porque o conselheiro representante do contribuinte tem o cargo de julgador durante o dia e não recebe nenhuma remuneração por isso. E à noite ele retorna para a sua banca advocatícia, porque ele precisa da sua remuneração para sobreviver. Então a gente tem um julgador durante o dia e, à noite, alguém atuando profissionalmente, e essa mistura não é salutar para o processo de julgamento administrativo.
R7 - Hoje existem R$ 531 bilhões de autos de infração em avaliação no Carf. Há um excesso de cobranças?
Damasceno – A Receita Federal tem um processo de atuação, uma inteligência e, decorrente dessa fiscalização, ainda existe todo esse valor. Isso é sinal da expertise e do trabalho especializado da Receita. Esse valor comprova realmente que temos um caminho muito forte no combate à sonegação em nosso País.
R7 - Em 2013 foi sancionada uma lei impedindo os conselheiros de serem processados civil e criminalmente por suas decisões. Essa medida blindou os conselheiros ou serviu para protegê-los?
Damasceno – Foi uma medida que veio para blindar [os conselheiros]. A própria Operação Zelotes mostra que é preciso que os julgadores tenham autonomia, mas não podem ser blindados com relação às responsabilidades de suas decisões. Então, essa lei acabou se mostrando equivocada no sentido de tudo o que está sendo apurado pela Zelotes.
R7 - Essa lei foi sancionada poucos meses após uma série de ações populares questionarem as decisões dos conselheiros. Por que essas denúncias não ganharam atenção na época?
Damasceno – Isso mostra mais uma vez que essas medidas [a lei] são feitas no calor dos acontecimentos, quando elas deveriam ser feitas por um processo de planejamento e de investigação profundo antes de adotá-las. Mas na própria Operação Zelotes houve participação da Receita Federal, por meio de sua equipe de inteligência. A Receita participou desde o início da investigação. Isso mostra que a Receita já vinha acompanhando a questão.