Bairro em Altamira ainda tem esgoto a céu aberto
Iuri Barcelos/Agência PúblicaLentamente Altamira desperta de seu sonho de barragem. Seis anos após o início das obras, a Usina Hidrelétrica de Belo Monte ainda tem um enorme passivo socioambiental a ser encarado.
O leque de desafios é tão grande quanto o volume de concreto da terceira maior hidrelétrica do planeta.
Do saneamento básico urbano à implementação de planos de atividades produtivas e de vigilância em aldeias indígenas atingidas; da construção de escolas e postos de saúde a problemas nos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), os bairros erguidos pela Norte Energia para reassentar 4 mil das 10 mil famílias removidas pela obra, segundo os números do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e do ISA (Instituto Socioambiental) – a empresa diz que são 8 mil famílias removidas. Foram as más condições dos reassentamentos que motivaram a suspensão da licença de instalação da usina em setembro.
Ao todo são 13 terras indígenas afetadas pelo empreendimento. Essas áreas abrigam um contingente de cerca de 4 mil índios sem contar os que vivem em área urbana em Altamira (pouco menos de mil indígenas no censo de 2010, mas não há estatísticas depois de Belo Monte, quando o crescimento demográfico na cidade se acelerou).
Por ocasião da obra, foram estabelecidas 31 condicionantes com a Funai, além da consolidação do componente indígena do PBA – um plano de mitigação de danos para as populações indígenas afetadas que tem duração de 35 anos. “Hoje nós temos um PBA que já gastou milhões com os indígenas e com os ribeirinhos nada; e os ribeirinhos estão melhores.
Há que se avaliar como chegamos a essa situação”, critica a procuradora Thaís Santi, do Ministério Público Federal (MPF) em Altamira, autora de várias ações judiciais contra a usina, uma delas, ainda não apreciada pela Justiça Federal de Altamira, por etnocídio – assassinato cultural do modo de vida das populações indígenas. Ela entende que as políticas de compensação acabaram causando um impacto ainda maior do que a usina.
De seu lado, a empresa realça a grandeza dos valores investidos na compensação ambiental – mais de R$ 4 bilhões. O valor trouxe ativos para a área de influência da usina, como a construção de três hospitais nos municípios da área de influência direta (Altamira, Anapu e Vitória do Xingu), 30 unidades básicas de saúde e outras 66 obras na área de educação.
A Norte Energia também iniciou a construção da nova sede da Funai na região – hoje um edifício alugado e precário em Altamira – e reforçou o quadro de funcionários do órgão, alvo de cortes em sequência pelo governo federal. “Os índios falam mal porque querem falar, porque pior eles viviam antes. Eles não tinham nada, viviam jogados”, diz a indígena Maria Augusta Borges Xipaia, presidente da Associação Kirinapã, que representa parte dos índios da cidade.
“Através de Belo Monte eles hoje têm voadeira, carro, escola”, afirma, na contramão do que pensam os indígenas nas aldeias afetadas pelo empreendimento ou mesmo em Altamira, como Maria Augusta, mas em situação precária, como constatou a reportagem da Pública.
A Pública conta três histórias de dificuldades relacionadas a Belo Monte – duas em terras indígenas e outra na área urbana de Altamira, onde os moradores do bairro da Lagoa, no Jardim Independente I, lutam para entrar na lista de atingidos pela usina.
O indígena Carlos espera ser indenizado pela Norte Energia
Iuri Barcelos/Agência PúblicaBarragem agravou inundações, dizem moradores da Lagoa
As paredes guardam as marcas da última enchente, que ocorreu em agosto, fora da época de chuvas. O pintor Carlos Alves Moraes, de 52 anos, mostra na régua os níveis que a água atingiu quando entrou nas palafitas. “Ficamos 17 dias morando aqui com os pés embaixo d’água”, relembra.
“Essa daí foi uma que ficou com o pé todo cheio de ferida por causa da água”, diz, apontando para a esposa. Na palafita de dois cômodos, Carlos – indígena Xipaia – se aperta com mais dez pessoas. Os móveis estão todos sobre banquinhos, a única proteção contra o próximo aguaceiro.
A casa está sobre mais de 3 metros de água no bairro Jardim Independente I, um dos últimos na área central de Altamira que ainda têm palafitas (casas suspensas em alagamento perene). Na maior parte da cidade, as habitações suspensas foram desaparecendo conforme as obras avançavam dando lugar aos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs) – os cinco novos bairros construídos pela Norte Energia. Ali residem mais de 3 mil famílias, a grande maioria oriunda de baixões e áreas de alagamento atingidas pela usina.
Carlos morava com a família em uma ilha que ficou abaixo do barramento do rio. Quando os peixes começaram a aparecer mortos na porta de sua casa, ele decidiu se mudar para a cidade. “O único lugar que eu consegui foi aqui na Lagoa por causa do preço, né?”, relata
A insalubridade exala nas palafitas onde residem mais de 500 famílias (46 delas compostas por indígenas) sobre a lagoa, agora um poço de dejetos. Sem nenhum tipo de saneamento básico, o esgoto vai direto para a água embaixo das casas, e o lixo quase chega às portas das pessoas.
Nas bordas da área alagada, a reportagem da Pública avistou uma casa abandonada com cerca de 1 metro de água dentro, transformada em um criadouro de mosquitos. A indígena Maria de Fátima Damasceno Curuaia pede para falar. “Eu peguei dengue e nunca mais fiquei boa do meu pescoço. Começou com uma febre alta e depois foi uma dor se espalhando pelo corpo”, diz a costureira sobre a doença que a deixou um mês de cama. Quase todos os entrevistados na região já haviam contraído dengue, que acabara de matar um jovem.
A comunidade luta para ser reconhecida como mais uma atingida por Belo Monte, o que lhe daria direito à mudança para um dos RUCs ou a uma indenização. As mobilizações começaram após a usina ter recebido a licença de operação (LO) do Ibama, em novembro de 2015, quando os reservatórios começaram a encher. Segundo os moradores, nessa época surgiram minadouros e pontos de água mesmo em imóveis nos quais não havia alagamento na área interna.
“Essa casa que eu tô aqui, ela foi construída em 1982. Na época, não minava água. Hoje entra água na sala, no quarto, na casa toda. E tem um quarto que está afundando. Aqui não alagava nem no inverno”, conta o piloto de voadeira Raimundo Xipaia Curuaia. Ele nos leva até o quarto em questão: o calçamento do piso faz barulho de oco e aparenta ter uma leve curvatura, como se estivesse cedendo. “Aqui nós esperamos a água bater mesmo pra começar a se mobilizar”, afirma.
Os moradores se organizaram com o auxílio do MAB após o bairro vizinho, o Jardim Independente II, ter conseguido a inclusão no reassentamento da Norte Energia. A primeira demanda foi a medição da altura da água – a Norte Energia assumiu o compromisso de reassentar, por risco de alagamento, todos os que viviam abaixo da chamada cota 100 (100 metros acima do nível do mar). Pelas medições da empresa, a Lagoa ficava na cota 102.
Em medição própria, a Agência Nacional de Águas (ANA) confirmou: o bairro da Lagoa estava acima da cota 100. Não convencidos, os moradores exigiram da ANA e da Norte Energia o monitoramento do impacto do enchimento do reservatório da usina no lençol freático. Réguas e poços foram espalhados na comunidade. A medição está sendo feita e deve ser concluída neste ano.
A comunidade procurou também o Ibama exigindo uma solução. A argumentação dos moradores baseia-se em dois pontos. O primeiro é que a própria existência de um bairro de palafitas como a Lagoa descumpre uma condicionante de Belo Monte – prover saneamento básico a toda a cidade de Altamira.
O segundo é a de que a situação do bairro da Lagoa foi agravada por Belo Monte. Os moradores alegam que a alta do aluguel na área urbana, que chegou a triplicar no início das obras, foi o principal motivador da migração que fez crescer a população da Lagoa. Imagens de satélite enviadas ao MPF também constataram o aumento da ocupação no período de construção da usina, fato que transparece na fala dos moradores.
“Eu sou de Belém, cheguei aqui em 2013 para trabalhar na barragem. E todo mundo queria um lugar aqui”, relata Fábio Nunes Magalhães, militante do MAB e morador do Jardim Independente I. “Antes da barragem, você pagava R$ 400 num quarto no centro da cidade e de repente esse valor foi para R$ 2.500, R$ 3 mil. Eram casas destinadas aos encarregados da obra, alugadas pela empresa muitas vezes. O único lugar mais acessível para se morar era aqui na Lagoa”, diz Magalhães.
No fim do ano passado, o Ibama cedeu à argumentação dos moradores e determinou, por ofício, que a Norte Energia fizesse o cadastramento das famílias do Jardim Independente I para averiguar “a temporalidade do afluxo populacional” na Lagoa. No mesmo ofício, o órgão ambiental determinou à empresa que identificasse os ocupantes, a origem das famílias, o tempo e a condição de residência na Lagoa (casa ou palafita) e os motivos que os levaram a morar na comunidade.
O escritório do Ibama em Altamira já havia feito anteriormente um parecer relacionando o aumento da população da Lagoa à obra e à consequente poluição do lago formado pela usina. A Norte Energia chegou a acionar o órgão ambiental judicialmente para não ter de fazer o cadastramento, mas após meses de queda de braço a empresa cedeu.
O cadastramento começou no início de setembro deste ano e deve levar três meses para ser concluído pela Norte Energia. “A gente sabe que é só um primeiro passo, mas estamos tendo esse reconhecimento”, consola-se o pintor Carlos Xipaia. Ele espera ser indenizado em dinheiro, não quer uma casa no RUC Pedral – com muitas vagas ofertadas aos indígenas da cidade.
Um de seus filhos casou-se com uma ribeirinha que recebeu um imóvel em outro RUC, o Casa Nova, e ele conhece os problemas apontados pelos reassentados. “Lá tem só três anos de uso e as paredes já estão rachando, os pisos levantando. Não dá pra confiar nessas casas”, protesta.
Em visita ao reassentamento, a reportagem constatou o revestimento dos pisos soltando, rachaduras nas paredes e infiltrações nas casas e muitas queixas dos moradores.
“O Jardim Independente I ainda está em processo de análise, estamos avaliando se houve impacto ou não”, diz o coordenador do Ibama em Altamira, Roberto Cabral. “O cadastramento das famílias foi um pedido do Ibama. Os dados serão levantados e entregues ao Ibama. O que será feito depois é uma outra análise.”
Envolvido nas mobilizações, o MAB não duvida do impacto da construção da usina sobre a comunidade que vive na Lagoa. “Pra nós, do MAB, ser atingido não é só ter a casa alagada. Como você ignora uma comunidade desse tamanho sem saneamento?”, pergunta Elisa Estronioli, membro da coordenação do movimento. A Norte Energia não respondeu aos questionamentos feitos pela Pública.
Leia a reportagem no site da Pública
O projeto
O projeto “Amazônia Resiste” é uma ampla investigação jornalística da Agência Pública sobre a resistência indígena em vários pontos da maior floresta tropical do mundo.
Sete equipes de reportagem irão retratar até maio de 2018 a partir de vídeos, textos, fotografias, infográficos e podcasts o que acontece em campo no Pará, Mato Grosso e no centro das decisões, Brasília – das aldeias às instâncias de poder relacionadas à realidade indígena.
Os protagonistas desta narrativa são os índios, especialmente a resistência que exercem diante de um quadro completamente desfavorável ao seu modo de vida.