Paula durante sua estadia no norte da Síria: 'é uma situação muito difícil de aceitar'
Arquivo pessoalA Guerra da Síria, que completou sete anos de duração na quinta-feira (15), não causa apenas morte e destruição. O próprio futuro do país está comprometido, com uma geração que só conhece conflito e traumas que levarão décadas para ser superados.
A psiquiatra paulista Paula Orsi esteve na Síria em dois momentos. Ela esteve em Aleppo, na Síria, em 2015, e voltou ao país em setembro de 2017 para passar quatro meses no norte do país, atendendo aos refugiados no campo de Ain Issa.
Voluntária do Médico Sem Fronteiras, Paula já esteve em diversas zonas de guerra, para dar apoio psicológico e avaliar os traumas a que os moradores estão submetidos.
Em entrevista ao R7, ela relata os problemas que viu e a falta de perspectiva para o povo.
Chegada à Síria
'As pessoas perderam tudo, de modo drástico'
Reuters/Bassam Khabieh/ 8.3.2018— Eu cheguei lá para fazer uma avaliação da condição de saúde mental das pessoas e ver as necessidades. No primeiro dia, já deu para perceber uma situação catastrófica. Eu visitava as tendas, conversava com outros profissionais, fui às escolas que estavam sendo montadas. Nem precisava procurar: só de caminhar entre as tendas, encontrava as pessoas em péssimas condições de saúde mental. Elas são testemunhas de cenas horrorosas, viram pessoas sendo mortas, perderam pais, filhos. Ouviram bombas, perderam casas, todos os bens. É uma população que tinha uma vida normal nas cidades onde morava, casas, empregos, transporte. Perderam tudo de um modo tão drástico e violento que é muito difícil aceitar.
Traumas
— Encontrei muitas pessoas em situação de depressão muito grande, fora as pessoas que desenvolveram síndrome de transtorno pós-traumático. Às vezes a pessoa não precisava nem ouvir um ruído como de avião para tomar susto, bastava algo cair no chção. Muitas pessoas que desenvolveram transtornos e não puderam mais tratar. Me lembrou quando fiz esse trabalho na África, não tinha recursos, pessoas eram acorrentadas porque não têm remédio, pessoas numa apatia muito grande, sentadas na mesma posição há dias. Quadros de quase catatonia, apáticas, abatidas, emagrecidas. Vi uma pessoa morrer de apatia, ela acreditava que seu corpo já tinha morrido, não se alimentava mais e morreu.
Crianças
— Posso ficar enumerando casos o dia todo, especialmente sobre crianças. Elas têm diversas maneiras de lidar com o sofrimento. Muitas regridem, param de fazer coisas que tinham aprendido, como ir ao banheiro, comer sozinhas. Ir ao banheiro à noite sozinhas era um problema. Me chamou muita atenção a repercussão da violência no desenvolvimento. Uma criança de dez anos, que desde os três só conhece a guerra, não conhece outras coisas que não se esconder, ver decapitações, elas acabam brincando disso. Acontece de ameaçar decapitar o irmão, porque é uma perpetuação da guerra.
Violência repercute no desenvolvimento das crianças
Reuters / Bassam Khabieh / 13.3.2018A criança está aprendendo com o mundo ao redor, ela é uma esponja. Foi uma chance de tentar explicar para todas as famílias que eu encontrava, pedir para pensar na banalização da violência. O futuro é incerto, a situação é um desespero completo. Perderam tudo, não são aceitos em outros lugares, estão ilhados em acampamentos onde não recebem necessariamente a ajuda que precisam, não têm perspectiva de futuro.
Sensação de estar no meio do conflito
— Eu acho que, apesar de ter vivido alguns meses num ambiente que exigiu muito da minha saúde física e da minha disposição mental, me sentia bem porque pelo menos estava fazendo alguma coisa. Não é a primeira vez, estive no Iraque duas vezes e uma vez em Mossul quando ainda estava sob ataque. Ouvir as histórias e saber que você não vai poder fazer nada é duro, só dá para tentar plantar uma pequena semente de esperança. Atendi cerca de 200 pacientes e nenhum deles reclamou. Eles agradeciam muito, pelo menos alguém olhava para eles e os ouvia, eles não têm outra opção de atendimento. Não encontrei nenhum outro psiquiatra lá. A locomoção é muito difícil, organizar atendimento também. Era um país que tinha muitos recursos, mas não tem mais pessoas.
Futuro
— Eu acho que é uma pergunta muito difícil. Eu mesmo perguntava isso pra eles, quem está lá consegue dar melhor essa noção. Eles não viam perspectiva para o fim da luta. Muitos sonham em conseguir sair, ir para outro país, como se não se sentissem bem vindos no próprio país. Acho que isso era o mais pesado, sem motivo específico. A situação é tão complexa, são tantos países, tantos interesses envolvidos, não é algo que parece estar perto do fim. Ninguém lá está falando em paz, tudo é pensamento estratégico, não existe perspectiva.
Situação
'Não conseguia pensar em quantas pessoas morreram'
Reuters/Bassam Khabieh/25.2.2018— Pela soma dos aspectos, é a pior situação. Em Mossul eu estive em um hospital de emergência, via quem chegava após bombas, ataques, os casos mais agudos. Na Síria, nunca vi tanta gente ao mesmo tempo numa situação tão delicada. Acho que os pacientes mais agudos nem acabavam sobrevivendo. Não conseguia parar pra pensar em quantas pessoas morreram. Eu só pensava que as pessoas tinham saído de bombardeios, de destruições diárias. Os sobreviventes sempre magros, numa situação realmente de partir o coração, ver as pessoas com suas famílias passando tantas dificuldades.
Suicídios
— A questão do suicídio me chamou a atenção, em nenhum outro lugar na cultura islâmica eu nunca vi tantos casos. Não eram numericamente tantos, porque a religião não permite, mas nunca vi tão forte. Eu não consigo imaginar o futuro lá, entender o que eles podem fazer. A gente vê os bombardeios e não sabe o que acontece depois com as pessoas. É importante saber o que acontece. Condições desumanas, pouca comida, só uma refeição por dia, morando em tendas, faz muito frio, as condições de vida são ruins demais.