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O assassinato de John Lennon

Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV

John Lennon foi morto em 8 de dezembro de 1980
John Lennon foi morto em 8 de dezembro de 1980 John Lennon foi morto em 8 de dezembro de 1980

Imagine todas as pessoas vivendo em paz... Nenhum motivo para matar ou morrer...

John Lennon, aos 40 anos de idade, não poderia imaginar que naquele 8 de dezembro de 1980 seus sonhos poéticos expressos nessa canção pudessem ser destruídos por tiros de revólver calibre 38, em Nova York. Ele faria 80 anos em outubro do ano passado.

Sim, existem assassinos de sonhos. Mark Chapman, nascido em 1955, não era homem de sonhar. Era homem de ceifar, acabar, eliminar. Seu alvo foi Lennon, quando chegava ao edifício Dakota. Chapman sabia muito bem quem queria matar. Espreitou-o, determinado, por motivos que seriam avaliados mais tarde, após o assassinato. Disparou cinco vezes. Antes, chamou Lennon de “mister”. Errou um tiro, acertou quatro, um deles na artéria da aorta.

Foi condenado à prisão perpétua. Uma diferença muito grande entre o que aconteceu com ele e o que aconteceria se estivesse por aqui, no Brasil. Se fosse entre nós, já estaria solto há muito tempo, contemplado por benesses que favorecem os matadores com incrível rapidez, mesmo que o crime praticado tenha sido hediondo – ou seja, repugnante. Exemplos não faltam. Nem preciso citá-los aqui.

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A vida humana é o artigo mais barato do mercado. Você já sabe, conhece-os e sua repulsa coincide com a minha. Exatamente aí está a diferença entre os assassinos brasileiros e Chapman: ele foi condenado à prisão perpétua. Amarga até hoje o crime cometido no presídio de Attica, no estado de Nova York. Pelo menos nisso o assassino de Lennon tinha uma pequena e torta dose de razão: seu sonho, bem diferente do da vítima famosa, era “ficar famoso para sempre”.

Fãs costumam lembrar a morte de Lennon em Nova York
Fãs costumam lembrar a morte de Lennon em Nova York Fãs costumam lembrar a morte de Lennon em Nova York

Chapman escolheu cuidadosamente a arma que iria utilizar: um revólver calibre 38 com munição de projéteis côncavos, que penetram e estilhaçam.

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O que se passa num cérebro como o de Chapman? Os americanos até se interessaram em saber, em investigar para descobrir, mas nada apaga, ao contrário daqui, o ato praticado. Simplesmente porque ele é irreversível. Não há retorno para a cicatriz na alma – a da companheira, a dos amigos, a dos fãs. Lennon e suas letras de músicas inspiradíssimas são lembrados até hoje. O nome de Lennon é lenda. O de Chapman já está mergulhado na vala comum do esquecimento.

O que se poderia encontrar como motivação, elemento detonador, para matar Lennon?

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Não ficaram muitas pistas, a não ser aquelas ocultas no mais profundo do ser. No quarto de hotel onde Chapman morava, foi encontrado um livro. Ao que parece, um livro de cabeceira, lido com avidez e considerado inspirador. É certo que a literatura é o espetáculo das palavras, mas no caso de Chapman os indicadores soaram bem diferentes. O livro favorito do assassino de Lennon era O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye), de J. D. Salinger. Esse livro foi escrito em 1951 e seu personagem central é Holden Caulfield, um adolescente de 16 anos em difícil processo de amadurecimento. Reprovado em quase todas as matérias, ele foi expulso do colégio. Saiu de casa e vivia vagando, até o dinheiro acabar.

Salinger, que assinava suas obras apenas com o sobrenome, precedido por J. D., de Jerome David, viveu recluso, sem contatos e sem dar entrevistas, atitudes consideradas hermeticamente nebulosas, inexplicáveis para um escritor famoso.

O livro 'O Apanhador no Campo de Centeio'
O livro 'O Apanhador no Campo de Centeio' O livro 'O Apanhador no Campo de Centeio'

Salinger não poderia imaginar, como Lennon estimulou numa de suas canções mais apreciadas, mas o personagem central de seu livro foi a chama que alimentou Chapman. Se, de um lado, o título do livro lembrava crianças correndo em campos de centeio, de outro o personagem Holden tinha comportamentos típicos de adolescente, alguns repletos de transtornos, que incluíram uma tentativa de suicídio. Na infância, sofreu abusos.

O livro de Salinger foi encontrado no quarto de hotel onde Chapman estava morando. Já preso, ele disse que “uma grande parte de mim é Holden”. Decifre quem conseguir. O centeio de Salinger é um grão em casca, parecido com cevada e trigo.

Em Imagine, Lennon admitiu: “Você pode dizer que eu sou um sonhador,/mas eu não sou o único”.

Talvez aí esteja a chave do enigma ainda não plenamente diagnosticado. Os sonhos-devaneios de Lennon eram pacifistas. A letra de Imagine gira em torno do amor, força poderosa, redentora e transformadora. As atitudes de Chapman eram de um rebelde adulto que projetou em Lennon um objeto de fixação, obstinação, inveja, ciúme, vontade de ser igualmente famoso. Esse último item foi considerado fascinante por ele.

Uma das razões pelas quais mais se mata no Brasil é justamente essa. Nossa reação a respeito é profundamente contraditória. Admitimos que a vida é nosso bem mais precioso. Aconselhamos que ninguém reaja diante de um assalto justamente para não perdê-la. Ao julgar esse tipo de autor, decidimos ser mais rigorosos com relação aos crimes contra o patrimônio. E somos aritmeticamente, em cálculos punitivos, complacentes com quem mata e inflexíveis com quem rouba. Assim agem nossos julgadores, embora esse conceito de patrimônio dilapidado seja diluído em casos de corrupção, golpes, falcatruas, estelionatos, desvios, vigarices, locupletação ilícita, pilhagem do Erário... Complete a lista como você preferir.

Chapman matando Lennon é fato digno de profundas reflexões. Por exemplo: quanto vale uma vida? A vida do beatle foi ceifada. Qual o preço do seu talento? Quanto vale a vida de Chapman? Todos somos iguais, mas alguns seriam mais iguais do que os outros, como ironizava Orwell?

A balança, ainda esperando calibragem adequada, aguarda uma pesagem justa. Sempre recomendo, como um João Batista urbano clamando no deserto, que, diante da morte por assassinato de um ente querido, tentemos olhar para os olhos dos familiares e amigos das vítimas. É difícil, precisamos baixá-los. A dor é profunda demais e se expande para os círculos mais próximos. O coitado dessa história não é o assassino, e sim o martírio provocado por rastros de sangue.

Há mais, ainda: se o autor projeta no seu alvo algo que ele ambiciona, façamos humanamente os cálculos: quanto tempo a pessoa morta teria de vida? É possível fazer as contas? O que ela produziria para sua família e para a sociedade? Quanto vale a vida de quem mata e quanto vale a vida de quem foi morto?

Imagem de John Lennon em uma exposição na Indonésia
Imagem de John Lennon em uma exposição na Indonésia Imagem de John Lennon em uma exposição na Indonésia

São perguntas sem resposta. Fazemos análises e queremos provas. Prova de autoria e pronto. Aritmética para a pena. Lei para suavizá-la, prevendo “progressões de regime” e benesses para o “bom comportamento”, como se isso não tivesse de ser uma obrigação.

Lennon-Chapman. Chapman-Lennon. Uma vida tirada para sempre. Uma pena punitiva sem fim. Dois pesos. Uma vida sepultada. Uma vida encarcerada. Misericórdia para quem? Chapman? Ou recordações pelas memórias de Lennon? O assassino de mal com a vida? Ou o poeta-cantor que seduzia multidões? Chorar por Chapman? Ou chorar por Lennon?

São angústias do ser humano, não de robôs. A vida não se resume a um processo que descreve matar e morrer. Ou a um inquérito. Julga-se um fato, não uma pessoa. Alguém. Ser, não ser. Eis a shakespeariana questão.

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