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Sem internet, radinho de pilha nos informou sobre a caçada a Lamarca

Uma gambiarra ajudou repórteres a acompanhar  o que o exército fazia para tentar capturar o militar que se rebelou contra a ditadura

Arquivo Vivo|Renato Lombardi

Lamarca (primeiro à direita) aparece como procurado em um cartaz
Lamarca (primeiro à direita) aparece como procurado em um cartaz Lamarca (primeiro à direita) aparece como procurado em um cartaz

Carlos Lamarca era capitão do Exército e tinha deserdado em 1969 para se engajar na luta contra a ditadura. Era acusado de comandar roubos a bancos em São Paulo, de formar grupo guerrilheiro, de chefiar o grupo que sequestrou — no Rio de Janeiro — o embaixador suíço no Brasil, Giovanni Bucher, em 1970 (que foi trocado por 70 presos políticos).

Filho de um sapateiro e de uma dona de casa, Lamarca viveu com os sete irmãos até os 17 anos no Morro de São Carlos, no Estácio, Rio de Janeiro. Em 1955 ingressou na Escola Preparatória de Cadetes, em Porto Alegre, e dois anos depois foi transferido para a Academia Militar de Agulhas Negras, em Resende, onde se formou aspirante a oficial. Foi o 46º colocado entre os 57 alunos da turma. Era inteligente, ideias avançadas, e seu primeiro posto foi o Regimento de Infantaria de Quitauna, em Osasco, na Grande São Paulo.

Exímio atirador, representava o então II Exército — hoje Comando Sudeste — em torneios de tiro. Integrou o Batalhão de Suez, nas Forças de Paz da ONU, esteve em Gaza e na Palestina. Na volta, dezoito meses depois, pela pobreza que testemunhara, começou a mudar de comportamento. Escreveu uma carta a amigos dizendo que estava disposto a combater ao lado dos árabes e se encontrava na 6ª Companhia de Polícia do Exército, em Porto Alegre, quando ocorreu o golpe militar de 1964.

Lamarca foi promovido a capitão e transferido em 1965 para Quitaúna, ao lado de Osasco. Suas ideias eram bem diferentes de muitos oficiais e conseguiu dentro do quartel montar um grupo que comungava das suas opiniões contra a ditadura a que o país era submetido. Lamarca atuava como instrutor de tiro para agências bancárias, por indicação do exército, treinando funcionárias para enfrentar os assaltos que vinham sendo praticados pelas organizações de esquerda quando decidiu desertar do Exército.

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Ele e um grupo de militares simpatizantes levaram do 4º Regimento, 63 fuzis, três metralhadoras e munição, passando para a clandestinidade. Meses depois o grupo estava no Vale do Ribeira, próximo a Registro, no Estados de São Paulo. Seu "pelotão" era composto por 17 pessoas entre civis e ex-militares, e passou a ser caçado pelos diversos setores das Forças Armadas — Exército, Aeronáutica, Polícia Militar e policiais civis do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). O encarregado de chefiar a tropa de quase dois mil homens com carros e helicópteros na busca a Lamarca era o então coronel do Exército Antonio Erasmo Dias — que anos depois se tornou secretário da Segurança Pública em São Paulo.

Lamarca dava aulas de tiro para funcionários de bancos
Lamarca dava aulas de tiro para funcionários de bancos Lamarca dava aulas de tiro para funcionários de bancos

Erasmo que pertencia ao Batalhão do Exército, em Santos, bloqueou a rodovia BR-116, que liga São Paulo ao Paraná, na tentativa de evitar que Lamarca deixasse o Vale do Ribeira. Eu trabalhava no jornal O Globo, sucursal de São Paulo, e cobria com outros jornalistas a movimentação das Forças Armadas na caçada a Lamarca.

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Ficávamos muitas vezes confinados num hotel no centro de Registro. Tínhamos pouca informação. Os militares se negavam a falar sobre o trabalho e numa manhã o repórter dos Diários Associados, Daltro da Silva Lima, que dividia o quarto comigo, tentava ouvir o programa de rádio, de Barros de Alencar, pela Tupi, de São Paulo, que transmitia os sucessos da semana.

Havia muito ruído e o jornalista decidiu improvisar para melhorar a qualidade da transmissão. Ligou um pedaço de fio de cobre na pequena antena do rádio de pilha e enrolou na maçaneta da janela do quarto do hotel. O que se ouviu não foi a música de Barros de Alencar mas um som alto e claro de uma voz alertando para o cerco a Lamarca, anunciando a prisão de oito dos guerrilheiros e a possível fuga do ex-capitão. Era o setor de rádio do Exército captado por um pequeno rádio de pilhas: o Spika.

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Com a informação fomos ao gabinete de comando, montado numa grande tenda próximo a estrada e quando dissemos o que sabíamos, Erasmo ficou furioso. Desmentiu e insistiu em saber quem informara o boato. E desde aquele dia, todas as tardes e noites ouvíamos o setor de comunicações do Exército pelo pequeno rádio de pilha. Nós jornalistas nos revezávamos na escuta e foi assim que soubemos da captura de militares, da caça sem sucesso ao ex-capitão e duas semanas depois a espetacular fuga de Lamarca num caminhão do próprio Exército levando soldados como reféns e suas armas.

As Forças Armadas percorreram Registro, Pariquera Açu e bloquearam as estradas de acesso às praias da Ilha do Cardoso. Também ouvimos Erasmo ordenando a seus subordinados que desmontassem toda a operação e, numa rápida entrevista, o militar não confirmou a fuga de Lamarca. Disse que a saída do Vale era rotina e afirmou que iria descobrir o traidor que dava informações aos jornalistas.

Perseguido por mais de dois anos pelos militares, Lamarca acabou sendo localizado e executado no interior da Bahia em 17 de setembro de 1971. Poucos anos depois, já secretário de Segurança, durante uma entrevista para falar do aumento da criminalidade, Erasmo me perguntou novamente quem passava as informações na época da caçada a Lamarca. E eu contei a história do radinho de pilha. Ele duvidou: "conte para outro porque essa eu não engulo", disse. Depois de deixar a Secretaria de Segurança, Erasmo se elegeu deputado federal, depois deputado estadual e, por último, vereador do município de São Paulo. Morreu de câncer, em 2010, aos 85 anos.

Carlos Lamarca foi um dos líderes da luta armada contra a ditadura militar instalada no país em 1964. Fazia parte da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Foi condenado pelo Superior Tribunal Militar como traidor e desertor. Em 2007, trinta e seis anos após sua morte, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, através do então ministro Tarso Genro, dedicou sua sessão inaugural para promovê-lo a coronel do Exército e reconhecer a condição de perseguidos políticos de sua viúva e filhos. Em 2015, os atos da comissão que determinaram o pagamento de indenização, uma pensão equivalente ao posto de general de brigada, para a viúva Maria Lamarca e a promoção ao posto de coronel, foram anulados em decisão de primeira instância, pela Justiça Federal do Rio de Janeiro.

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