Aos 12 anos, Verônica deixou a casa da tia e foi morar em abrigos
Eduardo Enomoto/R7“Sou Verônica Freitas, 26 anos, sou nascida em São Paulo e cheguei aqui após um divórcio. Sou Verônica, tenho capacidade e força para lutar. Então, por que não lutar?”
Assim ela se define. Sentada no sofá localizado logo na entrada do centro de acolhida para mulheres transexuais e travestis, Verônica está maquiada e com um sorriso leve no rosto. O tom de voz é baixo e fala devagar, com delicadeza.
Essa aparência equilibrada contrasta com a história de sua vida e as dificuldades que enfrentou ao longo dos anos. Consciente de que era diferente desde pequena, Verônica conta que as transexuais começam a sofrer preconceito dentro de suas casas e isso acaba influenciando e, por muitas vezes dificultando, o futuro delas.
— Somos hostilizadas dentro da nossa própria casa. Muitas vezes as meninas têm que sair de casa cedo por preconceito e transfobia da família, então acabam indo para a rua sem ter onde morar e nisso elas acabam tendo que se prostituir, ou passar fome, ou acabar ficando em situação degradante. Essas mesmas meninas vão procurar trabalho, mas não conseguem porque não terminaram os estudos. Então como ela pode competir de igual para igual [com outras candidatas]? Essa menina fica sem outra saída.
Verônica foi uma dessas meninas. Órfã de pai e mãe, ela e o irmão mais novo foram morar com uma tia. Dos oito aos 12, ela foi reprimida dentro de casa.
— Não cheguei a ser expulsa, mas acabava espancada [pela tia] por eu ser uma pessoa com a alma feminina presa em um corpo masculino. Eu me via muito mais como menina, tinha comportamento feminino e eu sabia que eu era diferente e para tentar que eu fosse aquilo que eu não era, um rapazinho, ela me agredia e o Conselho Tutelar me colocou em um abrigo
Sem endereço muito fixo — Verônica passou por diversos abrigos — os estudos foram prejudicados. Além disso, sofria preconceito em sala de aula, o que também dificultou seu dia a dia na escola. Quando completou 18 anos, deixou os abrigos e foi trabalhar como faxineira na casa de uma senhora.
— Mas ela não pagou meus direitos, era quase um trabalho escravo. A comida era ruim, não tinha um salário. Sai de lá e corri atrás de trabalho, mas não tinha como porque eu não tinha referência, não tinha um endereço fixo e nem escolaridade.
Para conseguir se sustentar, ela conta que fez de tudo um pouco: desde vender bala no farol a se prostituir.
— Já fiz programa, ganhava dinheiro para me alimentar. Tentava dormir em alguns cantos e isso é difícil, mas achei pessoas que me ajudaram.
Segundo Verônica, o maior desafio para conseguir retomar a vida era a escolaridade. Durante muito tempo, ela frequentava bibliotecas e tentava não deixar os estudos de lado. Hoje, a jovem é beneficiária do programa da prefeitura Transcidadania e recebe uma bolsa de R$ 924 para atividades relacionadas à conclusão da escolaridade básica, preparação para o mundo do trabalho e formação profissional.
Antes de chegar ao centro de acolhida, assim que se separou, Verônica passou mais uma temporada morando na rua.
— O relacionamento era tranquilo, mas o ciúme foi o que definhou. Me proibia de fazer as coisas e eu tinha uma meta, uma necessidade de fazer e eu não podia ficar presa a nada, então terminei. Como tive que sair de casa porque o local era dele, acabei passando dificuldade e fiquei em situação de rua.
Verônica quer terminas os estudos e sonha em fazer faculdade
Eduardo Enomoto/R7Somente depois dessa fase é que Verônica chegou ao abrigo em que está hoje. Com capacidade para 30 mulheres, 20 transexuais vivem no local atualmente, no Bom Retiro, centro de São Paulo. Os quartos são coletivos e as meninas dividem beliches. Todas se alimentam e dormem no abrigo. Além disso, há acompanhamento psicológico e orientação de assistentes sociais para que todas consigam retomar a vida e a independência.
— As travestis são vistas como bonecas, objetos sexuais. A maioria não está na rua se prostituindo porque quer, mas porque são obrigadas. Aqui conseguimos força para sair da prostituição, ter espaço para outras coisas, estudar.
E é o que Verônica tem feito. A jovem está terminando os estudos e fazendo cursos técnicos. Além disso, faz aula de inglês, balé e jiu-jitsu.
— Meu sonho é fazer uma faculdade na área de informática e tecnologia e queria trabalhar nas grandes empresas da área como Microsoft, Google, IBM, Apple.
Fora isso, há uma outra meta na lista da jovem. No papel, ela ainda não é Verônica Freitas.
— Quero tirar o documento. Quando as pessoas veem [o RG] a reação é complicada, mas é porque elas vivem em caixinhas... o mundo seria muito melhor se as pessoas perguntassem como os outros querem ser tratados. Vai ser uma conquista e não só para mim. É ter um direito reconhecido, é uma vitória de todas nós.
O abrigo direcionado às mulheres travestis e transexuais é uma iniciativa da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. O projeto tem investimento de R$ 500 mil. O local está em funcionamento desde março. O serviço é mantido por meio de parceria com a CROPH (Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana).