Mutirão de saúde em São Paulo atendeu 116 pessoas de 17 países
Ana Luísa Vieira, do R7O medo da perseguição é um dos fatores que inibem refugiados de diversas nacionalidades a procurar atendimento médico no Brasil e no mundo. É o que afirma Anis Mitri, cardiologista e CEO do CECAM Consultas, Exames e Diagnósticos, rede de clínicas da cidade de São Paulo.
— Outros países, ao fazer política de saúde para refugiados, tomam medidas basicamente para evitar a proliferação doenças infectocontagiosas. Então os refugiados se sentem discriminados por conta disso, sem confiança para procurar um médico. Aqui, muitos têm medo de ter seus dados compartilhados com a Polícia Federal ou com o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados)
O especialista afirma que, no Brasil, os médicos não têm permissão para requerer exames de doenças infectocontagiosas — testes de HIV, tuberculose, gonorreia, etc — em relação a quem acabou de chegar, mas muitos dos refugiados não sabem disso e acabam intimidados na hora de buscar um profissional de saúde.
No início do mês de fevereiro, o R7 acompanhou um mutirão promovido pelo CECAM com diversos serviços de saúde especialmente para os refugiados e solicitantes de refúgio residentes em São Paulo. Além de médicos, enfermeiros e outros profissinais da área, estiveram presentes intérpretes de diversas línguas, para que as consultas e diagnósticos pudessem ser feitos da forma mais clara possível. A maioria dos pacientes atendidos é assistida também pelo Adus, Instituto de Reintegração do Refugiado. O objetivo, segundo Mitri, foi prestar atendimento em relação a enfermidades como diabetes, hipertensão ou risco de infarto — que, às vezes, os recém-chegados no Brasil têm dificuldades para conseguir na rede pública de saúde.
— Eles são obrigados a se retirar de algum lugar e largam família, moradia, todos os bens, emprego e formação. Quando chegam no Brasil, frequentemente, não têm documentos ou como provar o próprio nome. Então, muitos enfrentam obstáculos para serem atendidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Não é que o atendimento seja negado, mas a falta de comprovante de residência, por exemplo, pode gerar dificuldades para agendar uma consulta.
O CEO do CECAM ainda ressalta que, no mutirão, foi realizado um levantamento de doenças clínicas para a elaboração de um projeto de tratamento ao longo do ano. “O objetivo é oferecer todas as consultas que eles precisarem de graça. É a porta de entrada para um sistema de saúde, que não tem nada a ver com buscar doenças infectocontagiosas”, diz o profissional.
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No total, a força-tarefa atendeu 116 pessoas de 17 países. 22% apresentaram doenças crônicas e voltarão à rede de clínicas para tratamento. Das 40 que passaram pelo dentista, 38 já marcaram retorno. Uma delas é o nigeriano Nicholas Obetta, que tem 48 anos. Não acostumado a ingerir alimentos com açúcar em sua terra natal, Obetta desenvolveu cáries depois de mudar para o Brasil, há aproximadamente dois anos: “Vim por conta dos conflitos religiosos no meu país. Lá, os cristãos têm sido perseguidos pelos extremistas islâmicos”, conta.
Nicholas Obetta, da Nigéria, que desenvolveu problemas nos dentes depois de mudar para o Brasil
Ana Luísa Vieira, do R7Questões psicológicas
É inevitável que a saída forçada de zonas de guerra também traga complicações para a saúde mental dos imigrantes. Bárbara de Pádua, coordenadora de Saúde Mental do Adus, esteve presente no mutirão para conversar sobre atendimento psicológico aos recém-chegados no Brasil. À reportagem, a profissional contou que o Adus oferece, de forma gratuita, sessões individuais e oficinas com participantes de diversas nacionalidades. Embora problemas como depressão e estresse sejam recorrentes, a especialista afirma que os atendimentos não acontecem simples e unicamente com o objetivo de detectar transtornos mentais.
— A gente sempre tenta lembrar que o fato de o refugiado ter se retirado de algum país não significa que ele vá desenvolver algum transtorno mental ou psicológico. Na verdade, são poucos os que desenvolvem. O que oferecemos é um espaço onde a pessoa possa ser escutada, onde o sofrimento dela, o estresse, vai ser ouvido, sem necessidade de um diagnóstico imediato.
Desafios na rede pública
De acordo com o Conare, órgão ligado ao Ministério da Justiça, o Brasil abriga hoje quase 9 mil refugiados de 79 nacionalidades. Na teoria, todos têm direito de ser atendidos e inclusive receber todas as vacinas pelo SUS, segundo Luiz Fernando Godinho, porta-voz brasileiro do ACNUR, Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados.
— O acesso ao SUS é garantido pela lei brasileira de refúgio. Então hoje, o estrangeiro reconhecido como refugiado ou mesmo solicitante de refúgio tem direito a atendimento médico na rede pública de saúde. Isso é uma grande conquista e que coloca a lei brasileira em posição bastante avançada em termos de refúgio.
O que acontece, de acordo com Godinho, é que, na rede pública, os refugiados esbarram em obstáculos enfrentados também pelos brasileiros: "Se tem fila, o refugiado tem que enfrentar fila. Se não há medicamentos, ele fica sem medicamentos. São dificuldades que enfrentam todas as pessoas que buscam o SUS, não somente os refugiados", diz. O porta-voz do ACNUR ainda afirma que é possível que os refugiados sejam prejudicados por problemas restritos a determinados postos de saúde.
—É óbvio que há problemas específicos. Muitas vezes há um problema de comunicação e não existe um entendimento por parte do agente público de que um estrangeiro ou refugiado tenha acesso ao serviço que o SUS está oferecendo para a população. São questões pontuais que nós procuramos contornar à medida em que elas aparecem.
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Maria Cristina Morelli, coordenadora do Centro de Referência para Refugiados da Caritas Arquidiocesana de São Paulo, reforça o coro: “Os refugiados têm direitos, mas não privilégios”, afirma. Por outro lado, Maria Cristina explica que a língua ainda é uma barreira a ser transposta, já que nem todos os profissionais dos serviços públicos — e isso não diz respeito somente ao setor da saúde — se comunicam em inglês, francês ou árabe, por exemplo.
— É um dos maiores problemas que os refugiados têm. Não é em todo lugar que consegue atendê-los com clareza, de forma que eles compreendam o que as pessoas dizem e elas entendam as necessidades deles. Há dificuldades desde a portaria do serviço até o próprio atendimento com o médico, porque não é sempre que você encontra um profissional que saiba falar inglês.
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