"O adolescente de dez anos atrás mudou, é totalmente diferente do jovem de hoje", diz Berenice Giannella
Eduardo Enomoto/R7“Um trabalho que não tem uma fórmula pronta”, é assim que a mulher de ar sereno resume o seu dia a dia. Mas o que ela faz não tem nada de tranquilo. Berenice Giannella é presidente da Fundação Casa há quase dez anos, instituição que abriga adolescentes em conflito com a lei em São Paulo. Em uma posição em que não está livre das críticas, Giannella parece não se abalar e tem respostas para tudo.
Em entrevista ao R7, a procuradora do Estado e ex-secretária adjunta da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo) defende que “uma unidade da Fundação Casa não tem absolutamente nada a ver” com o presídio. Reconhece que o trabalho precisa ser aperfeiçoado, mas ressalta que a organização está mais próxima do que está previsto no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
A presidente comenta também o fato de o roubo ser atualmente o principal ato infracional cometido pelos adolescentes que entram na Fundação Casa, superando o tráfico de drogas.
Sobre as ocorrências de rebeliões e tumultos, Giannella relaciona mais os episódios com o desejo de liberdade dos adolescentes do que a possíveis maus-tratos.
Confira entrevista completa abaixo:
R7: Como a senhora avalia as críticas de que a Fundação Casa não é uma unidade de recuperação de jovens, mas sim uma unidade prisional?
Berenice Giannella: Eu acho que essas críticas são equivocadas. Eu já visitei os dois, já trabalhei nos dois. Uma unidade da fundação não tem absolutamente nada a ver com uma unidade prisional. Não tem a ver com a arquitetura, embora a nossa arquitetura tenha que ter alguma coisa de segurança, mas ela privilegia os espaços de convivência, os dormitórios são pequenos. Nós temos sala de aula, sala de computador, salas para atendimento de psicólogo, assistentes sociais. Do ponto de vista arquitetônico, é completamente diferente de um presídio. São realidades distintas. Em termos de atendimento, há inúmeras diferenças que vão desde a quantidade de alimentação que os jovens recebem. Os meninos aqui têm cinco refeições por dia. Eles passam o dia inteiro fora do quarto. Comparar uma coisa com a outra é só quem desconhece os dois ambientes.
R7: Nada foi importado dos presídios comuns?
Berenice: Não. Na verdade, o que a gente buscou realmente foi implementar o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Qualquer pessoa que tenha frequentado a fundação em 2003, 2004 e 2005 percebe que existe uma diferença muito grande. Você vai dizer o nosso trabalho é ótimo? Não, não é. A gente ainda tem coisas a aperfeiçoar. Temos uma dificuldade de lidar com os adolescentes. Porque esses adolescentes, na maioria, já abandonaram a escola ou são analfabetos funcionais, então você tem que ter uma atenção maior para que retomem os estudos e tem o próprio fator adolescente. Existe esta dificuldade mesmo no dia a dia. O meninos xingam os funcionários, isso tudo faz parte e a gente tem que estar pronto para lidar com esta situação.
R7: Dentre os delitos cometidos pelos internos, o tráfico está em segundo lugar. Como aparece, dentro da fundação, a ligação deles com esse tipo de crime?
Berenice: Primeiro, uma questão que a gente precisa desmitificar é que nós não temos muitos jovens com problema de drogadição. Na verdade, quase 100% dos jovens da fundação já experimentaram drogas antes de entrar aqui, mas pouquíssimos têm um grau de dependência química, a maioria foi mero usuário.
Nós temos muitos que se envolvem com o tráfico porque é uma forma de ascensão social, de aquisição de bens que ele não consegue adquirir com o salário, com o salário da família. Esse jovem, quando entra na fundação, tem uma característica muito própria que se repete: uma origem mais humilde, uma família mais desestruturada, muitos não têm pai, não sabem quem é o pai, foi criado pela mãe, pela avó, a mãe foi presa, o pai tá morto, enfim.
R7: O roubo qualificado superou o tráfico como o ato infracional mais praticado pelos internos que estão na fundação hoje. Isso foi uma inversão recente?
Berenice: Quando eu cheguei aqui, em 2005, o roubo era disparado o primeiro, era mais de 50% dos crimes. Tráfico representava 14%, 15%. Depois, o tráfico foi subindo de forma bastante consistente e, [quando] chegamos em 2011, o tráfico ultrapassou o roubo, especialmente no interior do Estado. A gente viu muitos jovens se envolvendo com o tráfico como um meio de vida. No final de 2013, a gente teve essa inversão e o roubo voltou a ser o primeiro crime praticado por eles. Mas, de qualquer forma, se você somar as duas estatísticas, os dois juntos somam quase 80% dos jovens que estão na fundação.
R7: Na avaliação de vocês, o que provocou essa inversão?
Berenice: Tem duas questões: o tráfico é menos perigoso na cabeça deles, representa um perigo menor, é menos malvisto na sociedade em que ele mora do que o roubo ou qualquer outro crime porque o tráfico está no dia a dia dessas pessoas. Tem muitos jovens que também não querem trabalhar no tráfico porque ele exige uma obediência e uma hierarquia. Em todos os locais, tem o traficante que comanda, tem que trabalhar x horas por dia, fazer esta função, aquela função. Muitos jovens já disseram que preferem roubar porque o roubo lhes dá uma liberdade que o tráfico não dá. No roubo, eles não se submetem a ninguém e dá mais adrenalina, lógico. Você tem o momento do crime, muito mais do que o tráfico.
R7: Quantos internos da fundação cometeram crimes hediondos?
Berenice: Nós temos 60 e poucos por latrocínio, 70 e poucos por homicídio, não são muitos. Se você somar toda a linha de crimes hediondos, tirando o tráfico, que é equiparado a hediondo, mas não é, o que nós temos hoje não chega a 3% da nossa população interna.
R7: Vocês conseguem acompanhar a vida pós Fundação Casa desses jovens?
Berenice: Alguns a gente ainda tem contato, nós estamos agora dentro do governo do Estado, junto com as prefeituras, construindo um programa de apoio ao egresso. O egresso da fundação tem que ser atendido pela assistência social dos municípios. Estamos desenhando com eles um programa para que esses jovens sejam atendidos. Temos muitos casos de sucesso, de jovens que nunca mais se envolveram. Eu sempre digo que o nosso trabalho é 50% do caminho. Os outros 50% dependem dele realmente querer mudar a vida e construir uma nova história para ele.
R7: A senhora tem uma posição em relação à redução da maioridade penal?
Berenice: Eu sou completamente contra a redução porque a gente nota no dia a dia que de fato você está lidando com pessoas imaturas. Essa imaturidade não é as pessoas dizerem assim: “Você acha que ele não sabe que estava matando?”. Lógico que ele sabe que estava matando e que não pode fazer isso. Só que ele não tem ainda mecanismos desenvolvidos o suficiente para brecar esta atuação, exatamente pela questão da impulsividade, dele ser uma pessoa inconsequente, da própria imaturidade dele. Se você tem na vida do indivíduo, a infância, a adolescência e fase a adulta, é evidente que tem que tratar essas fases do ponto de vista criminal de maneiras diferentes. Se eles têm alguma chance de se recuperar, é continuando no sistema socioeducativo. Infelizmente, o sistema prisional no Brasil é muito pior. O Brasil tem uma grande dívida com seus jovens, com as crianças. Eu acho que ele primeiro precisar pagar essa dívida, antes de pensar em mandar esses jovens para a cadeia mais adequada, ao invés de reduzir a maioridade penal.
R7: Existem casos dentro da Fundação Casa de famílias ricas?
Berenice: São poucos, a gente conta nos dedos.
R7: O trabalho dos funcionários dentro da Fundação Casa é monitorado. Existe uma corregedoria para apurar denúncias de maus-tratos?
Berenice: A gente tem câmeras em algumas unidades, não conseguimos colocar em todas ainda. Temos uma corregedoria bastante atuante, vários canais de comunicação de eventos, uma sala que funciona 24 horas por dia, todos os dias, que as pessoas podem ligar e fazer denúncia, nós temos também uma ouvidoria. Recebemos denúncia da defensoria pública, do Ministério Público, de pais e mães, do disque 100. Todas as vezes que estas situações são detectadas, a corregedoria instaura um processo.
R7: O que leva os menores a iniciar um tumulto dentro da fundação?
Berenice: Cada tumulto tem a sua lógica ou a sua motivação. A gente já teve problema aqui dentro porque o quadro de servidores era muito rígido com os meninos e essa rigidez até despencava para alguma violência, então a rebelião era reação do adolescente a essa violência. A gente tem algumas situações em que isso se justifica. Agora, na maioria das vezes, o que a gente tem é que eles querem ir embora. Ele está privado de liberdade, com 14 anos, 16 anos. Ele quer fugir e muitas vezes não consegue e pega um funcionário de refém ou queima alguma coisa. Cada vez mais a gente tem menos rebeliões por problemas de violência dos funcionários, embora eles ainda existam.
R7: Em quase dez anos à frente da Fundação Casa, a senhora acredita que conseguiu aproximar a instituição do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)?
Berenice: Eu não tenho dúvida. Eu acho que ainda tem coisas a serem feitas. O adolescente de dez anos atrás mudou, é totalmente diferente do jovem de hoje. A gente procura sempre pensar em novas formas de lidar com ele, buscar novas formas de trabalho. Aqui é um trabalho que não tem uma fórmula pronta. Algumas coisas a gente fez e não deu certo, a gente reviu. Por exemplo, hoje a gente tem várias unidades nossas que têm internet dentro e os meninos estão fazendo curso via internet. Era algo que era impensável dez anos atrás com a bagunça que estava, coma indisciplina toda que existia. A gente vai constantemente mudando, evoluindo, buscando novas formas de lidar com os jovens. O jovem hoje é muito mais protagonista do que ele era há alguns anos atrás.
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