Festa de debutantes no Aristocrata, clube negro famoso em São Paulo
Aristocrata Clube/DivulgaçãoA antiga e histórica piscina foi coberta pela terra. E o lixo, comum em muitas áreas do Grajaú, zona sul da capital paulista, tomou conta da antes badalada portaria do Aristocrata Clube, espaço voltado para o público negro que sofria com o racismo nos locais de lazer da cidade entre os anos 60 e 90. Se hoje não aparece um único funcionário da Prefeitura de São Paulo para pôr em prática o projeto de um parque público no local, no passado até 3 mil sócios dividiram a área com celebridades nacionais, como Wilson Simonal, Cartola e Milton Nascimento, e mundiais, como o grupo Jackson Five e seu caçula Michael Jackson.
Tudo começou no fim dos anos 50, quando um educado funcionário de um clube da elite paulistana, o Pinheiros, aproximou-se de Mário Ribeiro da Costa enquanto ele se preparava para entrar na piscina. De forma polida, alertou-o que um "preparado" usado na água poderia fazer mal a sua pele negra. Saiu de lá para nunca mais voltar e fundou, em 1961, o Aristocrata, agremiação com sede social no centro da cidade e a área de campo nas proximidades da represa Guarapiranga visitada pelo R7 na sexta-feira (30).
O lote, de 60 mil metros quadrados e então no meio do nada, foi comprado em 24 vezes (200 mil cruzeiros por mês) graças a uma vaquinha entre 50 famílias negras. “Nós não podíamos frequentar os clubes chiques da época, como Sírio Libanês, Esperia e Hebraica, que sempre davam alguma desculpa para não nos aceitar, mas mesmo assim sabíamos o que era qualidade. Muitos de nós fomos educados na casa dos quatrocentões paulistanos e nos sentíamos no direito de apreciar o que havia de melhor, de música a comida”, explica Marta de Oliveira Braga, atual presidente do Aristocrata.
Na área ainda se vê um campo de várzea – “Dávamos aula de futebol para as crianças carentes da região”, diz Marta – e o espaço onde ficava o salão, no qual eram feitas as concorridas festas anuais da cerveja e do chope, entre março e setembro. “Nossos eventos sempre foram muito disputados", recorda.
Entrada do Aristocrata: abandono e lixo
Marcos Rogério Lopes/R7No clube de campo havia também uma piscina, que não deixou vestígios no lote abandonado. "Nós almejávamos ter uma piscina e uma quadra de tênis. Na época muita gente dizia que a gente não conseguiria ter, que era muita pretensão", disse o sócio-fundador Oswaldo de Souza no documentário Aristocrata Clube, de 2004. No mesmo filme, o ativista Genésio de Arruda diz que na década de 60 existiam vários clubes de lazer para a raça negra, mas o Aristocrata veio com a proposta de um local requintado. "Não eram sambistas, eram advogados, enfermeiros e até médicos. Queriam ser a elite entre os negros."
Michael Jackson, Ray Charles e Cartola
Sem "preparados" químicos, a piscina e o clube todo tornaran-se point obrigatório de políticos, empresários, atletas e celebridades. Um de seus fundadores usou seus contatos e influência para reforçar isso.
O músico Agostinho dos Santos, famoso por cantar as músicas da peça Orfeu da Conceição e por, em 1962, apresentar a bossa nova ao mundo no Carnegie Hall, de Nova York, ao lado de Tom Jobim e João Gilberto, aproveitava os eventos musiciais de São Paulo para arrastar astros para o clube. Entre os mais conhecidos, Ray Charles e o futuro astro Michael Jackson, que, em 1974, pelo Jackson Five, fez uma série de apresentações no Pavilhão de Exposições do Anhembi, na zona norte.
Visita dos Jackson Five com o caçula Michael Jackson
ReproduçãoFestas de debutantes, aniversários, feijoadas e inúmeros eventos transformaram o local em um dos principais clubes paulistanos. "Quem passava por São Paulo queria ir para lá, para curtir e encontrar outros negros influentes", relembra Marta. Cartola, Elton Medeiros, Jair Rodrigues, Wilson Simonal e Milton Nascimento entram nessa lista.
Ela começou a frequentar o Aristocrata nos bailes de carnaval de 1978, levada por uma amiga. "O pai dela era sócio. Percebi que aquele local tinha muito a ver comigo e com minha cultura. Não saí mais."
Marta acrescenta que em qualquer outro lugar não se sentia tão à vontade, ainda que fosse permitida sua entrada. "Nós sofremos uma discriminação bem mais dolorida e sutil do que as proibições. Quem são as pessoas que sofrem nas filas de vagas dos colégios públicos, por exemplo? São sempre os negros. A impossibilidade de acesso não precisa estar escrita em regra ou lei alguma."
Entre os fundadores do Aristocrata estavam também jogadores de futebol como José Carlos Bauer, ídolo do São Paulo, e Antenor Lucas, o Brandãozinho, da Portuguesa. Outros ex-atletas vistos sempre pelo clube eram Rosa Branca, bicampeão mundial com a seleção brasileira de basquete, e Luiz Carlos de Freitas, o Feijão, que ficou famoso menos por ter jogado por Palmeiras, Corinthians e Santos e mais por ter interpretado no cinema Edson Arantes do Nascimento no filme “Rei Pelé”, de 1962.
“O Pelé mesmo nunca foi ao Aristrocrata”, comenta a presidente. “Ele jamais teve uma identificação com a luta pelo preconceito, talvez por isso nunca tenha aceitado nossos vários convites."
O clube deixou a zona sul em 1994, após grupos sem-teto invadirem parte do terreno, num período já de poucos sócios. “Foi ficando cada vez mais difícil continuar ali e acabamos desistindo”, disse Marta. O local foi comprado pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), mas logo tomado por habitações irregulares novamente, um fenômeno comum na periferia da cidade.
Fechou a área de campo, mas a sede social seguiu no centro, na Rua Álvaro de Carvalho, com seu piano e shows intimistas de jazz e chorinho, até os anos 2000. Após sete anos sem atividade, ressurgiu em 2014 no Planalto Paulista, na avenida Piassanguaba, 3049. “Os tempos mudaram, mas o racismo continua forte. Ainda é preciso brigar por nossos direitos”, justifica a presidente. “Ando muito preocupada com a radicalização de hoje em dia. Agora as pessoas não têm sequer receio de ser preconceituosas”, analisa.
Pedido de CPI
A reportagem visitou a área ao lado do vereador Gilberto Natalini (PV), responsável por um dossiê que aponta que 90 áreas de Mata Atlântica da cidade estão sendo destruídas por invasões.
Natalini tenta aprovar a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara municipal para investigar quem são os responsáveis pelos loteamentos e para cobrar a Prefeitura da cidade. “Infelizmente hoje eu estou sozinho defendendo o meio ambiente. As autoridades fazem vista grossa ao que está acontecendo, mas a conta logo vai chegar”, afirma.
O vereador também visitou na região do Grajaú o Parque Ribeirão Cocaia, aberto à população, mas com a aparência de abandonado, sem trilhas, jardim ou espaço para recreação. Cercado por invasões, o local é só um esboço da ideia original. "Aqui, um terço da área foi ocupada por moradias irregulares, agora impossíveis de retirar, e o outro terço não foi concluído", diz Natalini.
No Ribeirão Cocaia, o número de seguranças contratados, 10 no total, era maior do que o dos 6 visitantes que haviam passado pelo portão do horário de abertura até o meio-dia de sexta-feira. “Quando vem muita gente não chega a 20 pessoas”, contou João, que fazia a guarda do local naquela manhã. “Aqui não tem nada, né, a população viria para fazer o quê?”, perguntou, sem resposta.
A Prefeitura de São Paulo afirma que o parque Aristocratas integra a lista de dez novos parques inseridos no Plano de Metas da Municipalidade e deve ser entregue até 2020. Já o parque Ribeirão Cocaia prevê em seu projeto a recuperação do córrego, a preservação e o adensamento da vegetação da região e a instalação de estrutura e equipamentos de lazer e esporte, tais como quadras poliesportivas, quadras de futebol society, playgrounds, aparelhos para ginástica, trilhas, ciclovia.
A Secretaria do Verde e do Meio Ambiente diz que todo o valor previsto para a manutenção dos parques públicos, de R$ 63.668.080,81, foi utilizado, e que o orçamento para 2020 ainda não foi definido.