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Tribunal de Contas do Ceará: assentamento foi feito em “condições sub-humanas”

Inspeção no local resultou em representações contra secretaria e construtora

Economia|Ciro Barros e Giulia Afiune, da Agência Pública

Área para onde as famílias foram direcionadas está a 16 km aproximadamente da área urbana do município de Itapipoca
Área para onde as famílias foram direcionadas está a 16 km aproximadamente da área urbana do município de Itapipoca Área para onde as famílias foram direcionadas está a 16 km aproximadamente da área urbana do município de Itapipoca

Pouco mais de um ano após o início do reassentamento das famílias para a agrovila Gameleira, o promotor Glaydson Alexandre, do Ministério Público de Contas do Estado do Ceará, fez uma inspeção no local, a pedido do promotor Igor Pereira Pinheiro, do Ministério Público Estadual da comarca de Trairi, município em que está localizada a agrovila.

O resultado da visita foi uma representação no Tribunal de Contas do Estado contra a SRH (Secretaria de Recursos Hídricos) e contra a EIT, a empresa que construiu o açude e a agrovila. “Como se constata, as famílias assentadas vivem em condições sub-humanas, pela falta da infraestrutura prometida pelo Estado, através da SRH, e não realizada pela empresa contratada, EIT, que acaba por colocar aquelas famílias em situação de miséria, ante a falta de água e energia. Frisa-se que, sem água e energia elétrica, os colonos não podem realizar as suas rotinas básicas e ficam impossibilitados de ganhar alguma renda”, escreveu o promotor na representação de março de 2012.

“É importante ressaltar que, no caso em apreço, é nítida a ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que a SRH e a EIT descumpriram o contrato firmado entre ambos, que culminaria na efetivação de benfeitorias aos colonos assentados. Pior, a SRH não logrou em tornar realidade as promessas (contrato implícito) efetivadas às famílias, deixando-as em condições sub-humanas, ante principalmente a falta de água e energia elétrica para a comunidade Gameleira”, destacou o promotor na mesma peça.

Francisco Venílson dos Santos, de 39 anos, lembra que, logo depois que se mudou, se irritava ao olhar a caixa-d’água, sempre vazia, construída no meio da comunidade. “Eles foram lá, fizeram essa caixa só pra boniteza, só pra ficar bem na foto. Água mesmo não tinha não, e não tem até hoje, ali dentro”, comenta. “Sem luz aqui era horrível. A gente passava muita dificuldade. Cozinhava uma coisa e estragava em seguida porque não tinha onde guardar. Não tinha uma água pra gente decentemente tomar, era ruim demais”, relembra a agricultora Maria Cícera da Silva Santos Arruda.

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Foi quando Paulo Sérgio Alves, o mesmo que está hoje na associação dos moradores, resolveu fazer algo para ajudar a comunidade. “Aí eu conversando com um colega, a gente viu um dia a equipe da Coelce [Companhia Energética do Ceará] mexendo nuns fios. Aí eu virei pra ele falei: ‘Bora arrumar uns fios e vamos colocar um gato’. Não dava mais pra ficar sem luz”, conta, referindo-se à instalação ilegal de luz (o “gato”). Paulo subiu num dos postes da rede elétrica das comunidades próximas e puxou um fio para dentro das casas dos reassentados. “Nas casas que tinha gente, eu consegui colocar em todas. Todas mesmo. Aí a gente conversou aqui e eu pedi pra eles que acendessem só um bicozinho de luz por casa, que não abusasse da energia. Geladeira, essas coisas, não tinha como ligar. Porque, se desse problema, ia tirar a luz de outros moradores que pagavam, né?”, diz.

O “gato” durou mais ou menos nove meses, até que, em janeiro de 2012, a Coelce cortou a gambiarra, como lembra, ainda revoltada, a agricultora Expedita. Moradora da área do Cipó, comunidade à beira do rio Mundaú, ela tocava com o marido um bar na própria casa de taipa em que viviam para complementar a renda familiar. “Lá eu tinha a minha venda, fazia minhas serestas, festinhas de alpendre assim. Eu e meu marido somos agricultores desde que nascemos, mas a gente tinha montado esse negócio pra ver se dava uma rendinha diferente pra gente viver. E tava dando certo. Aí, quando foi pra vir pra cá, nós vendemos tudo. Tive que desfazer tudo pra vir pra cá, tive que vender barato as nossas coisas pra sair rápido. E vendi todas as minhas coisas pela metade do preço: a mesa de som, caixas, DVD, as cadeiras…”, diz. “Foi duro depois ver que eu tinha tido tanta pressa, mas aqui as coisas não estavam nem prontas ainda. Saímos lá do nosso canto pra vir pra cá passar aperreio.”

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Dois meses após a primeira manifestação, o Ministério Público de Contas voltou a criticar a SRH e a EIT em outra representação oficial — a essa altura, em março de 2012, a primeira representação no TCE havia se tornado um processo. Depois de ter analisado a documentação referente ao caso e as explicações da SRH, o promotor Glaydson Alexandre reafirmou que “a comunidade de Gameleira foi exposta a uma situação de total miséria, sem direito sequer a água e a energia. Neste ponto, tal contexto é agravado diante da verificação de que tais famílias detinham, antes da atuação estatal, fonte hídrica e energia elétrica em suas residências, conforme ficou assente no Plano de Reassentamento da Barragem Gameleira”.

A energia da Coelce só veio no fim de 2012, segundo os moradores – quase dois anos após a realização do reassentamento. Foi quando a Superintendência das Obras Hidráulicas (Sohidra) instalou o poço com dessalinizador na comunidade. O processo no TCE ainda não foi apresentado ao pleno do Tribunal para julgamento.

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Banco Mundial: atrasos e problemas

O Banco Mundial também reconheceu que houve atrasos e problemas no processo de reassentamento da Gameleira, no Relatório de Conclusão de Implementação e Resultados do PROGERIRH, publicado em dezembro de 2012. “As famílias foram reassentadas em janeiro de 2011, mas só tiveram acesso a água e energia em dezembro de 2012, apesar das muitas recomendações e alertas dadas pelo Banco em diferentes missões de supervisão em 2011 e 2012. Os atrasos se deram por problemas financeiros de algumas empreiteiras e pela falta de coordenação entre a SRH e a Companhia de Energia”, diz o texto, que não menciona a falta da adutora nem explica que a água disponível vem do poço e é, em sua maior parte, salgada. Os problemas na Gameleira foram um dos fatores que contribuíram para que a avaliação geral do projeto fosse rebaixada para “moderadamente insatisfatória”.

Agricultora Maria Socorro ficou indignada com os valores recebidos como indenização e diz que foi agradada para deixar o local
Agricultora Maria Socorro ficou indignada com os valores recebidos como indenização e diz que foi agradada para deixar o local Agricultora Maria Socorro ficou indignada com os valores recebidos como indenização e diz que foi agradada para deixar o local

Indenização ou “agrado”?

Seguindo um pouco mais pelas estradas vermelhas e pedregosas no meio da caatinga, chegamos ao distrito do Deserto, já no município de Itapipoca. No alpendre de sua casa, o agricultor Antenor David de Araújo, de 36 anos, nos olha curioso e desconfiado. Ele faz parte do grupo dos atingidos pela obra do açude Gameleira que receberam indenização pela casa inundada.

Cerca de cinco anos depois de receber a indenização, Antenor vive em uma casa simples. “Na época eu recebi uma indenização de R$ 7.000”, lembra. “O dinheiro deu pra levantar a casa mal né? Ainda tô pelejando pra terminar”, diz. Ele comenta que estranhou o valor da indenização já na época. “Achei baixa, mas a gente não tinha direito de reclamar nada, né? Porque o que eles diziam é que se pegou, bem, se não pegou, o trator passa por cima e tchau e bença. Era assim que eles diziam pra gente, que a gente tinha que receber”, conta.

Do outro lado da estrada, está a casa da agricultora Maria Socorro, de 50 anos, a quem pergunto se foi uma das indenizadas para a construção do açude Gameleira. “Indenizada não, a gente foi agradado pra poder sair de lá”, faz questão de dizer. Ela era dona de um terreno com algumas casas onde morava com a família. “O engenheiro que fazia a medição dizia ‘vocês têm três casas, vocês vão ganhar um dinheiro bom’. Eu acho apenas que ele enganou a gente, ele devia ter dito o valor de quanto era a casa. Como engenheiro ele saberia dizer. Aí, quando veio a indenização, foi R$ 5.000 por casa. E o dinheiro ainda veio no nome do tio do meu marido. Aí deu um trabalho muito grande pra receber, a gente pedia pra liberar o dinheiro e eles não liberavam porque não tava no nome da gente”, relembra. E compara: “Lá a gente tinha uma casa de morada que não era pequena, uma garagem de caminhão que também não era pequena, tinha uma casa com dois compartimentos que era pra gente guardar farinha e outras coisas, tinha curral do gado, tinha casinha de galinha, pé de coqueiro, pé de mamão. O pessoal dizia que tudo ia ser pago, mas quando veio a indenização só foram pagas as casas que a gente morava”, lamenta Maria Socorro.

A agricultora diz que as propriedades foram obtidas com muito sacrifício, o que a fez sofrer mais com a enganação. “Eu já morei numa casa de taipa só com uma porta de entrada e saída. Depois faleceu uma filha minha e eu tive outros filhos, não tinha como ficar lá. Com muita luta, a gente fez outra casinha de taipa já com três quartos. O meu marido é muito trabalhador e muito seguro com dinheiro: levava o povo pra fazer feira de bicicleta e ia ganhando dinheiro, depois comprou um caminhão pra levar mais gente. Aí a gente ficou lá e ele ficou guardando sempre um dinheirinho que dava até a gente conseguir fazer as casas de tijolo lá no Rio do Inácio. Só que aí veio o açude Gameleira e a história da indenização”, relembra com tristeza.

No distrito do Deserto, onde moram Antenor e Maria Socorro, também não há água no açude (só nos distritos urbanos da cidade de Itapipoca). A fonte de água que consomem é um trecho do rio Mundaú, afetado pela seca. “O governo pra onde ele tivesse botado a gente ele podia ter levado a água junto, já que eles tiraram nós de lá onde a gente tava. Eles podem fazer isso, quem não pode fazer isso somos nós. Hoje a gente sofre por água também. Onde eu morava antes tinha água perto, não era água tratada, mas tinha. Se secasse, a gente cavava cacimba. Agora eu tô pedindo socorro aos outros pra me dar água”, conta Maria Socorro.

“Gameleira foi caso atípico”, diz SRH

Francisco Dário de Silva Feitosa, ex-orientador de Célula de Controle Socioambiental da SRH – ele foi exonerado depois das últimas eleições estaduais e aguarda para tomar posse no novo governo –, foi responsável por acompanhar o reassentamento das famílias atingidas pelo açude Gameleira. “O caso do Gameleira foi meio atípico. Tinha um cronograma de conclusão porque a agrovila é feita antes de o açude terminar. Precisávamos tirar todo mundo da bacia, antes de o açude encher. Como deu um problema com a empresa vencedora e tivemos que contratar outra empresa para concluir, a empresa não cumpriu o cronograma de execução para terminar a obra. E atrasou a conclusão porque eles sublocaram a construção da agrovila. Não deu tempo de tirar o pessoal da bacia e levar pra lá com a agrovila concluída”, afirma.

De fato, durante a construção da agrovila, a empreiteira responsável pela obra, a EIT, entrou em recuperação judicial e não pode concluir os serviços. Em agosto de 2011, por determinação judicial, a SRH suspendeu os pagamentos à empreiteira e as obras foram paralisadas em dezembro de 2011, mas as famílias já estavam sendo reassentadas desde janeiro daquele ano.

“A gente reuniu o pessoal e falou que estava acontecendo esse problema na agrovila e demos a eles a opção: ou nós alugamos casas pra vocês morarem, ou vocês vão pra lá faltando a energia e a água. Estava tudo feito com essa parte da energia, mas faltou a Coelce fazer a ligação, demorou muito para eles aprovarem o projeto. Os moradores insistiram para ir pra agrovila”, diz, tentando se justificar.

O presidente da associação de moradores da agrovila Gameleira, Paulo Sérgio, não se lembra do oferecimento de opção por casas alugadas.

Sobre a pobreza e o abandono que vive a agrovila, Francisco Dário Feitosa responde: “Nós tentamos fazer projetos para melhorar a vida deles. Nós falamos com eles e vimos a aptidão de cada um. Nós levamos pra lá curso de corte e costura, bordado, tanto pra ocupar as mulheres como pra ocupar os jovens. Nós contratamos outras secretarias pra fazer esse trabalho, levamos a SDA [Secretaria do Desenvolvimento Agrário], a de Pesca… Nós demos as opções, mas se a pessoa quer continuar ou não costurando, bordando, aí é uma opção dela. Foi feito um curso de bordado, corte e costura, hortaliça, castanha… Nós tentamos desenvolver a agrovila”, argumenta. Quanto ao posto de saúde em ruínas e os demais equipamentos públicos jamais entregues, o ex-funcionário afirma que as obras foram repassadas à prefeitura de Trairi e que não eram responsabilidade da secretaria.

O mesmo argumento se repete à pergunta sobre a falta de um projeto de irrigação para as roças dos moradores da agrovila. “A obrigação da irrigação não é nossa, é de outra secretaria. Nossa obrigação era pegar as pessoas impactadas pela obra e dar condições de eles continuarem a vida deles”, afirma. E diz que as pessoas que não ficaram satisfeitas com as indenizações deveriam ter optado pela via judicial. “Nós temos um valor em tabela que é definido dentro da SRH e depois publicado no Diário Oficial para consulta. Aqueles proprietários que não concordarem com o valor, entram na justiça. Temos muito poucas contestações judiciais”, insiste.

Procurado, o Banco Mundial afirmou que “acompanhou de perto a situação da agrovila Gameleira” e que fez as três últimas visitas ao local entre setembro e dezembro de 2012. Segundo a instituição, “essas missões concluíram que o suprimento de água para a comunidade era adequado àquela época, tanto em termos de quantidade como de qualidade”. Eles ainda afirmam que “embora a adutora fosse a primeira opção prevista no plano de reassentamento para o suprimento de água para a comunidade, o governo do Ceará decidiu substituir essa opção pelo poço. Em seguida, o Banco supervisionou essa alternativa por um ano e concluiu que o suprimento de água era adequado”. A afirmação de que a adutora foi substituída pelo poço contrasta com a versão da SRH e com o próprio Diário Oficial do Ceará, onde todas as etapas da licitação da adutora foram publicadas.

Mesmos financiadores, mesmos problemas

Prosseguindo a viagem pelo sertão do Ceará, constata-se que o caso de Gameleira não é tão “atípico” como disse o ex-funcionário. Os moradores atingidos pelo açude Aracoiaba, cerca de 200 km de Itapipoca, também não foram protegidos pelas salvaguardas do Banco Mundial. Indenizações baixas, agrovilas incompletas, falta de diálogo eficiente com o poder público: o enredo é o mesmo. E esse açude foi concluído bem antes de Gameleira, em dezembro de 2002, durante a primeira etapa do Progerirh, ao custo de cerca de R$ 14 milhões. Ali foram atingidas 608 famílias – 333 moravam no local e perderam todas as suas terras ou parte delas, segundo dados da própria SRH.

A família da agricultora Vanderléia Aparecida Maciel da Costa vivia havia três gerações em um lugar que desapareceu embaixo das águas do açude. “O açude mudou tudo”, lembra. “A indenização foi muito injusta pras famílias, foi pago R$ 5.000 por casa. A casa que a gente construiu depois a gente não conseguiu fazer com esse dinheiro, tivemos que nos desfazer de terras, pés de fruteiras, gado, porque com R$ 5.000 você não faz uma casa.” Os reassentados passaram também por um período de privação de água. “Eles diziam que o projeto da barragem, do açude Aracoiaba, era para a acumulação de água pra população mesmo. Mas nós passamos cinco anos sem ter essa água na nossa casa. Era só com jumento, carro de mão, pra ir buscar onde desse”, conta.

Mas, se as carências desse reassentamento não serviram de alerta nem ao Banco Mundial nem ao governo do Ceará, a mobilização dos assentados de Aracoiaba — amparados pelo MAB (Movimento de Atingidos por Barragem), uma articulação nacional entre as comunidades afetadas – serve de exemplo para os assentados de Gameleira.

Em 2004, após uma marcha de 100 km e uma semana de duração entre a cidade vizinha, Baturité, e a capital Fortaleza, os moradores atingidos pelo açude Aracoiaba começaram a ver suas reivindicações atendidas. “A partir daí as coisas começaram a andar: saiu a água que a gente não tinha antes, cestas básicas, projetos produtivos pras famílias, como o Projeto São José [que também conta com financiamento do Banco Mundial]… A gente só não esperava que ia ter que lutar tanto pra conseguir as coisas. Eles disseram que iam dar tudo que a gente tinha antes, mas não foi isso que aconteceu durante um bom tempo”, conta Vanderléia. “Nós só conseguimos os nossos direitos pela luta. Se não fosse a luta, acho que a gente estaria como era no começo. E tem famílias que até hoje lutam na Justiça pra receber indenização”, diz.

“Durante um bom tempo, aqui só vinha água de um açude particular de um fazendeiro aqui de cima da agrovila. E a água que vinha pra gente era muito pouca por dia: 300 litros d’água. Era muito pouco. A minha mulher passava dias e dias sem lavar roupa porque não tinha como”, lembra o agricultor aposentado Antônio Pereira de Abreu, 65 anos, ex-presidente da Isca do açude Aracoiaba. Ele conta que chegou a fazer um “gato” para trazer água até as casas dos moradores. Hoje, porém, as casas da agrovila estão ligadas à rede da Cagece (Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará), garantindo o abastecimento da comunidade.

Alguns problemas semelhantes aos enfrentados pelos assentados de Gameleira, porém, ainda persistem na comunidade de Aracoiaba. “Aqui já tá com catorze anos que a gente não tem documentação das nossas terras. A gente estando com isso em mãos, a gente pode ter a segurança que é da gente. Ainda hoje a gente espera por isso e não tem”, explica o aposentado Antônio.

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