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Percival de Souza: O novo Coliseu, modernos gladiadores

O jornalista reflete sobre as questões atuais no sistema de segurança e a Justiça brasileira num ano em que temos eleições

Arquivo Vivo|Percival de Souza

Turistas no Coliseu, em Roma
Turistas no Coliseu, em Roma Turistas no Coliseu, em Roma

ROMA

Ficou pronta a obra de restauração do Coliseu, o antigo anfiteatro Flaviano, ala subterrânea de 52 metros do nível de rua, com acesso para a arena onde gladiadores se enfrentavam até a morte, curvando-se antes curvando-se diante de César: “os que vão morrer te saúdam”. Feras soltas compunham o palco de espetáculos sangrentos, onde cristãos eram supliciados.

Contemplar o Coliseu — de colosso, monumental estátua do bipolar Nero, com 35 metros de altura, erguida à entrada — é imaginar aquelas cenas do passado projetando sombras para o futuro. É um exercício que faço daqui, relembrando o sangue que correu dos mártires e o momento que vivemos no Brasil, com problemas de toda ordem, e muitas expectativas para quando outubro vier: segurança pública, justiça, leis e prisões. É como se o corredor do tempo proporcionasse uma incrível simbiose entre passado e presente, História e contemporaneidade.

Bem que Aristóteles, o pensador grego, filosofou que a lei é o juiz mudo. Aliás, faz parte da filosofia do Direito: a lei é feita para ser interpretada — e como a interpretam em nosso país! — não como reflexo do espelho e sim como a relação que une a planta à semente. Daí o princípio romano "nulla poena sine legis", isto é, "não há pena sem prévia cominação legal". É a interação que faz com que o sistema jurídico vá se alterando pelos tempos, hábitos e costumes, dando à interpretação da lei sentido, alcance e eficácia. Algo que vai muito além do conteúdo gramático ou de vocábulo, que — data vênia — não é monopólio de ninguém.

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O tempora, o mores, ó tempos, ó costumes, exclamava Cícero, o grande tribuno romano, sobre a depravação dos homens de seu tempo. É aqui que nossas angústias se encontram. Você está satisfeito com o sistema de segurança? Com os aparatos policial e judicial? Com o sistema prisional? Como a resposta para essas perguntas é não, vamos refletir. Mas levando em conta coisas que não se costuma dizer, por prudência ou ignorância.

Segurança

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Embora esteja no caput (cabeça) do artigo 144 da nossa Constituição (dever do Estado, direito e responsabilidade de todos), deixou de funcionar e, mais uma vez, vira palanque de candidatos, todos prometendo ações enérgicas e vigorosas. O mantra de sempre atrai votos. A questão é que os responsáveis maiores por isso, em tese, são os secretários estaduais da pasta. A escolha é sempre política, nunca profissional. Um paradoxo. Já assisti a vários encontros entre eles, em Brasília, onde percebi claramente que a maioria nada entende daquilo que deveriam dominar. Como pode? Já tivemos na função generais, coronéis, desembargadores, promotores, advogados. Os militares para assegurar ares de severidade, como se a Polícia dissesse para ela mesma que precisa de um tutor e sozinha não fosse confiável. A rigor, como não são do ramo, os ungidos para o cargo se acercam de gerente do seu relacionamento pessoal, que se tornam na prática os detentores do poder.

Polícia

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Dividida entre civil, militar e federal, está à frente da atividade-fim, destacando-se a última na repressão aos crimes contra a União e as outras na polícia ostensiva e a judiciária, para apuração das infrações penais. Há na Carta Magna, ainda, previsão para mais organizações com missões específicas (rodoviária e ferroviária) e guardas municipais, que em São Paulo são mais de trezentas, preenchendo vácuos das estaduais. A Militar tem suas origens em 1831. A Civil em 1905. As relações entre ambas dependem de ciclos políticos, às vezes turbulentos, quase sempre harmoniosos. Os estilos de atuação vão se modificando. Até porque, em tempos de falsos especialistas no assunto (o que torna certos debates simplesmente inacreditáveis), é forçoso admitir-se que os maiores entendidos na matéria, de fato, são os criminosos: vivem dando passos (largos) à frente, enquanto a chamada persecução penal corre atrás, como se conformada com a desvantagem. Prevenção e repressão, dilemas sem fim e objetos de interpretações de tudo quanto é tipo. A Polícia sempre existirá. Não se trata de querer ou não querer, gostar ou não gostar. É assim e será assim, podendo mudar apenas de figurino. A sociedade é cobaia de experimentos.

O famoso Coliseu, uma das principais atrações turísticas da Itália
O famoso Coliseu, uma das principais atrações turísticas da Itália O famoso Coliseu, uma das principais atrações turísticas da Itália

Justiça

Interliga-se com a Polícia e as políticas de segurança pública. Porque nos casos criminais, ela se baseia nos inquéritos policiais, instaurados para apuração de fatos, para tomar decisões. O sistema é permanentemente discutido, cobrando-se sempre maior rapidez e agilidade, o que não é fácil imprimir ao ritmo dos trabalhos: investigação não tem prazo para terminar e não é matemática ou burocrática; decisões judiciais tomadas com consciência exigem tempo e não são mecânicas, e o número de processos em trâmite é simplesmente absurdo. Para a matança de 60 mil assassinatos por ano no país, o sistema judicial é mais do que flexível, e vulnerável e tolerante. Embora a vida seja o bem mais precioso para o ser humano, implantou-se um admissível sim, matarás que revoga o não matarás do código mosaico (Êxodo 20:13). Quem mata pode responder ao processo em liberdade. No dia marca o para o júri vai ao Fórum e, se condenado, embora a Constituição diga que o júri seja soberano, o detalhe não é pétreo: pode sair pela mesma porta que entrou, e mesmo que a pena tenha sido elevada pode recorrer novamente em liberdade. Lembre-se, aqui, que a expressão máxima da violência é o homicídio. A Justiça, entretanto, não considera assim, valorizando o patrimônio e dando à vida o valor ínfimo de artigo mais barato do mercado. Desse ciclo judicial, fazem parte promotores (além de fiscais da lei, o processo criminal depende deles oferecerem denúncia para existir) e advogados. Realidade prática é que há um exército de assassinos nas ruas, para inconformismo social, e outra legião de matadores que nem sequer foi identificada, pois o número de esclarecimentos dos casos de autoria desconhecida é assustador – menos da metade, só em São Paulo.

Presídios

Transformaram-se em escritórios do crime, eliminando as origens prisionais, século V, quando religiosos ficavam recolhidos em celas para pagar penitências (daí a origem da palavra penitenciária) e assim se regenerar. Isso não mais existe com mais de 70% de reincidência na população carcerária. Facções mandam e desmandam, criaram simulacros de tribunais, que chamam do crime, intimidam, ameaçam, tripudiam, debocham em audiências criminais, chamam as cadeias de “faculdades” (escolas do crime) e executam autoridades e seus agentes. Superlotados, jaulas desumanas e selvagens, obrigam os magistrados a abdicar de aplicar a filosofia da pena, trocando-a por preocupação com lotação, abrindo mão de punir para ajuste de contas com a sociedade. Mas não se pensa muito nisso: presídio é lugar desagradável para frequentar, cheira mal, é repugnante e seus ocupantes raramente são cândidos. Mais cômodo não ver nada disso e quando entrar não olhar para trás e conceder benefícios matemáticos para criminosos.

Gladiadores do século 21

Gladiador é o que manejava o gládio, espada curta para cortar e decepar. Gladiador está presente no palco do Coliseu contemporâneo. Construímos uma arena desse tipo no Brasil e embora você tenha lido alguns dos problemas, que acabamos de resumir, modernos gladiadores se combatem com ardor e furor, ódio e sangue nos olhos, tornando nosso País apenas um detalhe diante de vorazes apetites políticos-ideológicos insaciáveis, onde permeiam desonestidade intelectual, leniência com corrupção endêmica e sistêmica. O diagnóstico lamentavelmente é esse. Cícero clamaria indignado, de novo: ó tempos, ó costumes!

Coliseu modernos, gladiadores modernos, armas modernas. No lugar da espada curta, surgiram, os teclados e áudios das redes e panfletagens de toda ordem, que multiplicam irresponsabilidades, leviandades e mentiras, bem ferozes, aniquilando reputações, eliminando o diálogo e a capacidade de raciocinar, o debate das ideias, os projetos de reconstrução tão necessários para a Pátria. Não é o que precisamos. A confrontação bélica-verbal lembra os trogloditas das cavernas medievais. Sim, mudar as coisas é preciso, com civilidade, respeito, tolerância, compreensão, aceitação.

A segurança pública não pode continuar insegura. A Polícia, na qual todos gostam de mandar, está com figurino defasado. A Justiça está lenta demais nas respostas que a sociedade espera. Os presídios estão dominados. Temos muitos doutores e poucos brasileiros (Eça de Queirós) dando palpites sobre o que não entendem. Dificuldades são janelas de oportunidades para superações e não se consegue resultados diferentes fazendo sempre as mesmas coisas (Einstein).

Os modernos gladiadores estão na arena. Querem eliminar uns aos outros. Novos Césares são os totens ideológicos e políticos diante dos quais se curvam, com obstinação incrível. Dizem que são o povo, diante do qual todo poder emana (Constituição), mas não se curvam diante deles. Outubro está aí. Hora de refletir sobre as questões. Imaginei tudo isso em Roma. Voltei. Imaginei o Coliseu, como se ele pudesse falar. Ou constatei?

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