A notícia de que a Rússia aprovou em tempo recorde a primeira vacina contra a covid-19 do mundo foi recebida com desconfiança e receio pela comunidade científica mundial nesta terça-feira (11).
Isto porque pouco se sabe sobre as pesquisas deste antígeno, já que os testes clínicos em humanos começaram em junho, na Universidade Sechenov, em Moscou.
Batizada de Sputnik-V — faz referência ao primeiro satélite lançado ao espaço na história, pela então União Soviética, em 1957 —, a vacina já foi aplicada em militares e até membros da elite russa. O presidente Vladimir Putin afirmou que a filha dele foi uma das voluntárias.
Vacina foi aprovada sem divulgação de estudos
Divulgação/Assessoria de imprensa do RFPINão há estudos científicos pulicados internacionalmente que detalham a composição da vacina. Porém, autoridades do país afirmam que ela utiliza fragmentos do SARS-CoV-2 (coronavírus que provoca a covid-19) e tem como base um adenovírus (vírus que causa resfriado comum).
Esses pedaços do coronavírus seriam capazes de induzir uma resposta imunológica capaz de proteger contra uma infecção no futuro, segundo os desenvolvedores.
Curiosamente, o vetor de adenovírus acoplado ao SARS-CoV-2 é a mesma tecnologia usada pela Universidade de Oxford, no Reino Unido. Em julho, o governo britânico acusou a Rússia de usar hackers para ter acesso a dados do desenvolvimento de vacinas.
Oficialmente, ela foi desenvolvida pelo Centro Nacional de Pesquisa de Epidemiologia e Microbiologia Gamaleya, e pelo Ministério da Defesa russo.
Os primeiros testes em humanos começaram no dia 18 de junho, com 38 voluntários. Ensaios clínicos de vacinas não são concluídos com tanta rapidez, o que desperta preocupações no meio científico.
"Não é possível saber se a vacina russa se mostrou eficaz sem a apresentação de artigos científicos para análise", disse Keith Neal, especialista em epidemiologia de doenças infecciosas na Universidade Nottingham, no Reino Unido.
Putin disse que filha recebeu vacina
Sputnik/Aleksey Nikolskyi/Kremlin/Reuters"Uma de minhas filhas foi vacinada, ela participou dos testes. Após a primeira vacinação, ficou com 38°C de temperatura. No dia seguinte, tinha 37°C e pouco. E é tudo [...] Depois da segunda injeção, da segunda vacinação, a temperatura também subiu um pouco e depois baixou. Ela se sente bem, e os anticorpos estão altos", afirmou Putin, de acordo com a agência russa de notícias Sputnik.
"A Rússia está essencialmente conduzindo um experimento em larga escala populacional", disse Ayfer Ali, especialista em pesquisa de medicamentos na britânica Warwick Business School.
Ela afirmou que uma aprovação super rápida como essa pode significar que potenciais efeitos colaterais podem não ter sido detectados. Eles, embora provavelmente raros, podem ser sérios, alertou.
O diretor do centro que desenvolveu a potencial vacina, Aleksandr Gintsburg, disse à agência Sputnik que ela não é adequada para todos. Segundo ele, pessoas com doenças crônicas, as mais vulneráveis à complicações pela covid-19, não podem ser vacinadas sem consentimento de um médico.
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O registro da vacina fala que ela começará a ser distribuída à população em 1º de janeiro de 2021. No entanto, fala-se que o país poderia iniciar uma vacinação em massa, em médicos e idosos, já a partir de outubro.
François Ballloux, especialista do Instituto de Genética da University College, de Londres, disse que a aprovação da vacina russa é uma decisão "imprudente e tola".
"A vacinação em massa com uma vacina testada de maneira inadequada é antiética", disse.
"Qualquer problema com a campanha de vacinação da Rússia seria desastroso tanto pelos seus efeitos negativos à saúde, quanto pelo atraso que causaria à aceitação das vacinas pela população."
A vacina russa contra a covid-19 não consta nem mesmo nas linhas de pesquisa acompanhadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Na semana passada, a entidade cobrou que a Rússia siga diretrizes internacionais para a produção de um imunizante contra a covid-19.
Diversos cientistas suspeitam que o país esteja pulando etapas estabelecidas em protocolos de pesquisa para ter uma vacina mais rapidamente.
A ausência de pesquisas em revistas científicas, revisadas por pares, é um sinal de alarme. Trabalhos de relevância — como uma vacina inédita — são publicados e validados antes de haver registro em órgãos reguladores.
As pesquisas de vacinas contra a covid-19 desenvolvidas por Oxford, por laboratórios chineses e norte-americanos têm dados disponibilizados para a comunidade científica.
Atualmente, seis vacinas estão na fase 3 de ensaios clínicos — etapa anterior à obtenção do registro. São elas: Oxford/AstraZeneca (Reino Unido), Sinovac Biotech (China), Sinopahrm (China), Moderna (EUA), BioNTech/Pfizer (Alemanha/EUA).
O governo do Paraná fechou um acordo com o governo russo para a realização de testes e posterior produção do imunizante no estado. No entanto, a autorização cabe à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
A agência emitiu nota nesta terça-feira em que afirma não ter recebido até o momento pedido para realização de estudo clínico com a vacina da Rússia.
Das seis potenciais vacinas contra a covid-19 que estão na fase 3 de ensaios, três têm autorização da Anvisa para serem testadas no Brasil, a de Oxford; da Sinovach Biotech, que fechou acordo com o Instituto Butantan, em São Paulo; e a da BioNTech/Pfizer.
O Paraná também assinou um acordo com a farmacêutica chinesa Sinopharma para realizar testes de uma vacina, mas a autorização ainda está sendo analisada pela Anvisa.
Apenas estudos amplos e ao longo de alguns meses serão capazes de apontar qual imunizante tem mais potencial. Os resultados de pesquisas das seis vacinas que estão na fase 3 em todo o mundo são promissores.
A expectativa mundial é que haja dados robustos para que uma ou mais vacinas estejam disponíveis no primeiro semestre de 2021.