Conscientemente, ou não, você automaticamente duvidaria. Essa desconfiança em caráter permanente solidificou-se depois que o jornalista Vladimir Herzog apareceu morto, dentro de uma cela, nas dependências do órgão repressor nos anos de chumbo, que por final funcionava nos fundos de uma delegacia, a 36ª em São Paulo. Apesar de ser palco de casos infernais, fica num bairro chamado Paraíso. Forjou-se um suicídio, na verdade assassinato: Herzog apresentou-se voluntariamente, chegando de táxi no lugar sinistro e saiu de lá dentro de um caixão de metal lacrado.
Troquemos a delegacia. Não mais 36ª, agora a 4ª, na rua Marquês de Paranaguá, jurisdição de um caso, num começo de madrugada, em que um homem foi alvejado à queima-roupa por dois disparos de arma de fogo, na garagem de um prédio em bairro nobre. Tinha tudo para morrer, mas não morreu, embora ficasse gravemente ferido.
Pensou-se num ladrão e em como teria conseguido entrar no condomínio de máxima segurança. O homem, agonizante, foi levado para um hospital. Era um empresário e morava com a esposa num luxuoso apartamento. No mesmo prédio, residia também a filha única com o marido.
Cirurgia de emergência. Corre-corre entre homens e mulheres vestidos de branco. Tempo passando seria a vida indo embora. Enquanto isso, a Polícia, sem nenhuma pista ainda para descobrir o que havia acontecido, chamou o marido da filha para prestar esclarecimentos. O sogro teria algum inimigo? Estava sofrendo algum tipo de ameaça? Alguém lhe devia dinheiro? Perguntas básicas para o início de uma investigação.
Na delegacia da Marquês de Paranaguá, próxima à Augusta, o genro se dizia estupefato, perplexo, sem fazer a menor ideia de quem poderia ter feito aquilo. Foi então, depois de cerca de quinze minutos de depoimento, que tudo aconteceu.
O cauteloso escrivão de polícia que tomava o depoimento, levantou-se para atender a um telefonema e depois de algum tempo retornou com um sorriso nos lábios. Afagou as costas do genro e disse: “Parabéns. Era do hospital. Seu sogro está fora de perigo”.
O genro esboçou um sorriso tímido. O escrivão mostrou euforia em transmitir a boa notícia. Ele, nem tanto. Mas poderia ser uma compreensível reação com as emoções chocantes daquela hora.
Mais alguns minutos, escrivão perguntando, genro sem ter muito que contar, e de repente, novo telefonema. O escrivão, mais uma vez, se levantou. Ainda estava ao telefone quando ouviu o barulho forte de um estampido. Correu e... o genro já estava morto, com um tiro na cabeça, dentro do banheiro.
O escrivão entrou em pânico. Só estavam ele e o genro na sala da delegacia. Como explicar aquilo? Nem ele tinha explicação alguma. Pior: quem iria acreditar? Atônito, o escrivão acordou seu chefe que estava em casa, o delegado-titular. Ambos sabendo que teriam de deixar muito bem claro aos seus superiores hierárquicos que coisa esquisitíssima era aquela.
Massilon era delegados dos bons. Tinha sólidas experiências como investigador e agora, como delegado-titular, sabia muito bem o que fazer diante de um misterioso caso de autoria desconhecida. Este, era particularmente intrigante: um homem havia se matado dentro da sua delegacia e ele mesmo estava cheio de dúvidas quanto ao que o escrivão estava lhe informando.
SOLUCIONANDO O CASO
Cada detalhe, por mais insignificante que parecesse, seria fundamental para esclarecer os fatos. Um sogro, um genro, o ponto central girava em torno deles. Haveria uma interligação?
Primeira pergunta: por que o sogro estava na garagem? Descobriu-se: a esposa dele fora internada para uma cirurgia. A filha, por sinal única, estava em casa dormindo com o marido, o morto no banheiro da delegacia. Primeira resposta: o pretexto para o sogro estar na garagem foi justamente o genro, que telefonou para ele na madrugada, dizendo que precisavam conversar urgentemente, pois haviam acabado de ligar do hospital e os dois precisavam se falar sozinhos para a esposa — filha dele — não acordar. Ambos se encontrariam na garagem. O sogro desceu imediatamente.
Frente a frente na garagem, o genro efetuou os disparos. O sogro tombou. O genro retirou-se, certo da execução consumada, foi para seu apartamento e voltou a deitar-se com a mulher. Estava praticado, pensou, aquele que seria o crime perfeito. O álibi seria insofismável. Mas, como ensinou o Sherlock Holmes, de Conan Doyle, essa perfeição não existe e sim, investigações imperfeitas. Não foi o caso.
Segunda pergunta: por quê? Há sempre uma razão para tudo, uma motivação fruto de objetivo traçado, um rancor, uma vingança... O leque de investigação sobre um homicídio é bem amplo. As descobertas podem ser familiarmente desagradáveis. Aqui, foram particularmente chocantes.
A filha única do sogro seria a herdeira natural de muitos bens. O genro não era achegado ao trabalho, apesar das oportunidades privilegiadas oferecidas pelo sogro empresário. Então, quando ele morresse, o genro ficaria no super bem-bom. A simulação de um assalto pareceu-lhe ideia de gênio. A internação da sogra surgiu como sendo a ocasião ideal para o plano assassino arquitetado em minúcias.
De fato, no início das investigações, não havia como suspeitar do genro. Afinal, contava a esposa, ambos estavam juntos, dormindo na cama do casal. E disso ela tinha absoluta certeza, como jurou à Polícia. A detalhada investigação esclareceu: o genro, mostrando-se extremamente gentil, ofereceu um relaxante suco à esposa antes de dormir. Misturou algo para uma rápida sonolência. Vestiu o pijama e deitou-se ao lado. Quando ela adormeceu, o plano começou a ser colocado em prática.
Pergunta final: e na delegacia, como ele deu um tiro contra si mesmo se havia chegado lá desarmado? O delegado Massilon Bernardes, que mais tarde seria o criador de um novo departamento da Polícia Civil, o Demacro, apurou: a arma de fogo era do escrivão. Mas como essa arma do policial foi parar nas mãos do genro?
Detalhes de Sherlock: o escrivão guardava a arma na gaveta da mesa, semiaberta. Quando ele se levantou para atender ao telefonema do hospital (onde sempre fica um investigador de plantão), o genro a viu. A frase do escrivão, com tapinhas nas costas do genro, informando que o sogro estava fora do risco de morte, explodiu como o um petardo na cabeça. O que as palavras significavam? Que, fora de perigo, o sogro informaria: foi meu genro quem atirou em mim. Tomou a decisão em segundos: apanhou na gaveta a arma do escrivão, foi para o banheiro e... pum!
Essa foi numa das investigações mais surpreendentes que conheci e vários de seus métodos foram, e são, por mim utilizados no jornalismo criminal, que transita numa passarela imaginária por onde desfilam todos os tipos humanos imagináveis. É como se fosse possível observar toda a sociedade por um também imaginário buraco de fechadura, um espetacular e desprezado laboratório de comportamento humano.