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Como o governador Laudo Natel ficou preso em uma cela

Político não imaginava que, com toda sua discrição, fosse ficar trancado, de maneira vexatória, numa cela da delegacia de Perdizes, em São Paulo

Arquivo Vivo|Do R7 e Percival de Souza

O ex-governador Laudo Natel
O ex-governador Laudo Natel O ex-governador Laudo Natel

Da maneira mais discreta possível, o governador Laudo Natel deixou o Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, para cumprir uma missão secreta no bairro das Perdizes, onde fica o 23º Distrito Policial, na rua Itapicuru. O que ele não poderia imaginar é que toda a sua discrição não evitaria que ele ficasse trancado, de maneira vexatória, numa cela da delegacia. Sim, o governador de São Paulo ficou fechado numa cela, misturado com malfeitores detidos para averiguações.

Mas como Laudo poderia ficar trancafiado num xadrez, se ele era o queridinho dos militares, detentores absolutos do poder no país, mandando e desmandando, que assumiu a chefia do governo paulista após a cassação do então governador Ademar de Barros?

Pois aconteceu e este foi um segredo que ele e a polícia tentaram fizeram de tudo para manter trancado a sete chaves. Fiz de tudo para descobrir. E consegui, certo de que função de jornalista é proteger governados e não governantes.

Eram tempos de coisas imponderáveis. Ademar, o precursor do rouba-mas-faz, entrou na lista negra do governo militar. Seu secretário de Segurança Pública, Cantídio Sampaio, simplesmente fugiu de seu gabinete, recolhendo às pressas o que foi possível, antes que uma tropa da Aeronáutica, comandada por um major, invadisse seu gabinete. Sim, o secretário de Segurança de São Paulo fugiu! O major da FAB sentou-se à sua mesa. No recém-lançado Jornal da Tarde, eu não conseguia compreender direito essas coisas inusitadas. O poder da força bruta era dominante.

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Laudo cumpriu um mandato tampão — corria o ano de 1966 — por oito meses. Continuou queridinho pelos militares, porque para eles nada melhor do que um governador obediente. Ademar colocou uma fortuna superior a 2 milhões de dólares escondida num cofre em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde anos adiante a fortuna seria surrupiada por um grupo guerrilheiro chefiado pelo ex-capitão Carlos Lamarca, com assessoria da dona Dilma, que no futuro seria presidente da República. Numa eleição indireta, Laudo foi “eleito” governador paulista de 1971 a 1975, cumprindo integralmente o mandato.

Essa página dolorida dos anos 70 foi escrita a sangue frio, a sangue quente, lágrimas, mortes, confrontos, desaparecimentos, ideais, utopias, vontades redentoras, inspirações importadas, devaneios e paixões por sonhos de guinadas violentas na sociedade. Verdadeira guerra, bem suja, vencida pelo lado mais forte e depois contada preferencialmente pelos derrotados, invertendo a ordem das narrativas predominantes. 

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A censura era implacável: cortes em filmes, proibições de músicas e peças teatrais e matérias retiradas abruptamente das páginas dos jornais. Estadão e Jornal da Tarde caracterizavam os espaços arbitrariamente em branco, numa forma sutil de protesto. O jornalão com poemas de Camões. O vespertino com receitas culinárias, uma delas com nítida provocação a Laudo Natel: como fazer um “lauto pastel”. Se o cozinheiro levasse à risca as instruções, retiraria do fogão algo de sabor horroroso. Houve quem protestasse. Não contra a censura, mas contra as receitas.

A missão secreta de Laudo Natel naquela noite era insólita. Sua esposa, dona Zilda, a primeira dama nascida em Pirajuí, cidade do cantor Tito Madi, do autor teatral Naum Alves de Souza e do Grupo Escolar Olavo Bilac, onde estudei quando menino, tinha uma afeição especial pelo decorador do Palácio dos Bandeirantes. Terry, delicado, adepto da diversidade, tinha muito bom gosto e tudo fazia com esmero e arte. Cultivava um affair com uma pessoa despreocupada em fazer derrapagens pelo Código Penal. Embora não fosse da pesada, gostava de praticar furtos para ter condições de chegar socialmente pelo menos aos pés do decorador palaciano.

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“Fita Isolante” era o seu apelido. Estava detido na delegacia das Perdizes, no número 80 da rua Itapicuru, e sabe-se lá como conseguiu mandar um recado para Terry, que imediatamente acionou dona Zilda, sua protetora. Era esta a missão de Laudo: libertar “Fita Isolante”, o queridinho de Terry.

A missão não era tão difícil. Naquela época, e como acontece ainda hoje, algumas delegacias fecham suas portas à noite. Sob o pretexto de que possuem pouco movimento, transferem o atendimento ao público para uma delegacia próxima, no caso o 7º Distrito, na Lapa. Como a polícia prendia primeiro para fazer perguntas depois, por toda parte havia detidos para “averiguações”, na forma absoluta de arbítrio, sem precisar dar satisfações a ninguém. Laudo seria, assim, o libertador de “Fita Isolante”. Se a polícia podia prender, ele podia mandar soltar.

Laudo chegou veloz à delegacia de número 23. Foi acompanhado de seu ajudante de ordens, um capitão da Polícia Militar. Então, surpresa para Laudo, como é surpresa para qualquer um hoje: na delegacia não havia delegado e nem investigadores. É como você procurar um hospital onde não exista médico. Não dá mesmo para entender.

A carceragem estava repleta. A Laudo Natel, só interessava um dos presos: “Fita Isolante”. De plantão, apenas o carcereiro, também de apelido esquisito: “Moitinha”. O chefe dele mesmo na carceragem entrou em pânico ao ver o governador frente a frente. Laudo quis entrar na cela imediatamente.

“Moitinha” girou enorme chave na fechadura, Laudo entrou e logo foi conversar com ”Fita Isolante” para saber o que havia acontecido. “Moitinha”, lembrando-se das normas de segurança, fechou a porta novamente. Aí aconteceu a desgraça do carcereiro: a porta travou, ele não conseguiu mais abri-la, embora fizesse inúteis tentativas, ficando desesperado cada vez mais.

Lá fora, no carro do governador estacionado em frente à delegacia, olhando impacientemente para o relógio, o capitão ajudante de ordens foi ficando aflito com a inexplicável demora de Laudo em sair do prédio. Apanhou a sua metralhadora, indispensável numa escolta, e entrou decidido na delegacia. Quando viu o governador trancado numa cela cheia de prisioneiros e o atônito carcereiro sem conseguir balbuciar uma palavra, resolveu agir rapidamente: enfiou o cano da metralhadora num dos vãos entre as grades e deu uma sonora voz de comando:

- Governador de um lado, bandidos do outro!

Estava mesmo difícil naquela noite para Laudo entender alguma coisa. O capitão, arfante, pediu socorro pelo rádio transmissor. O governador está fechado numa cela com bandidos!

O prédio foi cercado pela polícia. “Moitinha” gaguejava. Mas a única coisa que se precisava, naquele momento, era de um bom chaveiro. Demorou-se cerca de meia hora para se encontrar um. Laudo foi libertado. “Fita Isolante” também: saiu da cela, olhado com admiração pelos outros presos, perplexos em ter um VIP misturado entre eles.

Contei tudo isso numa matéria que ocupou uma página. Laudo quis saber como eu consegui a façanha, a polícia também. Nunca revelei. Fonte é fonte, e jornalista tem o dever de preservá-la, mesmo sob forte pressão.

Anos depois, vejo Laudo Natel no restaurante do meu amigo Raimundo, na rua Homem de Melo, por sinal perto da Itapicuru, o grande palco dos acontecimentos. Recebi um recado: eu contaria para ele o segredo da elaboração daquela reportagem?

Respondi negativamente. Acrescentando: nada impediria, no entretanto, que nós jantássemos juntos. O cardápio de Raimundo era bom. Pena que ele tenha encerrado suas atividades.

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