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A cultura das armas versus a cultura do viver

Nada me faz crer que armar as pessoas resolverá a natureza humana que não fez a migração à civilidade; há mais variáveis em jogo

Eduardo Olimpio|Do R7

O mundo se abrutalhou rapidamente com o revólver, a pistola, o fuzil/rifle, a carabina e a escopeta saindo do armário
O mundo se abrutalhou rapidamente com o revólver, a pistola, o fuzil/rifle, a carabina e a escopeta saindo do armário O mundo se abrutalhou rapidamente com o revólver, a pistola, o fuzil/rifle, a carabina e a escopeta saindo do armário

Já faz uma década, mais ou menos, que não saio a perambular pelo Brasil em jornadas extensas e prazerosas, desacompanhadas ou não. Paternidade, casamento e trabalho, entre outras vicissitudes, não deveriam tirar a mochila das costas de um singelo aventureiro. Pelo contrário. Até são muito bem-vindas outras cuecas, camisetinhas, biquínis etc., mas esse papo segue outro dia.

Só comecei a divagar sobre saídas longas porque muitas delas eram uma versão menos "raiz", claro, das investidas de outros brasileiros pelo país adentro e afora como as dos irmãos Villas-Bôas, do marechal Rondon, de Luís Carlos Prestes, Guimarães Rosa ou Mário de Andrade, cada um na sua vertente e objetivo. Mesmo muito apequenado entre estes e suas "missões" e grandezas, fui a cantos e matos, montanhas e mares pouco ou nunca d'antes trilhados, subidos e navegados por muitos dos meus amigos, e isso sempre foi motivo de orgulho, besta, claro, mas foi. Cuba, Marrocos e Namíbia, ou o Parque Nacional do Monte Pascoal, me atestam.

Um ar de pioneirismo soprava o meu corpo e a minha bagagem na direção de muitos lugares desérticos, à época sem me preocupar se, ao sair de uma cachoeira, de uma trilha ou de um boteco à beira da estradinha qualquer de terra, daria de cara com alguma pessoa mal-intencionada e, pior, armada. A experiência de vida nascida das molecagens da rua que me deixara descolado para momentos tensos em pontos de ônibus da juventude, tão desérticos e soturnos quanto as quebradas da natureza, bastava para me garantir, supunha.

Não sei o que aconteceu (sei, claro), mas hoje sinto que, com a maturidade, munido de outras pessoas ao redor e uma carcaça nem tão mais ágil assim, por mais atrativos que esses pontos no mapa ainda são, sei não se voltaria a muitos deles. Faço a ideia de como estariam certas latitudes e longitudes e, logo, me vem a questão: estariam seguros para me aventurar hoje como supostamente eu achava alguns anos atrás?

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Independentemente de ser no meio do nada ou de uma avenida movimentadíssima, a sensação que tenho atualmente é que necessariamente estamos, a sociedade, mais acuados pelo perigo do crime instantâneo e, por isso, idiotas. E não somente o do furto, do qual fui por mais de uma vez vítima. Digo do crime praticado a mão armada, mão essa que está mais escorregadia no apertar do gatilho sem temer consequências materiais, espirituais, familiares, sociais ou mesmo as algemas.

Parece que o prazer, o relaxamento e a simbiose descolada da realidade que a natureza proporciona estão mortos. Pode ser o efeito da multiplicação de câmeras espalhadas que flagram cenas violentas. Ou do mundo mesmo como é, que nunca foi puro mas se abrutalhou rapidamente com o revólver, a pistola, o fuzil/rifle, a carabina e a escopeta saindo do armário para se assumirem publicamente ornamentos em pescoços e cinturas.

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Ando vendo a natureza humana no seu maior obscuro esplendor. Clubes de tiro se multiplicando, agentes de segurança adoentados atirando contra civis em estabelecimentos comerciais, pregação escancarada de uma cultura de "liberdade" para "proteger a família e a propriedade" sem lastro, lobbies da indústria de armas envolvendo figuras públicas conhecidas e familiares, ex-ministro da Educação protagonizando disparo acidental de arma de fogo em lugar público, políticos evocando publicamente simulacros de armas com as mãos e dedos, parlamentares em demonstrações de poder atirando em sessão plenária virtual...

O que significa tudo isso, e mais um monte de símbolos e gestos que dariam muito mais laudas do que o razoável permite?

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Para além do slogan bolsonarista que diz que um povo armado jamais será escravizado, já não perdemos a inocência e a liberdade? É salutar à sociedade uma escalada armamentista individualizada e incentivada pelo estado regido por uma Constituição não receptiva a essa conduta? O culto às armas, com frases de efeito e imagens de homens e mulheres fortes, invariavelmente sensualizados pelo atribuído poder que as armas supostamente lhes emprestam, precisa de mais debate. Para qualquer objetivo, não é razoável o lugar em que nos encontramos, qual seja, a anos-luz de um processo civilizatório no qual não há armas matando adolescentes nas portas de casa e nas esquinas por causa de um celular, ou um trabalhador, do campo ou da cidade, tombando no asfalto ou na terra ao defender a féria do pão. Nem para feminicídios.

Quero crer que tenho ainda cavernas, cachoeiras, ruas, avenidas, montanhas, museus, beijos, pipocas, sorrisos e tudo o mais para ser (re)conhecido sem que eu precise encarar um cano metálico a disparar os batimentos do meu coração.

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