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Há cerca de um mês, a paisagem na região central de São Paulo foi alterada. Retratos gigantes foram inseridos nas vigas do elevado Costa e Silva, o Minhocão. Idealizado pela fotógrafa gaúcha Raquel Brust, o projeto Giganto tem o objetivo de integrar a população à fotografia.
Os retratos foram feitos após um trabalho de pesquisa e observação, como explica Raquel.
— São moradores ou de prédios da região ou do entorno. Alguns habitam o próprio Minhocão, são moradores de rua, trabalhadores, comerciantes, meninas que trabalham na Rego Freitas. Notei que nessa região existe muito convívio de gente muito diferente uma da outra.
Conheça a seguir as histórias de algumas dessas pessoas
Reportagem: Ana Ignacio, do R7Montagem/Daia Oliver e Eduardo Enomoto/R7
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Stefan Kizima, 92 anos
Stefan Kizima costuma dizer que foi o vento que o levou para São Paulo. Pode ter sido. Mas a paixão pela cidade, principalmente pela região central da capital, fez com que ele se tornasse referência no bairro e se fixasse — literalmente — em um endereço. Rua Doutor Cesário Mota Júnior, 284. O Google Street View não nos deixa mentir. Lá está ele sentado em sua cadeira e apoiado na bengalaDaia Oliver/R7
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O retrato gigante em um dos pilares do Minhocão, a poucos passos dali, também reforça essa presença. No curto caminho até a foto, os elogios são constantes: “está bonito, hein seu Stefan?”. Ele para e responde sorridente. E, enquanto caminha com calma pela região que conhece como ninguém, fala da relação com o bairro.
— Eu sempre gostei do centro. Eu gosto de tudo e de todos aqui! Me lembro até da construção do Minhocão. Eu olhava e pensava “será que vai dar certo?”. E deu!
Nascido na Romênia na década de 1920, Stefan Kizima fugiu do país ainda jovem. A Segunda Guerra Mundial foi o empurrão.
— Com 21 anos fugi da guerra e fui para Áustria, Itália e Israel, onde servi o Exército por dez anos e fui condecorado duas vezesDaia Oliver/R7
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Kizima era soldado técnico em eletrônica. Com orgulho. Mas após uma década de serviço militar, os ventos mudaram.
— Eu e minha mulher viemos para o Brasil. Eu não conhecia o País e o vento me levou para São Paulo em 1958. Cheguei ao Brasil pelo Rio, mas São Paulo é mais liberal.
Na capital paulista, Kizima ficou em um pensão romena localizada na rua Augusta por 30 dias e logo se mudou para o centro de São Paulo, como gosta. E desenvolveu um talento.
— Tinha uma fábrica de confecção. Descobri que sei fazer biquíni de mulher e vendi horrores! Trouxe de fora os modelos e o brasileiro compra bem.
Em São Paulo fez sua vida. Naturalizou-se brasileiro, ficou viúvo, se casou novamente e teve duas filhas que lhe deram quatro netos. Não poderia estar mais satisfeito. Suas raízes ali na rua Cesário Mota, em frente ao bar em que toma café, almoça e janta — sua casa fica em cima do comércio — não poderiam estar mais firmes. Desta vez, vento nenhum deve tirá-las de láDaia Oliver/R7
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Nildes Nery, 46 anos
“Voltar é possível, quer uma carona?”. Com essa frase escrita em uma Kombi branca, o projeto Ação Retorno da ONG presidida por Nildes Nery trabalha na recuperação de dependentes químicos e pessoas em situação de rua. O centro de São Paulo é seu escritório, por assim dizer. Pastora evangélica nascida em Salvador, Nildes é, ainda, auxiliar médica. Em 2005, ela e seu marido foram convidados para morar em São Paulo e liderar uma base da igreja na cidade.
— Foi um desafio vir porque eu não tinha família aqui. Foi um ano querendo voltar, achando que eu estava no lugar errado e vi que eu tinha um propósito em São Paulo. Deus queria que eu cuidasse das pessoas e dessas vidas. Sou uma pessoa bem melhor por estar em São Paulo.
Nildes tem quatro filhos — duas biológicas e dois “de coração”, como ela define.
— Os meninos são adotados, filhos de usuários de crackDaia Oliver/R7
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A ONG trabalha também com grávidas que usam crack. Nildes e sua equipe orientam e conversam com as jovens. Além disso, há uma frente de atuação com garotas de programa.
— A gente conversa, se conhece. Nossa casa é aberta e eu recebo várias pessoas e elas não pedem muita coisa. Às vezes só precisam de uma conversa mesmo.
Apesar de hoje estar adaptada e se sentir “quase uma paulistana”, Nildes acredita que São Paulo é atrativa, mas pode trazer alguns desafios e “riscos” para quem resolve se aventurar pela capital.
— Tem que ter estrutura para vir para cá. Muita gente que está em situação de rua é porque veio sem estrutura. Quer vir, mudar a vida, mas não tem onde ficar, não tem trabalho.
Pode não ser sempre fácil. Mas ao menos essas pessoas podem ter a certeza de que a casa de Nildes estará aberta e de que sua Kombi irá passar pela rua oferecendo uma carona de voltaDaia Oliver/R7
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Willian Chamas, 87 anos
Ele ficou atento aos detalhes técnicos. Talvez até mesmo o ruído das máquinas possam estar em sua memória. Engenheiro, conta em tom didático que as vigas eram levantadas com guindastes.
— Como engenheiro, gostei de acompanhar o levantamento das vigas. Gosto principalmente do detalhe técnico e das melhorias que trouxe para o trânsito. Se já está ruim com, imagina sem o Minhocão? Tinha que fazer um em toda a avenida.
Há mais de 50 anos, Willian Chamas possui uma loja de lustres na rua Major Sertório. Da calçada, já é possível avistar o Minhocão. Para quem queria acompanhar as obras, não havia lugar melhor. Hoje, mesmo com a mudança da paisagem, Chamas gosta do ponto de seu negócio.
— Cada década fica diferente. Adoro essa movimentação!Daia Oliver/R7
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Nascido em Dourado, interior de São Paulo, Chamas se mudou para a capital com seus seis irmãos e os pais na década de 1940. Viúvo há dez anos, tem três filhos e seis netos. Não poderia ser mais orgulhoso.
— Uma [filha] mora em Florianópolis e é arquiteta. Outro, engenheiro, mora em Belém e a outra é veterinária e mora em São Caetano. Todo mundo está resolvendo os problemas do País. Dos netos, uma é pianista e mora em Cuba e tem outro que é jogador de futebol. São os aventureiros da família.
Enquanto isso, Chamas continua em sua aventura particular. Aposentado como engenheiro, se dedica à loja da família. Morador de uma travessa da avenida Paulista, não perde o prazer de ir para o centro. Ali, assim como pode assistir de camarote à construção de um dos símbolos urbanos da cidade, continua observando, atento, o movimento. As novidades das próximas décadas não irão escapar aos seus olhosEduardo Enomoto/R7
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Maria do Socorro Braga Pacheco, 70 anos
Todos os dias, Maria do Socorro Braga Pacheco pega quatro conduções para ir e quatro para voltar do trabalho, no centro de São Paulo. Mas não reclama. A distância, o trânsito e as ruas bloqueadas pelas manifestações recentes que ocorreram em São Paulo não a fazem mudar de ideia.
— Pego quatro conduções enfrentando essa briga toda. Cheguei a ir a pé até a praça da Sé uma vez para pegar a condução porque não estava passando ônibus aqui. Não quero parar de trabalhar porque não sei fazer mais nada. Não sei costurar, cozinhar, fazer crochê, nada.
Na verdade, Socorro não faz nada que a mantenha em casa, em São Bernardo do Campo. O seu negócio é o agito. Até mesmo as belas praias de Recife, sua cidade natal, foram trocadas pelo concreto da capital paulista.
—Não gosto de praia! Eu amo essa cidade. Tudo de bom tem em São Paulo, mas volto para Recife a cada dez anosDaia Oliver/R7
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Secretária aposentada há 19 anos, Socorro trabalha na loja de lustres de Willian Chamas desde 1971. Em São Paulo, chegou há mais de 40 anos.
— Eu fui uma das primeiras passageiras do Metrô. Eu tinha até pouco tempo o bilhete, mas perdi. Lembro do pessoal cavando na praça da Sé para fazer a estação da Sé.
Tanto gosto pela capital paulista não poderia ter resultado em outra coisa. Lá está a foto dela. Vigiando a cidade.
— Foi gratificante pelo amor que eu tenho a São Paulo. Foi um privilégio. A quantidade de pessoas que comentam é muito grande. Até no ponto de ônibus em São Bernardo me reconheceramEduardo Enomoto/R7
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As imagens colocadas no Minhocão fazem parte do festival de fotografia PHotoEspaña.br, realizado em parceria com o Sesc. Desde o dia 23 de outubro, diversas exposições, atividades e palestras relacionadas à fotografia ocorrem em São Paulo. Já o trabalho com fotos gigantes começou bem antes disso, como conta a fotógrafa Raquel Brust.
— O projeto nasceu em 2008 da vontade que eu tinha de tirar a fotografia do molde tradicional, queria que fosse mais ativo, que as pessoas fizessem parte de obra e queria pegar as pessoas de surpresa e inserir no cotidiano delas
Além disso, usar o Minhocão como plataforma foi uma maneira de tornar o trabalho ainda mais simbólico.
— Foi uma resposta a São Paulo. A estrutura urbana da cidade é muito agressiva. Muito trânsito e muita gente. Achei que as pessoas caminhavam meio míopes e sem ver o rosto de ninguém com definição. Acho que partiu desse ponto, de que eu notei que as pessoas não viam umas as outras. Resolvi colocar assim para que elas sejam encaradas e que sintam que estão sendo vistas e que contemplem o próximo para ter um outro tipo de relação com as pessoas
Daia Oliver/R7