Memoriais online não deixam que pessoas sejam apenas estatísticas
Folha de Pernambuco"Livre, sem limites e sem amarras". De acordo com seus netos, era assim que 'Seu' Orlando, 79 anos, gostava de viver. Já Vanessa, aos 27, era tida por sua melhor amiga como "anjo da guarda, muito antes de partir" e Dona Maria Albani, aos 93, "era sol" para o seu companheiro de sete décadas e para os filhos que deixou para trás quando teve a sua vida ceifada, assim como os demais, pelo coronavírus.
As aspas destas linhas iniciais foram extraídas de trechos de depoimentos de parentes e amigos de vítimas da pandemia Brasil afora, trazidos para o "Inumerários", projeto que serve como uma espécie de memorial dedicado à história de cada um dos mortos pela Covid-19 no País, assim como também para acalentar centenas de famílias que não podem participar dos rituais de despedida pela perda dos entes - transformados diariamente em estatísticas e trazidos de volta " à vida ", como pessoas que eram, detentoras de histórias.
Leia também: Instituto Moreira Salles vai destinar R$ 500 mil a artistas na quarentena Secretaria de Regina Duarte ainda não reagiu a estragos do coronavírus na cultura Mercado de arte prega união para enfrentar pandemia, mas elo mais frágil é o artistaFoi essa a ideia do artista paulistano Edson Pavoni que junto ao amigo Rogério Oliveira e outros colaboradores criou o que ele chama de "projeto artístico-poético-jornalístico-colaborativo", corporificado pelos versos que descrevem a página do memorial no Instagram (@inumeraveismemorial): "Não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa".
"Quando escrevemos e publicamos também vem um processo de cura por meio de celebração da vida estava ocorrendo ali, sabe? Porque todo dia a gente acorda e tem um número novo de mortos, e depois de um tempo a gente vai perdendo a conexão com esses números, que deixam de ser significativos e a gente vai ficando insensível", contou ele em conversa com a Folha de Pernambuco.
Além dele e do Rogério Oliveira, Alana Rizzo, Rogério Zé, Guilherme Bullejos, Gabriela Veiga, Giovana Madalosso, Rayane Urani, Jonathan Querubina e outros voluntários se mobilizam para adicionar histórias ao memorial, que pode ser acessado também por meio do site inumeraveis.com.br.
À disposição, narrativas como a contada pelo filho de Estela, paulista de 51 anos, vitimada pela Covid-19, que todos os dias acordava sorrindo, orgulhosa em vê-lo formado. Ou a de Mirian Rossentini, narrada pela filha, a quem ensinou o significado de "Cálice", canção de Chico Buarque. Tem também a do pernambucano Admário Lucena, 69 anos, "tricolor, emotivo e folião arretado. Futuro vovô do Vicente", dizia um trecho do testemunho da filha, Rebeca de Menezes.Rostos e histórias
Registros das vítimas também podem ser acessados no Memorial das Vítimas do Coronavírus no Brasil, no Facebook, iniciativa da Rede de Apoio às Famílias de Vítimas Fatais de Covid-19, que homenageia em vídeos, fotografias e histórias os mortos pela doença e acalenta, com isso, centenas de famílias que se despedem dos seus entes por meio do que lhes é oferecido na página produzida por voluntários.
Outra forma de preservação da memória dessas pessoas partiu da antropóloga Debora Diniz, que buscou na arte inspiração para reproduzir biografias de mulheres mortas pela Covid-19 no Brasil, dando rostos a elas e mensurando suas histórias através de ilustrações do artista Ramon Navarro.
No Instagram (@reliquia.rum) há faces sensivelmente contextualizadas, tornando visível o que até então era invisível ou, no máximo, trazido como números. Na descrição da página o projeto é retratado como "Relicários são restos, aquilo que sobrou. Aqui são relicários de uma epidemia no Brasil". Um desses mais recentes põe em destaque o rosto de uma mulher de Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife (RMR), levada pelo coronavírus aos 38 anos, cuja imagem traz a seguinte legenda: "Morreu pai, morreu mãe, morreu ela. Foi a última a ir. Só ela soube que cada um ia morrendo. Morreu sozinha".
INUMERÁVEIS: CONEXÃO COM O MUNDO
Com algumas instalações artísticas previstas, em Portugal e em Tóquio inclusive, Edson Pavoni teve suas manifestações canceladas por causa da pandemia que assola o mundo. Em contrapartida, pensando em novas formas de expressão (e de fala), ele sentiu a necessidade de se conectar com a realidade da doença no Brasil, mais especificamente dos óbitos ocasionados pela Covid-19, e mais precisamente ainda, pelos números e estatísticas que dia após dia vêm substituindo nomes, rostos, histórias e famílias que se vão, levadas pela infecção.
"Será que se a gente contar histórias dessas pessoas, vamos conseguir ter uma conexão mais profunda do que está acontecendo?", questionou ele ao lado do amigo Rogério Oliveira, um dos seus parceiros na construção do Inumeráveis.
Novas formas de fala
"Durante a quarentena tenho buscado novas maneiras de falar, de expressar, propondo novos imaginários. Quis alguma coisa que me conectasse com o presente, com o que está acontecendo, com esse momento tão profundo e foi em uma conversa com o Rogério que surgiu a ideia de criar o memorial. Será que se a gente contar essas histórias vamos conseguir ter uma conexão mais profunda com o que está acontecendo? Vem do sentimento de inconformidade".
Pessoas não são números
"Todo dia a gente acorda e tem um número novo de mortos, e depois de um tempo a gente vai perdendo a conexão com esse número, que deixa de ser significativo e a gente vai ficando insensível. Então a nossa primeira hipótese foi: se a gente contasse a história dessas pessoas, se isso funcionaria. Eu tinha receios do que seria mexer com isso, não sabia se ia ser bom.
Mas conheci alguns familiares de vítimas da Covid-19 e junto com a Alana Rizo, também é uma colaboradora desse projeto, entrevistamos essas pessoas e a primeira delas tinha perdido sogro e sogra e foi muito especial, porque o que parecia que luto, e dor, no final se tornou celebração da vida de quem esteve ali, do que elas representaram. Daí decidimos fazer o memorial, e queremos contar todas as histórias, não só uma delas, mas todas"
Inumeráveis
"O projeto se chama Inumeráveis porque parte do raciocínio poético de que os números não conseguem penetrar no coração. É um projeto artístico-poético-jornalístico-colaborativo, é uma obra em si, mas também é um exercício de prosa do jornalismo".
Histórias eternizadas
"É um processo curativo, orgânico, que adiciona energia. Queremos contar histórias que podem ser contadas, e que queiram ter os nomes eternizados em um memorial. É muito comum que o processo de contar história leve a pessoa para um sentimento de celebração da vida, é a coisa mais comum que conecta todas as histórias já ouvidas pelo projeto".