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Crônica de gastronomia perde Nina Horta

Colunista morreu no último domingo (6), aos 80 anos, vítima de uma infecção generalizada

Folha de Pernambuco|

Colunista morreu no último domingo (6), aos 80 anos, vítima de uma infecção generalizada
Colunista morreu no último domingo (6), aos 80 anos, vítima de uma infecção generalizada Colunista morreu no último domingo (6), aos 80 anos, vítima de uma infecção generalizada

Quase toda a fotografia é um mar de lama e árvores derrubadas, resultado do rompimento da barragem de Brumadinho. No canto direito da imagem, resiste uma casinha, em uma pequena chácara agora desabitada. “Ela que gostava de cozinhar, não tinha como, é certo, mas o fogão estava lá, as panelas de ferro muito bem curtidas, as colheres de pau que o artista da cidade moldara para eles há muito tempo dependuradas na parede”, imagina a cronista Nina Horta. “Não conseguia entender. Quase todos mortos, e o socador de alho lá firme, como se nada houvesse acontecido. Balançou a cabeça para sacudir esse tipo bobo de pensamento”, completa, certamente sabendo que, de bobo, o pensamento nada tinha.

A imagem da tragédia foi o mote para o último texto da colunista do jornal Folha de S.Paulo (FSP), publicada em fevereiro. A autora mineira morreu no domingo (6), aos 80 anos, em São Paulo, cidade onde morava desde os anos 1960. Formada em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), encontrou-se na comida: foi sócia do bufê Ginger de 1985 a 2012 e escreveu para o jornal de 1987 a 2019. Algumas de suas crônicas foram reunidas em livros: “Não é sopa”, de 1995, e “O frango ensopado da minha mãe”, de 2015, vencedor do prêmio Jabuti na categoria Gastronomia - ambos editados pela Companhia das Letras. Também traduziu livros como “Sal, gordura, ácido, calor: os elementos da boa cozinha”, de Samin Nosrat, lançado este ano.

A língua inglesa tem a expressão “food writer”, que pode ser traduzida ao pé da letra como “escritor de comida”, para definir uma gama de profissionais que trabalham com a escrita do que vai à boca, sejam jornalistas, críticos gastronômicos, cronistas ou historiadores. É na crônica - esse gênero que se localiza entre o jornalismo e a literatura, tomando a inspiração cotidiana do primeiro e o burilamento narrativo da segunda - que Nina habita. A morada de um dos gêneros mais nobres da imprensa aqui, porém, é a cozinha. Se isso soa algo rotineiro na contemporaneidade, é primordial deixar claro que falar de comida não tinha tal status há 32 anos, quando ela começou a publicar na FSP.

O questionamento sobre por que escrever sobre comida é quase unânime aos precursores desse caminho - por parte dos outros, é bom deixar claro. Em 1943, no livro “The gastronomical me”, a food writer americana MFK Fisher já se indignava com quem não compreendia como ela usava seu talento literário para falar de um tema então tido como menor. “Eles perguntam isso me acusando, como se eu fosse, de alguma forma, inaceitável, infiel à honra do meu ofício”, espanta-se. “Há uma comunhão que vai além dos nossos corpos quando o pão é repartido e o vinho bebido. E essa é minha resposta, quando as pessoas me perguntam: por que você escreve sobre fome, e não sobre guerras ou amor?”

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Quando Nina começa a escrever para a FSP, em 1987, a própria ideia de gastronomia ainda estava se firmando no País. Ele estreia no caderno Casa e Companhia e migra para o suplemento cultural Ilustrada em 1993. Paralelamente a isso, o periódico abriga o caderno Comida, em sua primeira versão, de 1988 a 1992 - somente em 2011 o suplemento voltaria a ser editado. Juntamente com a coluna “À mesa como convém”, veiculada de 1975 a 1997 no Jornal do Brasil e assinada pelo cronista e crítico Apicius, a editoria da FSP é um marco da virada gastronômica, momento de transição em que a culinária é substituída pela gastronomia no jornalismo brasileiro.

A virada gastronômica, tema da minha pesquisa de doutorado, é um período em que a forma como a comida é abordada pelo jornalismo muda sob diversos aspectos: a editoria migra da feminina para a de cultura e lazer; o gênero textual foge da receita para a crítica e a reportagem; o enfoque parte da prática ao discurso; o espaço sai da casa e entra no restaurante; o protagonista deixa de ser a cozinheira para virar o chef; e a abordagem, enfim, deixa de ser cotidiana para se tornar cultural. A contextualização histórica é importante, pois Nina faz parte dessa virada. Se os primeiros textos são comedidos e informativos, logo a autora começa a desenvolver o estilo que a tornou referência no Brasil.

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“Foi a Folha a primeira a me dar a oportunidade de escapar do formato rígido da coluna de culinária, ao me deixar falar sobre o que quisesse. Com isso abriu também as portas para todos os outros cronistas de comida presos nas grades da receita comentada. Pude escrever sobre o último livro, um filme, a empregada nova, o torresmo, tudo muito fugaz e rápido, como convém a esta parte do jornal, e do único jeito que sei fazer. Não levantei bandeira séria, mas espero que, pelo menos, esteja clara e patente a implicância solene contra todo tipo de esnobismo associado à comida”, resume a autora em uma das crônicas reunidas na coletânea “Não é sopa”.

Comida é, antes de tudo, cultura, e Nina sempre soube disso muito bem. Não são apenas temas fortes como o crime ambiental de Minas Gerais que semeiam assuntos para seus textos, mas qualquer observação do dia a dia. “Comida de alma é aquela que consola, escorre garganta abaixo quase sem precisar ser mastigada, na hora de dor, de depressão, de tristeza pequena”, sentencia em uma crônica que já virou um clássico. “Não é, com certeza, um leitão pururuca, nem um menu nouvelle seguido à risca. Dá segurança, enche o estômago, conforta a alma, lembra a infância e os costumes. É a canja da mãe judia, panacéia sagrada a resolver todos os problemas existenciais”, receita.

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Nina não somente conta boas histórias, mas também lança mão das suas habilidades práticas. Dona de um bufê e cozinheira de mão cheia, ela sabe do que está falando quando comenta uma técnica ou uma receita, sempre de forma crítica. Isso não quer dizer, no entanto, que cozinhar seja para iluminados apenas. Basta, segundo ela, ter antes de tudo coragem: “Cozinhar é um modo de se ligar, de se amarrar à vida com simplicidade. E o bom é que cozinhar é preciso, mas cozinhar bem não é preciso, o que dá um certo grau de alívio e liberdade de movimentos”, define, parafraseando Fernando Pessoa. “Aprender a cozinhar é uma questão de atitude, de peito. Mais ou menos como saltar de paraquedas.”

Em mais de três décadas escrevendo sobre o tema, Nina não deixou os excessos da gastronomia passarem batidos. Uma das lições mais relevantes que ela deixa - e que serve para quem escreve, lê, cozinha, come e ama comida - é não se levar a sério demais e se lembrar de curtir bastante o caminho: “Espero que se divirtam tanto quanto eu, lembrando sempre das palavras de um cronista de cozinha ao ver a seriedade com que seus colegas tratavam as listas de in e out, as modas, os restaurantes e suas estrelas. ‘Pelo amor de Deus, não se esqueçam que não estamos discutindo o destino do mundo livre. É só o kiwi, minha gente!’”

*Renata do Amaral é jornalista, gastrônoma e doutora em Comunicação pela UFPE

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