Talyta em 2016, quase três anos após vencer a anorexia
Arquivo pessoal“Ou você come, ou vamos te internar”. Foi com esse ultimato que uma hematologista explicou a mim e aos meus pais a gravidade do meu quadro de saúde. Meus glóbulos brancos – responsáveis pelo sistema imunológico – estavam em um nível muito inferior ao considerado normal, no meu sangue. “As chances de você ter leucemia são enormes”, concluiu a médica. Aquela simples frase foi como um tapa na cara, que levou minha mãe às lágrimas. Lágrimas de dor e impotência, enquanto eu abaixava a cabeça reprimindo a mim mesma.
Isso foi em janeiro de 2013. Após um ano de dieta restrita e horas diárias de academia, perdi 33 kg. Com eles, não foram embora apenas meus glóbulos brancos, mas meu cabelo, minhas unhas e minha força. Por pouco, não foi também a minha vida. Com 41 kg, medindo 1,55 m, a anemia já estava aguda, os amigos perguntavam, a família criticava. “Você está magra demais, está feio”. Mas toda vez que eu me olhava no espelho, chorava, porque mesmo que calças infantis número 34 ficassem enormes na minha micro-cintura, eu continuava vendo minha imagem distorcida no espelho. Eu via a mim mesma gorda. Gorda. Palavra que me descreveu desde meus oito anos de idade.
Sempre fui uma criança acima do peso, até mesmo pela minha pouca altura. Sempre gostei de comer, e é natural que crianças gostem de chocolate, bolo, salgadinhos e outras guloseimas do tipo. Mas aos oito anos, eu tive que substituir a batata chips por uma maçã, ou uma barrinha de cereal; lanche com pão integral e queijo branco. Mas eu não queria, eu só tinha oito anos. Sempre que voltava no pediatra, havia engordado. “Mas ela não está cumprindo a dieta? ”. Meus pais não sabiam responder. Eu escondia deles tudo que comia quando tinha oportunidade. Os anos foram passando, e a situação só se agravava: o peso aumentava, e ninguém entendia o motivo. Exames de tireoide, “talvez ela tenha algum problema hormonal”. Mas não, eu não tinha. Eu só gostava de comer.
"Tive anorexia aos 12 anos. Fazia de tudo para evitar a comida"
Paixonite de criança, meus olhos brilhavam quando o filho do síndico do prédio onde eu morava aparecia. Mas ele nunca me deu bola, assim como nenhum outro menino na escola um dia olhou para mim. Foi assim até meus 16 anos – em que com os mesmos 1,55 m, eu pesava 77 kg. Gostava de um mocinho, ou de outro, mas nunca houve reciprocidade. Me tornei a amiga dos garotos da escola, a amiga das meninas, mas nunca a requisitada nas baladinhas. “Você nunca vai arrumar um namorado, gorda desse jeito”, diziam os mais velhos, que apenas retratavam a minha realidade. Comprar roupas era a atividade que eu mais odiava. As calças nunca serviam. E de raiva, tristeza e ansiedade, eu comia três ou quatro sanduíches de presunto e queijo. Acreditava que eles eram os únicos que me aceitavam como eu era.
Mas, apesar desses momentos, eu era uma adolescente sonhadora. Era alegre, contagiava as pessoas ao meu redor. Escondia toda essa insegurança e tentava mascará-la convivendo normalmente com todas as minhas amigas magras. Sempre fui apaixonada, mesmo que nunca tenha sido recíproco. Em 2011, finalmente encontrei uma paixonite que me correspondia. O moço era gaúcho, falava francês, gostava de rock clássico e literatura. Trocávamos mensagens o tempo todo. Só que a única vez em que senti algo recíproco por alguém chegou ao fim mais rápido do que eu previa. De uma hora para a outra, o moço sumiu, sem deixar rastros. Foi nesse momento, em novembro de 2011, que decidi emagrecer – ingênua, acreditava que ele só havia ido embora sem dar explicações porque eu era gorda. Afinal, eu nunca arrumaria um namorado gorda daquele jeito, não é mesmo?
Me matriculei na academia, e comecei a colocar em prática tudo que tentaram me ensinar por oito anos. Em dois meses, perdi 10 kg. As pessoas começaram a olhar para mim, começaram a me elogiar. Minhas calças deixaram de ser 42 e pularam para o 38. Foi a primeira vez na vida que eu me senti bonita. A academia se tornou meu maior foco, comecei a contar calorias, fiquei obcecada por elas. Em maio de 2012, já estava pesando 57 kg. Foi quando minha mãe sugeriu que eu procurasse uma nutricionista, uma vez que ela percebeu que eu havia reduzido minha rotina alimentar a uma quantidade de calorias diárias insuficiente para suprir minhas necessidades básicas. A médica adaptou minha dieta. Em um mês, perdi menos de 1 kg. Foi um choque. Eu não queria perder tão pouco em um mês. Decidi voltar para a minha forma errônea de perder peso, ingerindo cerca de 500 kcal por dia. Ficar magra se tornou uma obsessão tão grande que eu perdi o controle. Se, por acaso, em algum dia da semana eu não conseguisse ir à academia, deixava de comer pelo resto do dia.
Anorexia e bulimia podem matar. Tire suas dúvidas sobre os distúrbios alimentares
Meu humor começou a ficar um tanto quanto difícil de aturar, uma vez que eu cortei todos os carboidratos da minha dieta — eles não são apenas responsáveis por fornecer energia ao corpo, mas também por promover uma sensação de bem-estar. Aos 54 kg, as calças pularam para o 36 — que alegria. Mal sabia eu que estava me matando aos poucos. A carne vermelha não fazia mais parte da minha alimentação — o que não é um problema quando substituída por alimentos com quantidades similares de proteínas. Mas não era meu caso. Eu deixava de fornecer ao meu corpo o que ele precisava para me manter viva. Em setembro, com 50 kg, desmaiei entre os aparelhos de musculação da academia. Quando acordei, estava rodeada por diversas pessoas, comentando umas com as outras sobre a minha aparência de doente. “Essas meninas que param de comer para ficar magras... Não medem as consequências de seus atos”. Levantei na hora. Queria provar para elas e para mim que não estava fazendo mal para o meu corpo, só bem, afinal eu não estava magra. Não ainda... Pelo menos não era o que o espelho me dizia.
Em outubro, contei para a minha mãe que não conseguia mais comer nenhum tipo de carne — mesmo branca — à noite. Eu percebi que algo estava errado, uma vez que sempre que tentava ingerir alguns tipos de alimentos, minha garganta fechava, eu perdia o ar e começava a tremer. No mesmo mês, iniciei as primeiras sessões de terapia com uma psicóloga — de nada adiantou. Com 48 kg e calças 36 largas, um dos meus seios desenvolveu uma síndrome chamada mama tubular. Eu nunca tive seios grandes, mas me deparei com uma aberração: um deles totalmente murcho, com um formato estranho, diferente. Mal sabia eu que esse era o menor dos meus problemas. Aos 17 anos, prestes a me formar no segundo grau e a prestar vestibular para tentar entrar na faculdade com a qual sempre sonhei, adoecia semanalmente. Laringite, hoje; amanhã, virose. Gastrite provocada por uma bactéria devido à alta ingestão de ácido — ácido responsável também por corroer o esmalte de todos os meus dentes. Meu pai passava o dia varrendo a casa, de tanto cabelo que caía de minha cabeça.
Treze de novembro de 2012, um dia antes do meu vestibular, senti a pior dor de garganta que já tive na vida. Não conseguia ingerir nada, tampouco falar. Ao chegar no hospital, o médico foi incisivo: “Dois a três dias no mínimo com antibiótico, para começar a melhorar”. Mas isso era impensável, eu teria que fazer a prova que definiria minha vida universitária no dia seguinte. A medida foi dolorosa: duas injeções de bezetacil, uma em cada nádega. Ao levantar, a tontura tomou conta de mim. Abri os olhos e me deparei com minha mãe — a mulher mais forte que conheço — chorando, desolada. Ela abriu um pacote de bolo de chocolate e uma caixinha de suco de laranja; olhou no fundo dos meus olhos e suplicou. “Por favor, filha”. As lágrimas em seus olhos caíram ainda mais quando obedeci: comi o bolo e tomei o suco.
Não sei como, mas no dia seguinte, consegui fazer a prova. Era como se a vida estivesse me dando uma chance de lutar por mim. Dezembro, 41 kg. Um dia antes da virada do ano, fui ao salão de cabeleireiro e pedi que cortassem meus cabelos, então já fracos e sem vida, na tentativa de disfarçar as falhas no couro cabeludo.
Arroz, feijão, carne. “Coma”, suplicavam meus pais. Mal sabiam eles o quão difícil era, para mim, conseguir comer o que eles pediam. Não imaginavam o esforço que eu fazia a cada garfada, em uma luta simbólica contra o meu psicológico. Assim que o ano de 2013 começou, iniciei as sessões de terapia com um psiquiatra. Eram conversas, desabafos, e o único momento da semana em que eu me sentia acolhida, de certa forma. Ele pediu que eu fizesse uma série de exames de rotina, para que pudesse me encaminhar para outros especialistas e fizéssemos uma terapia em conjunto. Quando os resultados chegaram, minha mãe começou a analisar um por um, com um computador ao lado, pesquisando o que podia significar todos aqueles números abaixo do ideal. Ela chorava em um canto, sentindo-se impotente. Eu chorava em outro, sentindo-me culpada, e mais impotente ainda.
“Então, ou você come, ou vamos ter que te internar”. A frase com a qual comecei esse texto veio de uma das especialistas que precisei consultar após os resultados desastrosos do meu exame de sangue. Mas, assim como meus pais, como meus amigos, como professores e familiares, ela não entendia que não era tão simples voltar a comer. Ela não entendia a complexidade que é ter anorexia. Ela não entendia que a morte me parecia uma boa opção desde que eu continuasse magra. Durante a volta para casa, nenhuma palavra. As lágrimas de minha mãe, enquanto dirigia, competiam com os pingos da chuva escorrendo pelo para-brisas. Em um ano, fui de um extremo ao outro. Por pouco, não morri. E quero deixar bem claro que não foi uma escolha que fiz por mim, mas pelos meus pais. Não queria mais vê-los preocupados, abatidos. Era pensando neles que engolia cada garfada de arroz, mesmo tremendo e perdendo o ar.
Hoje, três anos depois, estou aqui, viva. Neste relato, estou tocando em feridas que ainda machucam para alertar para os perigos da anorexia. Os perigos por trás da busca excessiva pela magreza. Hoje, estou novamente acima do peso. Mas resolvi tomar uma atitude — só que dessa vez, por mim: decidi que quero amar a mim mesma todos os dias ao me olhar no espelho. É algo quase que impossível. Mas decidi que, em vez de tentar buscar um corpo que me faria abrir mão da minha saúde, quero me apaixonar pelas minhas curvas. Quero que nós, mulheres, aprendamos a gostar das diferenças: elas são lindas. Mas só são lindas se estivermos vivas.
Talyta Vespa é estagiária do R7
Veja casos chocantes de mulheres à beira da morte por anorexia