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A mitologia na Cracolândia

Os pensadores que discutiam o sexo dos arcanjos viram a incrível troca de endereço da Cracolândia acontecer da noite para o dia e não abriram a boca

Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV

Ué! Os traficantes deram ordens e foram obedecidos para que fosse desocupada a Cracolândia, mudando o degradante endereço para outra concentração? Sucesso no súbito êxodo, via crime organizado, após 22 anos? Traficante pode, fracasso interdisciplinar engole? Por que traficantes conseguem aquilo que foi pintado como impossível por juízes, promotores, psicólogos, psiquiatras, ativistas e palpiteiros em geral?

Porque pensar enclausurado em sarcófago não funciona. Há mais de duas décadas se debate o que gira em torno da putrefata chaga social. Nada se pode fazer, dizem, porque existe o direito de “ir e vir” (?), a decisão de internar-se para tratamento deve ser voluntária e não compulsória, restaurar o quadrilátero da Santa Ifigênia seria higienização desumana.

Nova Cracolândia na praça Princesa Isabel: fuga dos drones em meio à árvores
Nova Cracolândia na praça Princesa Isabel: fuga dos drones em meio à árvores Nova Cracolândia na praça Princesa Isabel: fuga dos drones em meio à árvores

Curiosamente, os pensadores que discutiam o sexo dos arcanjos viram a incrível mudança acontecer da noite para o dia e não abriram a boca. Suas teses foram sepultadas na vala comum do esquecimento. Bem melhor mudar de ideias do que não tê-las. Os traficantes mudaram de ideia, deixaram de ser alvos, fugiram dos drones que captam imagens comprometedoras que levam à prisão e se misturaram com os sem-teto, viventes em barracas da praça Princesa Isabel. Passaram a ser protegidos pelas árvores, que evitam as imagens, e aumentaram a desgraça daqueles que, sem opção, são obrigados a morar nas ruas.

Os teóricos são irritantes. Não percebem que os adictos fazem isso porque, desiludidos da vida, buscam anulação da razão. Drogados, são totalmente incapazes de se autodiscernir. Como um zumbi humano pode escolher entre tratar-se ou não? Como aqueles seres vagantes de olhar perdido, maltrapilhos, que caminham sem destino pelas ruas imundas, podem ajudar a si próprios, buscando uma válvula de escape para a dependência química? O que fazer com aquela multidão, que à semelhança do marinheiro Popeye comendo espinafre, precisam alimentar-se da droga?

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O fracasso, nunca admitido pelos que se dizem entendidos, nos remete a um fato (incontestável) curioso. É que a debandada da ex-Cracolândia se deve a um personagem mitológico. Seu nome: Caronte. A Polícia o utilizou para batizar uma operação permanente, desenvolvida em etapas, para sufocar o fluxo do tráfico. Porque a realidade é ou não é, nada pode ser ou deixar de ser ao mesmo tempo e no mesmo lugar, como diria Aristóteles. E a realidade no shopping do pó a céu aberto é uma só: impera ali a lei da oferta e da procura, isto é, não existe traficante sem usuário – nem usuário sem traficante. Não fujam dessa verdade, sofistas de plantão.

O barqueiro da morte

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Caronte, o mito grego, é filho da noite e da escuridão. Tentou roubar a caixa de Pandora, de onde sairiam todos os males do mundo, e Zeus, o maior entre os deuses do Limpo, castigou-o: tornou-se o responsável pelo transporte, numa balsa, da alma dos mortos.

Cobrava uma moeda, óbolo, para a travessia de um rio, conduzindo a balsa como se fosse um fantasma. O destino era o reino de Hades, onde [os mortos] seriam submetidos a um julgamento que decidia se iriam para um lugar bom, os Campos Elíseos, ou purgariam seus pecados nas profundezas do Tártaro, um dos principais deuses de um mundo inferior.

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Considere-se, aqui, que a mitologia adota um estilo narrativo para que se compreenda o mundo – ingredientes para que se saiba a origem da vida, os modos adotados para viver, as múltiplas aventuras e o desgosto das desventuras.

Sendo assim, a Cracolândia seria uma habitação perfeita para Caronte. É o barqueiro da travessia a partir do submundo. É o barqueiro que poderia retirar o infeliz dali e levá-lo para outro lugar.

A questão é entrar na barca de Caronte. Quer? Não quer? É capaz de escolher? Sem escolha pela razão, não dá. Se prefere vagar sem rumo, não deixa de ser uma opção dos drogados da vida. A realidade, de novo: para sair dali, é preciso querer, pelo menos, ajudar a si próprio. Isso mesmo: ajudar-se.

Caronte cobrava uma taxa para fazer a travessia. No corpo do morto transportado, deveria ser colocada uma moeda sob a língua. Era o preço para atravessar o rio Aquerante, o “rio da dor”. Escapar da Cracolândia é a mesma coisa: a moeda na boca é o que se paga, não por uma pedra de crack, mas pelo ato libertário – sair do domínio dos traficantes, reencontrar raízes para buscá-las, descobrir por experiência própria que aquela vida é o fim do fim. Sem isso, não é possível atravessar as ruas infectas da Cracolândia para um lugar com o mínimo da sonhada decência.

O barqueiro do inferno, ou dos mortos, levava seus passageiros para um lugar onde enfrentariam um julgamento rigoroso e diferente: o coração deles seria pesado numa balança infalível, para ser descoberta a verdade a seu respeito. Se condenado, uma besta iria devorá-lo. Se absolvido, seu corpo seguiria para o paraíso.

Semelhanças nada coincidentes: pesar o indivíduo na balança da verdade é descobrir o que se passa em seu coração. Quer fugir da vida? Quer esquecer a família? Não quer mais a vida em sociedade? Quer deixar para lá um desgosto, uma decepção, está desiludido de tudo e de todos?

Esse vazio existencial necessita de uma terapia, e não apenas de fármacos. Digo isso porque o psiquiatra forense Guido Arturo Palomba escreveu para o Suplemento Cultural da Associação Paulista de Medicina que “a psiquiatria, desde o início do século 21, entrou em modo simplório do ângulo da doutrina”. É uma referência ao “abuso de remédios que assola o mundo ocidental”. Adverte: “A venda de remédios fecha e amarra o paciente nas malditas camisas de força químicas, cerzidas pela psiquiatria atual”. Denuncia: “Remédio psiquiátrico é para doente mental; para o são, ainda que problemático, funciona como veneno”.

Palomba rema contra a maré. A sua balsa não é como a de Caronte. Os devotos da Cracolândia não sabem o que querem nem o que fazem. Concentram-se em bandos. Individualmente, andam como se fossem robôs sem controle, atravessando as ruas sem tomar conhecimento dos carros e obrigando guardas-civis metropolitanos a parar o trânsito para as travessias para lá de perigosas. São enigmas. Não se olha para eles como se deveria. Palpites atrás de palpites, a Cracolândia tem 22 anos de existência. Socialmente lamentável.

Ora ver estrelas...

Curioso que o mito de Caronte é adotado por Dante, em sua A Divina Comédia, na qual o controle do inferno é feito por alguém com olhos de fogo, segundo Virgílio. Michelângelo também interpretou Caronte. O nome dele foi adotado pelo delegado Roberto Monteiro, da 1ª Seccional da Polícia Civil, que organizou em etapas mitológicas a evolução da operação antitráfico.

Lá dentro da Cracolândia, tem de tudo. A ojeriza contra a higiene, por exemplo. Necessidades fisiológicas feitas em plena rua. Bancas de venda de drogas. Imundície. Odor insuportável.

Quando aparece o caminhão para limpar a sujeira com jatos d'água, os funcionários da prefeitura são recebidos a pauladas e pedradas. A Guarda Civil Metropolitana é acionada para urgentes providências de segurança. Se não dá conta, vem o Choque da Polícia Militar.

Caronte, o mitológico, percebeu que suas moedas estavam aquém do que havia sido cobrado. Descobriu que o gatuno que fazia desvios era seu irmão Corante. Afogou-o no rio, as águas ficaram vermelhas. Na Cracolândia, desvios comportamentais são punidos a faca. Testemunhas não estão nem aí. Os farrapos humanos não possuem voz.

Caronte não deixa de oferecer uma proposta interessante: trocar a navegação pelos rios da morte pela navegação das estrelas. Acontece que o mito de Caronte é que ele, como filho da noite e da escuridão, projeta seu nome na Cracolândia como operação policial. Trevas e tudo escuro são os que sempre teorizam e nunca resolvem. Encontrar as estrelas? Difícil, desculpe-me, Olavo Bilac: aqueles que só olham para baixo nunca conseguem contemplá-las nem perceber que brilham.

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