Dias de luta, dias de guerra
Essa semana, o mais perto que consegui chegar do confronto sangrento entre Rússia e Ucrânia foi ouvindo histórias de quem, praticamente, se viu no meio do fogo cruzado. Aquele era o lado humano do conflito.
Conversa de Repórter|LUCAS CARVALHO, do R7 e Lucas Carvalho
Não consigo nem imaginar como deve ser a cobertura de uma guerra. Vejo repórteres experientes, como Roberto Cabrini, e, por alguns instantes, penso em como seria se eu estivesse lá. Não porque sonho em estar no meio de um conflito. Mas, apenas, pelo exercício de me desafiar, mesmo que mentalmente. É preciso ter, além de coragem, conhecimento de mundo e sensibilidade ao tratar do assunto mais importante do planeta no momento.
Essa semana, o mais perto que consegui chegar do confronto sangrento entre Rússia e Ucrânia foi ouvindo histórias de quem, praticamente, se viu no meio do fogo cruzado. Acompanhei, no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na grande São Paulo, a chegada dos jogadores brasileiros, que atuam em times da Ucrânia e que vieram embora depois de uma dolorosa saga.
Nós não tínhamos quase nada de informação. Sabíamos que esses atletas poderiam chegar a qualquer momento. A gente estava no escuro trabalhando com suposições sobre quais poderiam ser os voos mais prováveis. Num primeiro momento, a espera se tornou tensa porque as incertezas faziam a gente não desgrudar os olhos do painel de horários e do portão de desembarque. Além disso, nem todos eram conhecidos – pelo menos, não por mim, que não tenho tanta intimidade com esporte.
Outros colegas repórteres e cinegrafistas iam chegando. Aos poucos, o saguão do aeroporto ficou tomado por câmeras e microfones. Entre nós, jornalistas, íamos trocando informações. Essa parceria é sempre fundamental pra todo mundo. Um sempre sabe alguma coisa a mais e, assim, a gente vai se ajudando. Era interessante que falávamos um pro outro: "Vamos abordar quem tiver pinta de jogador". Como se isso estivesse estampado no rosto de alguém, né? Mas é que jogador, geralmente, tem uma postura peculiar.
Abordávamos, também, familiares que estavam à espera de passageiros. Tentávamos descobrir a todo custo se alguém, ali, estava aguardando algum jogador brasileiro. Era a forma que tínhamos pra descobrir alguma coisa. No domingo, três atletas haviam desembarcado em São Paulo. Na segunda-feira, ninguém apareceu.
No dia seguinte, a correria foi gigante. Descobrimos que o jogador Renan Oliveira, do time ucraniano Kolos Kovalivka, havia desembarcado no aeroporto com uma amiga ucraniana. A família do atleta estava em peso aguardando a vinda dele. No entanto, a moça que estava com ele teve problemas na chegada. Ela ficou retida por não ter apresentado a carteirinha de vacinação contra a Covid-19 - documento obrigatório para os viajantes. Falava-se, inclusive, na possibilidade de ela ser deportada. Todo aquele clima de expectativa aumentava, ainda mais, a tensão. Consegui conversar com a mãe de Renan, que não saia do celular, na tentativa de saber do filho o que estava acontecendo.
Entramos, ao vivo, no Balanço Geral Manhã com essa notícia urgente. Ali, ficamos um bom tempo no ar acompanhando toda a movimentação. Quando o jogador passou pelo portão, mostramos o reencontro emocionante. Foi uma sequência de abraços. Nessa, nós, repórteres, acabamos nos tornando inconvenientes. Na adrenalina do jornal, ao vivo, eu precisava arriscar e tentar pegar uma palavrinha dele. Chamei-o repetidas vezes. Até que ele se aproximou de mim e dos meus colegas que também buscavam essa entrevista.
"É uma situação jamais vivida. No Brasil, acho que a gente nunca vai viver uma situação nem próxima do que eu passei agora. É uma sensação de alívio de poder chegar e ver minha família e eles veem que estou bem, que graças a Deus consegui sair. Agora é orar para as pessoas que continuam lá", disse Renan ao desembarcar.
Cada jogador trazia na bagagem – com o pouco que foi possível salvar – uma história diferente. Era aquela mistura de medo, alívio, emoção, saudade. Via-se que todos estavam esgotados fisicamente e emocionalmente. Entre tantos depoimentos que ouvi, certamente, o que mais me emocionou foi o da influenciadora Lyarahh Vojnovic, esposa do jogador Maycon Barberan, do Shakhtar Donetsk.
Assim que viu a família, de longe, ela correu para os braços dos pais. Muito emocionada, ela gritava de felicidade. Logo depois, vieram o marido e os filhos, de dois e quatro anos. Entre tantas perguntas, quis saber se lá eles passaram fome. "Minha mãe me perguntava: 'Filha, vocês conseguiram levar algo pra comer?' e eu falava: 'Mãe, as crianças, graças a Deus, não estão passando fome. Deu tempo da gente pegar duas maçãzinhas'. Eu tenho dois filhos, peguei duas maçãzinhas e meus filhos comeram. No momento que eu vi o caroço da maçã eu falei: 'É agora que eu vou matar minha fome'. Peguei o caroço da maçã e comi".
Em outro momento, ela disse que o filho pequeno, sem entender a gravidade do que estava acontecendo, olhou, admirado, para um tanque de guerra passando na rua e achou aquilo muito bonito. Não houve, sequer, um momento em que as palavras dela não tenham sido acompanhadas por lágrimas.
Mais do que ver pela TV as notícias sobre a guerra, ter ouvido esses relatos me fizeram compreender melhor tudo o que está acontecendo. Sim, aquelas pessoas tiveram que voltar a um passado recente pra nos aproximar da tensão vivida na Europa. Aquele era o lado humano do conflito. O lado de quem teve medo de não conseguir voltar. Se pra mim, que estou aqui no Brasil, essa cobertura já foi desafiadora, imagino para os repórteres que estão lá, vendo, vivendo e relatando tudo de perto.
Evidentemente que as experiências não se comparam. Mas há algo que, arrisco dizer, me parece semelhante: o exercício do olhar atento, da adrenalina, da expectativa, da curiosidade, da emoção, da empatia. Mais do que isso, a reflexão sobre o quanto o ser humano deixa de ser humano em busca de poder e controle. Porque, no final das contas, não haverá vencedor. Haverá cheiro de sangue, rastro de destruição e mentes abaladas. Talvez, abaladas pra sempre. Uma guerra transforma homens em máquinas de matar, mas não os ensina a continuar vivendo.
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