Hora 7 Viajantes do tempo: a ascensão e o sumiço desde o início da pandemia

Viajantes do tempo: a ascensão e o sumiço desde o início da pandemia

Em 2018, o YouTube estava infestado de 'homens do futuro' cheios de previsões, mas eles desapareceram desde a chegada da covid-19

  • Hora 7 | Filipe Siqueira, do R7

Os viajantes do tempo sumiram e falharam em fazer previsões sobre um ano bastante caótico

Os viajantes do tempo sumiram e falharam em fazer previsões sobre um ano bastante caótico

Reprodução/YouTube/ApexTV

Em 16 de outubro de 2017, o canal ApexTV, do YouTube, lançou um vídeo com um título bastante simples: Viajante do tempo que esteve no futuro e no passado. Com 178.000 visualizações, não foi um sucesso estrondoso, mas recebeu comentários o bastante para ganhar uma sequência.

O vídeo seguinte sobre o assunto — intitulado Viajante do tempo do ano 2250 (EXCLUSIVO!) — ganhou quase 3 milhões de visualizações e mais de 17.000 comentários. Nascia ali o sucesso absoluto de um tipo bem específico de youtuber: pessoas que dizem ser viajantes do tempo, geralmente com mensagens alarmantes para impedir catástrofes. Às vezes com rosto coberto e a voz modificada, eles nos trazem avisos urgentes e provas duvidosas de que estão falando a verdade.

As histórias possuem similaridades fáceis de identificar: os viajantes quase sempre são perseguidos por governos em busca de esconder a verdade, também possuem segredos que podem mudar a humanidade e tentam alertar para eventos futuros assustadores.

Um deles até supostamente passou com sucesso em um teste com detector de mentiras, outro foi entrevistado ao lado de versão dele próprio do passado e um estudioso do assunto afirmou que eles são responsáveis pelos avistamentos de OVNIs. Alguns desses vídeos ultrapassaram 10 milhões de visualizações e geraram imitadores. Ainda que muitos duvidassem da veracidade dos relatos, o sucesso nunca diminuiu.

Até 22 de fevereiro de 2020, quando o canal lançou o relato de um sujeito que afirmava ser um “ciborque” vindo do futuro. Desde então, os viajantes do tempo entraram em silêncio absoluto, justamente no momento mais imprevisível do século.

Onde estão os viajantes do tempo desde que a pandemia de covid-19 se tornou um turbilhão global? Ninguém sabe exatamente e nem o produtor dos maiores vídeos do tipo está disposto a falar.

O caso John Titor

A história moderna dos solitários viajantes do tempo começa bem antes da ApexTV, em um obscuro site da internet. Em novembro de 2000, um integrante do fórum Time Travel Institute — do programa de rádio Coast to Coast AM, especializado em conspirações e temas paranormais — afirmou ser um viajante do tempo e se identificou simplesmente como TimeTravel_0.

Nos tópicos do fórum ele explicou com alguma carga de detalhes a missão dele. Basicamente, o viajante do tempo era um militar de 2036 e foi enviado de volta a 1975 para pegar um computador do modelo IBM 5100, que o avô dele havia ajudado a programar. O hardware era vital para evitar o que é chamado de Problema do ano 2038, ou Y2K38, uma espécie de variação do bug do milênio. Assim como De Volta para o Futuro, a máquina do tempo dele estava instalada em um carro: no caso, na traseira de um Corvette conversível, modelo de 1966.

Após completar com sucesso a missão, o viajante do tempo (que em janeiro de 2001 passou a utilizar o nome que o faria entrar para a história: John Titor) parou no ano 2000 e viveu por ali até 2001. Quando questionado do motivo dele estar no ano 2000, Titor foi bem claro: além de querer ver a família dele, que morreria no futuro, pretendia salvar os Estados Unidos de uma guerra civil, que começaria em 2004 ou 2008.

Um IBM 5100: a salvação do planeta, segundo John Titor

Um IBM 5100: a salvação do planeta, segundo John Titor

Sandstein (Sob Licença Creative Commons)

Ele também falou sobre ameaças de doença na carne bovina industrial, uma Terceira Guerra Mundial em 2015 (após um ataque nuclear russo) e sugeriu que os óvnis vistos em nosso tempo poderiam ser viajantes do tempo de outros períodos. Em março de 2001, John Titor publicou sua última mensagem e nunca mais falou nada.

Desde então, muita especulação já foi feita sobre quem seria (ou “seriam”) John Titor, mas nenhuma resposta definitiva foi obtida. A mais conhecida e aceita delas é que o personagem foi uma brincadeira dos irmãos Morey e Larry Haber, da Flórida. Investigando a história, o detetive particular Mike Lynch chegou a uma tal Fundação John Titor, registrada nos Estados Unidos e presidida por Larry, um advogado da Flórida. O irmão dele é cientista da computação, e provavelmente foi quem maquinou boa parte das teorias.

Ainda assim, o nome dele entrou para a história como um dos mais importantes viajantes do tempo modernos.

Vida & obra de Apex

Com 1,33 milhão de assinantes, o canal ApexTV se tornou uma espécie de local oficial onde os viajantes do tempo se reuniram nos últimos anos e herda a tradição iniciada por John Titor.

O primeiro vídeo do canal sobre o assunto, antes do grande sucesso desse tipo de conteúdo, é de setembro de 2016: o relato de cinco minutos de um sujeito que afirmava ser de 2026. O viajante do tempo enviou um email com um relato sobre o assunto e logo depois filmou um depoimento. Alcançou 2 milhões de visualizações, mas demoraria quase um ano para que outros viajantes do tempo aparecessem.

Desde o primeiro upload, foram cerca de 70 vídeos sobre viajantes do tempo, uma mudança na trajetória do site, antes focado em criptozoologia (sereias eram uma obsessão) e autópsias de alienígenas. Alguns desses viajantes ganharam longas histórias próprias, como Noah (o mais famoso deles), Alexander Smith (que usa uma máscara muito esquisita), e Orrin (o ciborgue). Durante esse período, o canal dobrou de tamanho — no final de 2018, tinha 785.000 assinantes.

Agora, é uma potência absoluta entre os conspiratórios do YouTube. O único canal que concorria no filão dos viajantes do tempo, chamado Paranomal Elite, foi encerrado e hoje abriga vídeos de animações engraçadinhas.

A fundação foi em novembro de 2014. A ideia do fundador era preencher um nicho paranormal no YouTube, mas o início da trajetória foi um tanto comum. “As 5 pessoas mais ricas do planeta”, “Como fazer raspadinha instantânea” e “Os 10 barcos mais rápidos já fabricados” são alguns dos primeiros vídeos publicados no canal.

"Me chame de Apex"

"Me chame de Apex"

Reprodução/YouTube/ApexTV

Apex (é assim que o dono do canal gosta de ser chamado) afirma que o método de produção desses vídeos é bastante simples. Os viajantes do tempo enviam relatos por email, a direção do canal pede uma gravação com um depoimento, que posteriormente pode se tornar uma entrevista.

Quando decide que vale a pena, ele próprio pode viajar para fazer uma entrevista e produção no local. Posteriormente, funcionários em tempo parcial editam os vídeos, inserem imagens de cobertura, ajeitam o áudio e cuidam de outros detalhes antes do upload.

Apex afirma que não conhece inteiramente esses viajantes, apenas checa o que eles dizem para não publicar relatos estapafúrdios demais. A relação com eles é a mesma de um jornalista com a fonte ou de um programa de TV com as atrações. Em resposta ao HORA 7, o dono do canal não quis comentar o sumiço dos vídeos de viajante do tempo desde o início da pandemia, mas indicou vídeos já publicados onde dá pistas do processo de publicação desses conteúdos.

Ele ressalta que os viajantes do tempo “parecem pessoas normais”, que demonstram acreditar no que estão falando. Alguns deles simplesmente somem após alguns vídeos. Para o show do canal, esses atributos são o suficiente. A decisão de acreditar ou não no conteúdo do vídeo é do espectador, como avisos frequentes deixam claro.

Os vídeos do canal possuem uma estética própria, com cenários pobres e um visual que parece saído de filmes de baixíssimo orçamento da década de 1980. Com o tempo, foram se tornando cada vez mais bombásticos e assertivos.

E cheios de falhas. Noah, por exemplo, previu erroneamente que Donald Trump seria reeleito presidente em 2020 e afirmou que humanos chegarão a Marte em 2028, o mesmo ano em que a viagem no tempo será descoberta.

A própria história de Noah mostra como toda a mitologia dos viajantes do tempo pode ser bem confusa. Em um vídeo de 23 de julho de 2019, ele revelou a própria identidade, afirmando ser uma pessoa sem amigos e distante da família que gostava do YouTube e era “especialmente obcecado pela ApexTV”.

Nunca saberemos com certeza a identidade de Noah

Nunca saberemos com certeza a identidade de Noah

Reprodução/YouTube/ApexTV

Após enviar uma série de vídeos mostrando a si próprio como um viajante do tempo, o canal publicou as produções dele, que fizeram um sucesso gigantesco. Noah, que diz se chamar Jason, revela na produção que começou a acreditar nas próprias alegações em algum momento, o que o teria ajudado a passar nos testes do detector de mentiras.

Dois dias antes, um outro vídeo publicado e apagado horas depois, tinha outra resposta: Noah seria um adolescente chamado Denis Bel, que começou a carreira como viajante do tempo aos 14 anos de idade, ao enviar uma gravação para a ApexTV.

Bel, que tinha 16 anos quando fez a revelação, foi mais direto: ele só queria criar uma pegadinha para a internet e ganhar alguma fama. “Não consigo mais fazer esse personagem estúpido”, disse ele no vídeo.

Após o vídeo ser apagado da ApexTV, Bell o publicou no próprio canal para ser um youtuber de sucesso. Não deu tão certo assim e ele tem pouco mais de 800 inscritos atualmente.

O episódio intrincado reitera uma verdade sobre o canal. Seu dono não se importa muito com a veracidade ou mesmo verossimilhança dos vídeos de viajantes do tempo. Ele parece apenas em busca de entretenimento intrigante e contínuo.

Mesmo sendo um youtuber famoso, Apex nunca revelou o nome, onde mora ou idade. Alguns vídeos antigos em que partes do rosto dele apareciam foram retirados do ar. Jornalistas dos Estados Unidos que tentaram descobrir a identidade dele, só souberam que o DDD do telefone que ele usa é da costa oeste, famosa por múltiplos avistamentos de óvnis.

“Não dou meu nome verdadeiro porque não sinto que seja importante na divulgação das histórias dessas pessoas”, afirmou ele em entrevista ao HORA 7, dada em 2018, no início do sucesso dos vídeos de viajantes do tempo.

Orrin, o ciborgue de 2050

Orrin, o ciborgue de 2050

Reprodução/Dr. Phil

O último deles foi Orrin, que alegava ser um ciborgue que veio do ano 2050. Assim como Noah, Orrin alcançou certa fama midiática e deu entrevistas para veículos de informação que normalmente não cobrem esquisitices obscuras da cultura da internet.

Em fevereiro de 2020, o pretenso ciborgue alcançou o ápice e foi entrevistado por Phil McGraw, o famoso psicólogo que apresenta o programa Dr. Phil. O talk show é o segundo maior dos Estados Unidos, superado somente pelo programa da Oprah Winfrey, exatamente a porta de entrada de Phil para a televisão.

Como era de se esperar, o apresentador destruiu a argumentação de Orrin, enquanto exigia possíveis informações novas conseguidas por ele em 2050. As respostas geralmente tinham frases como “vivemos em uma simulação” e “uma poderosa inteligência artificial dominou o planeta”. Nenhuma delas pareceu convencer Phil ou a plateia.

Ainda que a missão de Orrin em sua jornada na televisão norte-americana possa ser considerada um grande fracasso, a mera aparição dele em um dos maiores programas de TV do país já mostra até que ponto esses solitários viajantes do tempo obtiveram sucesso midiático. Apenas o clipe com a entrevista dele, publicado no canal do Dr. Phil no YouTube, obteve 11 milhões de visualizações de um público que provavelmente não conhecia Noah ou a ApexTV.

Três semanas após ir ao talk show, Orrin foi entrevistado no Apex, no último vídeo sobre viajantes do tempo do canal. O canal ficou um ano exato em total inatividade, só encerrada em 21 de fevereiro passado, com um vídeo sobre criaturas que vivem nas paredes de uma casa.

Por que os viajantes do tempo falharam em nos dar previsões sobre a pandemia, com seus vídeos do futuro? Por que no período em que as conspirações mais se espalharam, um dos principais canais do YouTube sobre o tema entrou em recesso?

Não há respostas oficiais sobre o assunto. Na descrição do novo vídeo, Apex apenas dá pistas, ao dizer que “sabe que faz muito tempo desde o último upload”, e completa: “o canal terá novos vídeos LOUCOS em breve”.

Um segundo canal dele — focado em ficções assustadoras em 360º — permaneceu ativo, mas com um sucesso relativamente menor, o que talvez demonstre que a resposta é mais simples do que parece: a pandemia dificultou a produção desse tipo de conteúdo a tal ponto que a direção do canal preferiu não tentar fingir que estava tudo bem.

Como ele sempre disse, é tudo “uma obra de paixão” e talvez num período tão complicado do nosso século essa paixão tenha tombado ante problemas muito sérios. Ou veio a percepção que o mundo real já estava cheio de histórias e teorias assustadoras e talvez nem todas elas deveriam ser divulgadas.

Por que viajantes do tempo são um sucesso?

Em nichos que afirmam discutir viagem do tempo a sério, como o subreddit Time Travel, com quase 50.000 integrantes, as linhas do tempo e afirmações dos viajantes do tempo da ApexTV são ridicularizados.

Mesmo nos comentários desses vídeos, diversas pessoas desmontam as alegações dos viajantes do tempo. Mas, desde o sucesso de John Titor, é seguro dizer que existe uma subcultura em busca de provar a existência de viajantes do tempo. Ou apenas não descartar totalmente a existência deles. Foi com esse tipo de persistência que se iniciou recentemente o período mais intenso para investigadores ufológicos.

Mesmo sem respostas definitivas, milhões continuam assistindo e comentando vídeos do tipo, o que faz qualquer um perguntar: por quê?

Parte da resposta está nos comentários das redes. O vídeo de retorno da ApexTV, após um ano de silêncio, recebeu declarações como:

“Cara, eu senti falta de vocês... Sinto falta dos vídeos do viajante do tempo. Eu sei que alguns deles podem não ser reais, mas me dão uma impressão muito boa, além de fantasiarem quando falam sobre o futuro a sua maneira. PFVR façam mais vídeos de viajantes do tempo.”

“Definitivamente, foquem nos vídeos de viagem no tempo.”

“Apex TV, quando teremos o próximo vídeo de viagem no tempo, eu gosto de viagem no tempo”

“Apex TV, bem-vindos de volta. Senti muito sua falta, você é incrível. Mais vídeos de viajantes do tempo, preciso de mais disso na minha vida”

Dezenas de outros comentários similares podem ser encontrados e são indicativos que não importa exatamente que esses vídeos sequer pareçam reais. É mais importante para seus produtores manter o fluxo de publicação deles, para alimentar a vontade contínua do público de consumi-los.

É similar aos vídeos do TikTok, um misto de performance, arte e recortes do cotidiano. A mídia em si é tão ou mais importante que o próprio conteúdo — no caso do TikTok, vídeos curtos, às vezes narrativos, e sempre extremamente dinâmicos, com zooms, música, dublagem e outros elementos visuais.

Não importa exatamente se a menina que achou um apartamento inteiro atrás do espelho do banheiro realmente tenha feito a descoberta naquele dia, apenas como a saga foi contada na série de vídeos. A realidade está sempre em adaptação às novas mídias. E o público se adapta junto.

Segundo o polêmico filósofo francês Jean Baudrillard, falecido em 2007 e famoso por contribuir com a produção do filme Matrix, parte da resposta a esse fenômeno da realidade que se torna cada vez mais ficcionalizada está no fato do ambiente virtual prover uma substituição para os fatos do mundo objetivo.

Jean Baudrillard e a cara de poucos amigos que ele tinha

Jean Baudrillard e a cara de poucos amigos que ele tinha

Store norske leksikon (Sob Licença Creative Commons)

Em um artigo de novembro de 1995, escrito para o jornal francês Liberátion (e traduzido para o português no livro Tela Total), ele aponta o fim dessas fronteiras.

Não podemos nem imaginar o quanto o virtual já transformou, como que por antecipação, todas as representações que temos do mundo. Não podemos imaginá-lo, pois o virtual caracteriza-se por não somente eliminar a realidade, mas também a imaginação do real, do político, do social — não somente a realidade do tempo, mas a imaginação do passado e do futuro. (...) Não estamos mais no tempo histórico, estamos no tempo real, e no tempo real não há mais provas de nada.

Jean Baudrillard, filósofo francês

Essa é uma forma do autor dizer que a internet como mídia subverte diversos conceitos e fundamentos, principalmente por trabalhar em uma velocidade diferente de outras mídias. E nesse vácuo de território, novas realidades e mitologias são criadas e distribuídas.

Canais como o ApexTV — que não têm a pretensão de ser noticiosos, mas nunca descrevem a si próprios como puro entretenimento — são o que a internet faz de melhor: conteúdo, uma mistura de informação e entretenimento que nunca precisa de fato ser sinalizada. Com o passar do tempo, o conteúdo possui cada vez menos relação com acontecimentos reais, eles só precisam atender aos fluxos da mídia onde estão — no caso da Apex, o YouTube.

De uma perspectiva histórica, viajantes do tempo e conspirações parecem servir como um tipo de diversão popular, similar às narrativas de crime que transformaram a imprensa no início do século 19.

Em seu livro A Tinta e o Sangue, que conta a relação entre jornais e notícias de crimes violentos, o historiador francês Dominique Kalifa descreve a fixação popular com essas narrativas como um “interesse pelo segredo e do desejo de se aproximar furtivamente das leis intangíveis que governam a vida da humanidade”.

Da mesma forma que o crime, as conspirações malucas de viajantes do tempo colocam o indivíduo como protagonista de histórias grandiosas e tentam colocar ordem em um amontoado de fatos que parece sem sentido. Como diz Kalifa:

Um a um, esses textos [sobre crimes] desenham uma espécie de longo “relato obscuro”, no qual, heroicizado ou condenado, o homem do povo reivindica sua parte de história, uma parte nem sempre bem vista, mas efetiva, da qual é encarregado de manter a lembrança.

Dominique Kalifa, historiador

Em outras palavras, histórias abertamente falsas sobre viagens no tempo são frutos de uma mídia onde certas regras de veracidade foram suspensas, e ainda funcionam como uma mitologia que questiona versões oficiais, colocando indivíduos comuns como heróis e no centro de tais narrativas.

Sim, é possível viajar no tempo!

Essa relação desconfiada e quase conspiratória com itens científicos pode ser também um efeito direto do próprio estado da Física Teórica, cada vez mais incompreensível para o público leigo. Como a teoria científica em certos campos supera a capacidade de comprovação dos instrumentos atuais, temos mais hipóteses do que estudos comprobatórios.

Teoria-M, buracos negros, dimensões extras, mundos paralelos, energia escura. Todos são itens que não parecem satisfazer o que geralmente consideramos como uma teoria científica. Mas são perfeitamente científicas.

É similar ao famoso caso da Teoria da Relatividade Geral, proposta por Albert Einstein em 1905, e comprovada ao longo dos anos. Partes dela são provadas até hoje.

Da mesma forma, viagens no tempo não são fisicamente impossíveis, mas no estágio atual da teoria física, elas não funcionam como nas obras de ficção.

Vamos tentar uma explicação clara e resumida. O tempo é indissociável do espaço, formando um continuum que é definido como “espaço-tempo”. Enquanto podemos nos deslocar livremente pelo espaço (estudiosos de Ciências Sociais discordam, mas fiquemos com a Física Teórica), com o tempo a impressão que fica é que estamos indo sempre “para o futuro”. O que muda a percepção de tempo é a velocidade desse movimento no espaço.

“A percepção do tempo é diferente para as pessoas, dependendo da velocidade entre elas. Mas, para se sentir essa grande diferença, essas velocidades têm que ser próximas à velocidade da luz”, afirma Daniel Vanzella, professor de Física Teórica do Instituto de Física de São Carlos, da USP, no blog da instituição.

Esse modelo de entendimento do espaço-tempo prevê “viagens ao futuro”. Por exemplo, se alguém viajar em um foguete próximo da velocidade da luz por um ano, quando voltar à Terra, dezenas de anos terão se passado. Dessa forma, o viajante viverá no futuro de outras pessoas sem ter envelhecido tanto quanto elas.

Um exemplo concreto são os cosmonautas russos Sergei Avdeyev e Sergei Krikalev, que permaneceram mais de dois anos em órbita em estações espaciais (747,593 dias e 803,371 dias, respectivamente), a cerca de 27.000 km/h. Pelos cálculos da Física, o tempo passou cerca de 0,02 segundos (ou 20 milissegundos) menos para eles. Em outras palavras, a dupla está 20 milissegundos no futuro, detendo o recorde de maior viagem no tempo já feita.

Já voltar ao passado é praticamente coisa de ficção científica. A possibilidade só é prevista pela Relatividade se algum veículo se movimentasse mais rápido que a luz, o que até o momento é considerado extremamente improvável.

E mesmo que um veículo o fizesse, não há qualquer indício que um corpo biológico se manteria coeso se viajasse em tal veículo hipotético. E mesmo se alguém inventasse tal veículo, a energia prevista para mantê-lo em movimento seria equivalente a 10 bilhões de estrelas, a depender da massa transportada.

Um buraco negro é bem estranho

Um buraco negro é bem estranho

EHT

Outra possibilidade são os famosos buracos negros e os buracos de minhocas, que são como fissuras no tecido do espaço-tempo.

“Imagine que a sala da sua casa como a vemos, com três dimensões, largura, altura e profundidade, está com uma trinca. O mesmo pode ser descrito em quatro dimensões”, afirma o professor Luiz Vitor de Souza, pesquisador, também no site do Instituto de Física de São Carlos.

O site do instituto tem uma explicação de derreter os neurônios:

Em um buraco negro, o espaço-tempo se dobra ao redor dele mesmo. Isso significa que a gravidade ali é tão intensa que, neste caso, temos a máxima conhecida de distorção de tempo no Universo: nas proximidades de um buraco negro, o tempo parece estar parado em relação à Terra. Se um astronauta se atrevesse a chegar ali perto, ele poderia enxergar toda a eternidade em um curto período de tempo e, de fato, dar um salto imenso ao futuro – se é que voltaria inteiro.

Já o buraco de minhoca funciona como uma espécie de atalho entre duas regiões do Universo.

“Tendo como parâmetro as três dimensões que enxergamos, esta fenda [o buraco de minhoca] seria uma espécie de funil – um buraco em um espaço tridimensional, que leva a matéria através de um túnel para um outro espaço do outro lado”, explica o professor Souza.

Com efeito, o buraco de minhoca é uma previsão teórica, o que significa que nenhum foi observado, muito menos algum objeto já foi transportado por esse tipo de atalho. Na verdade, fora das equações da Relatividade, cientistas ainda nem possuem um modelo para saber se já viram um buraco de minhoca.

Sergei Avdeyev, o cosmonauta que detém o recorde de viagem no tempo

Sergei Avdeyev, o cosmonauta que detém o recorde de viagem no tempo

US National Archives (Sob Licença Creative Commons)

“Seria como um buraco negro, mas existe outra coisa do outro lado, para onde a matéria está indo, então talvez não enxergássemos nenhuma anormalidade”, completa o pesquisador. É diferente dos buracos negros, que possuem intensa movimentação de moléculas e de estrelas em um ponto que não possui qualquer luz.

Obviamente, os vídeos de viajantes do tempo evitam abordar esse tipo de complexidade. Saem as teorias da Física e entram narrativas sobre desastres e governos ditatoriais. Noah mostrou um cubo que parecia de papel como se fosse uma máquina do tempo, e mesmos filmes utilizam artefatos comuns para explicar viagens do tipo — como o icônico DeLorean, de De Volta para o Futuro.

Essas tentativas nos lembram que pensar e teorizar sobre a natureza do tempo é sempre de grande importância para o ser humano, que desde cedo aprende sobre a passagem dele e a chegada da morte. Então, é de se imaginar porque viagens no tempo permanecem fascinantes, tanto para autores de ficção quanto para cientistas.

Enquanto leis e teorias parecem descrever viagens ao passado como uma possibilidade muitíssimo remota, é possível entender um pouco mais porque os viajantes do tempo toscos da ApexTV puxam as cordas da audiência, como um entretenimento que mantém a chama da possibilidade desse tipo de viagem ser real.

Provavelmente, eles voltam em breve. Sempre existirá audiência para eles.

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