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Texto de Márcio Pimenta, publicado originalmente na Agência Pública
Na década de 80, a cada quinze dias eu cruzava as estradas do Recôncavo Baiano com os meus pais em direção ao sítio onde passávamos o tempo livre. Saindo da capital do estado, Salvador, nos meses de janeiro a março, eu sabia que quando surgisse no ar o odor das queimadas nas plantações de cana de açúcar atravessaríamos a bela Ponte Imperial Dom Pedro II – inaugurada com a presença do próprio imperador – e logo estaríamos em nosso destino. Percorríamos as queimadas das plantações de cana por quilômetros e mais quilômetros e, do carro, eu podia ver dezenas de homens de um vigor que impressionava, todos eles negros e sujos de fuligem, cortando ou carregando grandes troços de cana.
Acima: A expectativa de atividade no trabalho do corte da cana-de-açúcar é similar a que tinham os escravos no período colonial — 12 anosMarcio Pimenta/Agência Pública
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Em janeiro de 2015, eu retornei à região para visitar os meus pais. Da mesma forma que antes, saímos de viagem pelo Recôncavo, e essas imagens imediatamente voltaram à memória. Lá estava a famosa e imponente ponte e alguns quilômetros mais adiante eu pude notar o mesmo odor característico no ar. Até onde meus olhos podiam alcançar, o contraste entre o verde da cana a ser colhida e o cinza das queimadas já realizadas tomava as grandes faixas de terra. E lá estavam os homens; pareciam ser os mesmos que eu observava em minha infância. Decidi seguir viagem, deixar os meus pais em casa e voltar. Estava decidido a conhecer aqueles homens de preto.
Acima: Um canavial após a queimada. Um procedimento para que se dê início ao corte da canaMarcio Pimenta/Agência Pública
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Ao descer do carro, senti a terra queimando sob os meus pés. O relógio marcava 14h37. A temperatura ambiente era de 38°C, mas aparentava ser muito maior. No chão, lascas de cana queimadas eram cortadas por três trabalhadores. Eles estavam cortando cana desde as 5 horas da manhã.
— Não param para o almoço? — pergunto.
— Ganhamos por produção, então é melhor seguir trabalhando direto até as 16h. Depois descansamos e amanhã começamos novamente.
Acima: sozinho, um trabalhador chega a corta 15 toneladas de cana por dia. Isso lhe dá um renda média de R$ 80,00 por diaMarcio Pimenta/Agência Pública
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O período de trabalho varia de 8 a 12 horas diárias. No sistema de ganho por produção têm que cortar cerca de 15 toneladas por dia para ganhar R$ 80,00 de diária. As mortes por exaustão são comuns. Os que trabalham no processo de fumigação são expostos ao glifosato, uma molécula química altamente tóxica presente nos herbicidas já associado ao surgimento de câncer, redução de fertilidade e alterações no feto. São muitos os que adoecem de problemas respiratórios, musculares, lesões nas articulações
Acima: Para evitar maiores temperaturas, o trabalho começa antes mesmo de o Sol nascer. E pode seguir apenas com pequenas pausas até as 16hMarcio Pimenta/Agência Pública
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O Recôncavo parou no tempo. Para o bem e para o mal. Se por um lado estão preservadas as casas históricas, por outro a metodologia de trabalho é similar ao período em que milhares de negros eram trazidos da África para trabalhos forçados nas terras da nova colônia portuguesa. Os trabalhadores que acabo de conhecer são descendentes destes escravos. Na região há muitas comunidades quilombolas — escravos que fugiram do engenho da cana-de-açúcar. E as oportunidades de trabalho que encontram continuam sendo as mesmas daquele tempo.
Acima: Muitos dos cortadores de cana são descendentes de escravos. Os demais, são trabalhadores de outras regiões que se deslocam para tentar obter ganhos rápidos por um curto períodoMarcio Pimenta/Agência Pública
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Os atestados de óbito de cortadores de cana geralmente declaram razões desconhecidas ou parada cardiorrespiratória
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Caminhões são carregados com a cana já cortada
Marcio Pimenta/Agência Pública
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Este é o “kit” básico de um cortador de cana: gancho, facão e protetores para as pernas
Marcio Pimenta/Agência Pública
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No alojamento eles convivem juntos durante o período de corte, aproximadamente 3 meses. Devido a falta de atividades de entretenimento e para suportar o trabalho na cana, muitos refugiam-se nas bebidas alcóolicas. Há casos de brigas entre eles e o uso das ferramentas de trabalho como armas
Marcio Pimenta/Agência Pública
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Aqui, outro alojamento
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Uma empilhadeira cruza um dos corredores entre os canaviais. A atividade mecânica ainda é pouco empregada
Marcio Pimenta/Agência Pública