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Morte de Celso Daniel permanece dentro de sombras profundas

O então prefeito de Santo André foi assassinado de maneira surpreendente, numa história que continua cercada de mistérios

Arquivo Vivo|Percival de Souza

Foto de Celso Daniel num painel sobre o caso montado em 2002 em Santo André
Foto de Celso Daniel num painel sobre o caso montado em 2002 em Santo André Foto de Celso Daniel num painel sobre o caso montado em 2002 em Santo André

Dezessete anos depois, completados no mês passado, o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, permanece em sombras tão profundas que a principal delas, conhecida justamente pelo apelido de “Sombra”, levou para o túmulo os segredos que permeiam podres e lama que envolviam a Prefeitura local. Muitos acham que sabem de tudo, na verdade não sabendo de nada, e chegou na hora de você saber quais são os detalhes submersos.

Celso era engenheiro, tinha 50 anos de idade, e foi a uma churrascaria no bairro dos Jardins, em São Paulo, acompanhado do fiel escudeiro Sérgio Gomes da Silva, o “Sombra”. Na volta para o ABC, passavam – num jipe Pajero, da Mitsubishi – pela rua Antonio Bezerra, no Sacomã, quando tudo aconteceu. O carro foi interceptado por bandidos armados, Celso Daniel retirado do carro blindado e levado embora. “Sombra”, que dirigia, embora estivesse armado não resistiu, e acabou se tornando o principal suspeito. O corpo de Celso, perfurado por onze tiros, seria encontrado bem depois, distante dali, em Juquitiba.

Num caso de tamanha repercussão, o que não falta são palpites. Sherlocks e Poirots aparecem por tudo quanto é canto, todos se imaginando donos da chave capaz de decifrar o enigma. O Sherlock de Conan Doyle diz que não existem crimes perfeitos, e sim investigações imperfeitas. O Poirot de Agatha Christie era sutil e perspicaz. Já os palpiteiros mais atrapalham do que colaboram e o resultado é que, ao final da investigação, fica mais fácil é duvidar do que acreditar.

Vamos ao que não se sabe, por oportunismo ou conveniência somados aos fatores político-partidário e ideológicos, que transformaram o caso, em determinados momentos, numa lamentável ópera-bufa.

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Fato primeiro: grandes trambiques infestavam a Prefeitura de Santo André e Celso Daniel, que seria o coordenador da campanha de Lula à Presidência da República, descobriu as falcatruas sobre concessões para empresas de ônibus em transportes coletivos. Esse detalhe abriu um leque próprio para as investigações, que conduziram a um poderoso empresário da região, que chegou a ser preso. O prefeito passou a se tornar absolutamente incômodo para a turba que reverencia ídolos políticos como totens indígenas.

Foi então que algo inusitado aconteceu: a Polícia Federal entrou na investigação, paralela, dada a grande importância do caso. Instalou grampos telefônicos na prefeitura de Santo André, com a devida autorização do juiz-corregedor da Polícia. Fez a gravação de conversas para lá de cabeludas e juntou-as num processo.

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Tudo terrível, de fazer enrubescer a qualquer um. Mas alguém não gostou disso: o juiz federal João Carlos da Rocha Matos, que bem mais tarde seria exonerado do Judiciário por falcatruas múltiplas, entre as quais a venda de sentenças. Que fez o juiz? Argumentou que policiais federais precisavam ter autorização da Justiça Federal para fazer a escuta, e não de um juiz estadual. Pode ser uma firula, data vênia, mas acabou valendo. Ele mandou “desentranhar” o conteúdo da escuta telefônica dos autos, palavrão que significa retirar tudo do processo. E ainda mandou apreender todas as fitas.

Tempos depois, descobriu-se que o juiz estava enrolado em casos gravíssimos, que resultariam na sua expulsão da magistratura (tudo bem, “exoneração” é mais suave). Tão graves os fatos que a sua prisão foi decretada. Então, surpresa: no banheiro do apartamento na praça da República, onde ele morava com a mulher, foram encontradas (e apreendidas) as fitas dos grampos telefônicos na Prefeitura de Santo André.

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Por óbvio que o conteúdo dessas fitas era de vital interesse. O promotor do caso recebeu na sua residência um misterioso envelope amarelo, contendo a degravação das fitas. O pretexto para que elas voltassem aos autos. Afinal, fora dos autos, fora do mundo, dizem os ortodoxos. O advogado de defesa de “Sombra” reclamou: ele não recebia esse tipo de “presente” em casa. Ficou no jus esperneandi, o direito de espernear.

De repente, surgiu um inesperado Sherlock em cena. Achando que a história contada por “Sombra” era falsa, e que os tiros, portanto, poderiam ter sido disparados no Sacomã e não em Juquitiba, o então senador Eduardo Suplicy foi à rua dos fatos e passou a tocar campainhas em torno do número 393, à busca de alguém que pudesse ter ouvido alguma coisa naquela noite. E ainda convidou uma delegada de polícia para acompanhá-lo. Ciente do ridículo, ela caiu fora da empreitada. Claro, não havia nenhuma nova testemunha na rua Antonio Bezerra.

Aliás, essa delegada — Elisabete Sato — estava na ocasião à frente da delegacia nos Jardins, o 78º Distrito Policial. Superintrigante: o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, DHPP, especializada em investigar crimes de autoria desconhecida, chegou à conclusão de que, de fato, Celso Daniel fora assaltado por criminosos comuns, que não perceberam na hora quem era a vítima. Aconteceu então algo inusitado: o promotor do caso mandou às favas o trabalho exaustivo do DHPP e sugeriu que uma delegada de bairro reiniciasse a investigação do caso. Por incrível que pareça, o delegado-geral, chefe da Polícia Civil, Marco Antonio Desgualdo, concordou com a inversão hierárquica, por influências políticas às quais a Polícia costuma submeter-se. Deu no que deu: Sato corroborou, como não poderia deixar de ser, as investigações do DHPP. Mais tarde, ela seria promovida a classe especial e assumiria a diretoria do Departamento.

Enquanto tudo isso acontecia, para minha perplexidade, um irmão de Celso Daniel, que não conversava com ele há mais dez anos, elaborou um roteiro de “investigações” que considerava necessárias para desvendar o caso. Essa foi demais. Fiquei exausto de tanto palpiteiro.

Para aplacar minha angústia, fui ao meu considerado diretor do DHPP, unidade policial que para mim foi uma escola para o jornalismo investigativo. Ali, os policiais partem do nada, um cadáver, para chegar até quem matou. É preciso usar a cabeça. Ter sabedoria, discernimento, intuição. Saber deduzir. Insistir, não desistir. Prestar atenção no detalhe, por mais insignificante que pareça.

O diretor chamou à sua sala todos os delegados que haviam trabalhado no caso Celso Daniel. Entre eles o divisionário de Homicídios, o competente Armando de Oliveira Costa Filho. Colocou-os à minha disposição, “pode perguntar o que quiser”. Perguntei. Muito. Ouvi as respostas. Tirei todas as dúvidas.

Indaguei sobre tudo o que você possa pensar e imaginar. Do carro blindado com portas travadas, mas que “Sombra” abriu (o carro foi periciado), às horripilantes tramoias com as quais Daniel não foi condescendente. Uma pedra no caminho, talvez, mas não a motivação do crime. Futricas pessoais, interessantes como fofoca, não vêm ao caso. Teses que podem fascinar desmoronam diante dos fatos apurados. Segredos trocados no último jantar? Até fui à churrascaria. Nada a ver, os delegados viram até o cardápio e quais foram as bebidas. Nada demais.

Alguém num carro, importado ou não, pode ser abordado na cidade. Exatamente por isso, as investigações sobre latrocínios (matar para roubar) foram transferidas do DHPP para o Deic, que cuida, em especial, de crimes contra o patrimônio. Parece apenas um detalhe, mas o caso Celso Daniel demonstra que não, por mais estranho que possa parecer. A morte dele interessava muito mais aos que estão por aí do que para aqueles que o mataram, inclusive um menor de idade, com os quais já estamos acostumados. Não existe relógio biológico criminal, mas não querem acreditar.

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