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Pablo Nascimento e Lucas Pavanelli, do R7

Passados dois anos do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, o saldo da tragédia ainda é um pesadelo não só para as famílias das 270 pessoas mortas pelo colapso. Ao menos 52 mil moradores de 26 cidades ainda lutam na Justiça para provar que também foram afetados pelo estouro do reservatório de rejeitos de mineração, no dia 25 de janeiro de 2019.

De acordo com o Aedas (Associação Estadual de Defesa Social e Ambiental) e o Instituto Guacuay, assessorias técnicas que acompanham os atingidos pelos rejeitos da barragem, as dezenas de milhares de pessoas não reconhecidas pela Vale também têm direito à reparação, embora tenham sido desconsideradas no critério estebelecido pela mineradora. A Vale definiu que apenas a população de Brumadinho e quem vive a 1 km das margens do Rio Paropeba teriam acesso à repasses mensais de até um salário mínimo (R$ 1.100 desde 1º de janeiro).

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Adriano Machado / Agencia Reuters

Os relatos indicam que o derramamento da lama mudou a rotina destas pessoas deixadas de fora do acordo, provocando perda de renda, doenças de pele, além de ter afetado a vida de comunidades indígenas, quilombolas, pescadores, pequenos comerciantes e agricultores que vivem em municípios cortados pelo Rio Paraopeba, atingido pela onda, e do entorno da represa de Três Marias, onde o curso d'água chega ao seu fim.

Entre esses grupos estão famílias indígenas da etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe, que viviam na aldeia Naô-Xohã, às margens do Paraopeba, na cidade de São Joaquim de Bicas, na Grande BH e a 40 km do epicentro da tragédia. Com a chegada do lamaçal no rio, o grupo viu sua principal fonte de alimentação e renda ser contaminada e ficou impedido recolher peixes no local.

Ãngohó Pataxó, uma das lideranças da tribo, conta que parte dos membros da aldeia estava em viagem para a Bahia no dia do rompimento e, assim, não foi reconhecida como atingida pela tragédia. Como resultado, essas famílias não tiveram direito ao auxílio emergencial pago pela Vale mensalmente a quem se adequa ao critério.

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Com a pressão econômica e a falta do rio na lida diária, 22 famílias que viviam no local foram praticamente expulsas da própria terra. Parte se mudou para a Bahia e um grupo de mais de 100 pessoas encontrou refúgio a mais de 50 km dali, no bairro Jardim Vitória, na periferia de Belo Horizonte.

Com a chegada da pandemia de covid-19, o grupo se deparou com novos desafios fora de sua terra natal, como explica Ãngohó Pataxó.

— É uma triste realidade. Em BH, nem as feiras para trabalharmos a gente tem mais por causa da pandemia. Este mês vamos receber o último auxílio da Vale.

Um levantamento feito por uma das assessorias técnicas que auxiliam os atingidos contou 12.325 pessoas, que vivem em cidades do entorno de São Joaquim de Bicas, que teriam direito a receber o auxílio emergencial da Vale, mas não estão incluídas nas listas de beneficiários da mineradora.

Adolescentes teriam direito a receber meio salário (R$ 550) e crianças, um quarto (R$ 225). Esse valor caiu pela metade em janeiro do ano passado, quando o desastre completou um ano. No auge, o auxílio chegou a ser pago a 108 mil pessoas e a previsão é de que este seja o último mês em que ele será depositado aos atingidos, conforme explica o coordenador-geral da Aedas, Lucas Vieira.

— São pessoas que recebiam, mas deixaram de receber, sem qualquer explicação da Vale. Outros, se enquadram nos critérios, mas nunca receberam ou estão com pagamentos atrasados. Os atingidos, hoje, vivem uma situação de angústia, sem conseguir saber se, no mês seguinte, vão receber o dinheiro do auxílio.

No vídeo abaixo, produzido pelo R7 Estúdio quando a tragédia completou seis meses, você tem a oportunidade de conhecer, em uma experiência em 360º, a região destruída no desastre.

Pescado em queda

Na outra ponta do rio, no encontro com a represa de Três Marias, a 298 km da área do rompimento, grupos de pescadores viram a venda de seus peixes caírem praticamente 40% após a tragédia, segundo o Instituto Guaicuy, que acompanha as comunidades afetadas.

Apenas na região, seriam 13 mil pessoas atingidas direta e indiretamente, em oito cidades, sem serem reconhecidas como tal. Júlia Carvalho, coordenadora de estudos econômicos do Guaicuy, explica que o entendimento da Justiça e da Vale em relação ao caminho seguido pela lama de rejeitos fez com que o grupo ficasse “de fora”.

— Isto acontece porque para eles [Vale e Justiça], os resquícios do rejeito ficaram retidos na Usina Hidrelétrica Retiro Baixo, na cidade de Pompéu, que fica antes do lago de Três Marias. Então eles acreditam que a lama não chegou até lá.

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Arte R7

A pescadora Maria Aparecida Marques, de 54 anos, no entanto, defende que a teoria não foi suficiente para conter os impactos e convencer a população de que está tudo bem com o leito d’água.

— Os donos de peixarias de Curvelo, Sete Lagoas e Belo Horizonte costumavam comprar conosco. Após a tragédia, eles pararam de nos procurar. Às vezes acontece do cliente falar claramente que não quer peixe de Três Marias por medo de estar contaminado.

Nas palavras de Maria Aparecida, a venda em 2019 e em 2020 “foram mínimas”. A pescadora calcula que sobraram 400 kg de peixe da última temporada que ficaram parados no freezer da família. Com a redução da renda, ela e o marido se viram obrigados a procurar serviços extras como faxineira e servente de pedreiro.

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Júlia Carvalho ainda acrescenta que a fuga não foi apenas dos compradores. Turistas que procuravam a região para esportes náuticos e para pesca teriam ficado inseguros de ter contato com as águas.

Levantamento do Instituto Guaicuy mostra que no Carnaval de 2019, logo após o rompimento, as pousadas perderam 70% dos clientes. O grupo não atualizou os dados em 2020, mas representantes do setor relataram à instituição que ainda não foi possível atingir o mesmo patamar dos outros anos.

— Estamos trabalhando na Justiça com a ideia de dano à imagem e à reputação. Se um terceiro acaba com a reputação do seu negócio, ele é obrigado a reparar de alguma forma.

Análises preliminares do instituto indicam a presença de metais pesados em trecho do rio depois da hidrelétrica de Retiro Baixo, principalmente após a temporada chuvosa de 2020, que teria movido os sedimentos que estavam no fundo do leito. No entanto, o grupo prepara estudos aprofundados para avaliar a qualidade do pescado e da água da Represa de Três Marias.

Efeito cascata

Enquanto as análises não ficam prontas, a redução na pesca afeta todo um ecossistema financeiro e cultural de comunidades que vivem entre a represa e Brumadinho.

A 170 km de Três Marias, donos de barracas dedicadas à venda de produtos para pesca perceberam que as visitas dos clientes se tornaram mais escassas. As lojas construídas com lona e madeira ficam na BR-040, na altura da cidade de Caetanópolis, em local estratégico para quem segue da Grande Belo Horizonte com destino à represa.

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Yuri Edmundo/EFE - 26.01.2019

O ponto costuma ser uma parada tradicional dos pescadores que vão para a região de Três Marias, sejam eles profissionais ou amadores. Além de instrumentos como varas, anzol e molinetes, os vendedores comercializam ração para peixes e um tipo de minhoca conhecida como minhocuçu, que pode chegar a até 60 centímetros de comprimento. Pescadores costumam usá-las como isca.

Moacir da Cruz, de 59 anos, tem uma barraca no local há três décadas. Ele estima que perdeu 40% do faturamento após o rompimento da tragédia com a barragem da Vale. Por isto, ele e os outros vendedores do espaço, que ficou conhecido como Shopping das Minhocas, reivindicam serem reconhecidos como afetados pelo rompimento.

— Como caiu muito a pesca na região, as pessoas pararam de vir aqui. No início foi ainda mais difícil. Agora os pescadores estão voltando aos poucos.

Orgulhoso, Cruz conta que criou os quatro filhos com o dinheiro da barraca. Agora, ele agradece por saber que os filhos já não dependem financeiramente dele, uma vez que a renda ficou escassa.

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Fim de tradição

Outra consequência da situação narrada por Cruz refletiu dentro da comunidade quilombola Potinha, em Paraopeba, a 99 km de Belo Horizonte e a 131 km de Brumadinho. A vila, onde vivem cerca de 3.500 pessoas, teve sua estrutura social abalada com a saída de jovens em direção às cidades grandes. Sem o trabalho de extração de minhocuçu, que ocorre há cerca de 200 anos na região, os adolescentes têm deixado o local para procurar oportunidades de emprego em outros municípios.

Localizada a 10 km do leito do rio Paraopeba, Pontinha ficou de fora do critério territorial para que seus integrantes pudessem receber o auxílio emergencial da Vale, mesmo que parte de sua renda dependesse diretamente da cadeia da pesca ou do trabalho em fazendas do entorno.

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Arte R7

Renato Moreira, de 42 anos, representante da comunidade, alerta que a migração tem provocado problemas sociais e colocado em risco a tradição e a memória do grupo que vive na região há ao menos dois séculos.

— Os jovens saem muito despreparados para essas cidades maiores, que têm uma realidade mais perigosa. A mentalidade de um jovem da comunidade não é a mesma de um criado em BH. Eles acabam sendo seduzidos por criminosos, pelo cenário da droga e, muitas vezes, não resistem à novidade. A gente acaba perdendo a questão do saber tradicional e eles não ficam aqui para saber o que os mais velhos teriam para passar.

Água contaminada

Além dos percalços financeiros e culturais, pescadores de algumas cidades, como Florestal, a 71 km de BH e a 56 km de Brumadinho, relatam o desenvolvimento de doenças de pele possivelmente causadas pelo contato com o Rio Paraopeba após o rompimento da barragem.

A situação vai ser levada para análise pelas associações que representam as comunidades e também tentam reconhecer essas pessoas como atingidas. Segundo os moradores, as alergias costumam desaparecer após longo prazo sem contato com as águas.

Marcelo da Fonseca, diretor-geral do Igam (Instituto Mineiro de Gestão das Águas), explica que pesquisas realizadas pelo órgão desde o rompimento apontam que a qualidade da água no rio vem melhorando, com a redução da turbidez e da presença de metais pesados. O representante do órgão estadual destaca, no entanto, que ainda não é possível garantir com segurança a qualidade dos recursos do leito.

— Logo após o rompimento, houve uma recomendação expedida pela Secretaria de Saúde e Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos suspendendo a utilização da água do rio, de forma bruta, entre Brumadinho e a Represa de Retiro Baixo. Esta proibição ainda continua muito em função da ausência de informações claras indicando que não há risco à saúde humana.

Outro lado

Procurada pela reportagem, a Vale destacou que o auxílio emergencial de até um salário mínimo pago aos moradores do entorno do rio Paraopeba, com previsão para acabar em janeiro de 2021, foi previsto em acordo judicial homologado em 2019 “para compensar de forma rápida as pessoas impactadas e garantir segurança financeira às famílias”.

“Atualmente, 106 mil pessoas recebem até um salário mínimo mensalmente e não há pagamentos em atraso. Conforme o Termo de Acordo Preliminar, a prorrogação do pagamento é válida até o dia 31 de janeiro. Todos os beneficiários podem consultar dados oficiais e status sobre o pagamento do auxílio na plataforma valepagamentosemergenciais.com ou pelo canal direto Alô Indenizações (0800 888 1182). A empresa esclarece, ainda, que está analisando a lista recebida pela Aedas e dará um retorno à assessoria técnica em breve", destacou em nota.

Sobre a situação dos vendedores, pescadores, comunidade quilombola e parte da tribo indígena que tentam até hoje serem reconhecidos, confira a nota da Vale na íntegra:

Desde as primeiras horas após a ruptura, dois anos atrás, a Vale tem cuidado das famílias impactadas, prestando assistência para restaurar sua dignidade, bem-estar e meios de subsistência. Entre as comunidades assistidas estão as populações ribeirinhas do rio Paraopeba ao longo de 250 km da calha do rio. A empresa ressalva, por oportuno, que a região do Lago Três Marias não foi impactada pelo rompimento, não havendo proibição à utilização de sua água pela comunidade.

Qualquer pessoa que se considere atingida pode procurar o escritório de indenizações, que já fez acordo com 8,7 mil pessoas, sendo 1,6 mil por meio da justiça trabalhista e 7,1 mil pessoas em indenizações cíveis.

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Yuri Edmundo/EFE

Reportagem: Pablo Nascimento e Lucas Pavanelli
Edição: Flávia Martins y Miguel e Thiago Calil
Arte: Bruna Santana e Matheus Vigliar