Faca de dois gumes
Trabalhar como repórter policial é acordar e dormir pedindo proteção a Deus. É ter coragem e medo ao mesmo tempo. É ser taxado de "carniceiro", sensacionalista, urubu e mais um monte de coisa impublicável.
Conversa de Repórter|LUCAS CARVALHO, do R7 e Lucas Carvalho
Estávamos no horário de descanso. Paramos numa padaria pra tomar café. Na hora de ir embora, ali mesmo, na fila do caixa, a funcionária vira pra mim e pergunta: "Quem morreu pra vocês estarem aqui por perto fazendo reportagem?"
Dei uma risadinha, sem graça, e respondi: "Não, ninguém. Viemos na 25 de março pra falar sobre as máscaras, que não serão mais obrigatórias em locais abertos". A moça, apenas, retrucou com um simples: "Ah, tá".
Não é a primeira vez que isso acontece. Geralmente, as pessoas costumam associar a presença da imprensa a acontecimentos negativos."Quem matou quem pra vocês estarem aqui?", já ouvi. Juro que entendo a reação das pessoas. Ao mesmo tempo, bate aquela sensação de tristeza ao parecer que sou um porta-voz de notícias ruins.
Faz parte do jogo. Em geral, os noticiários vêm carregados de histórias tristes, mesmo. O jornalismo policial traz essa carga negativa não só para o telespectador, mas também para o repórter.
Todos os dias, por exemplo, costumo noticiar casos de ladrões disfarçados de entregadores de comida por aplicativo, em São Paulo. Eles usam aquelas mochilas pra não chamar a atenção e acabam atacando as vítimas. Há pouco tempo, voltando à pé da academia, passei por uma rua onde um motoqueiro estava parado debaixo de uma árvore. Foi involuntário. Levei a mão ao bolso como se estivesse protegendo o celular e meus cartões.
Passei por ele, desconfiado, rezando pra não ser assaltado. Quando já estava distante, pensei comigo mesmo: "De tanto falar sobre isso no jornal, eu mesmo estou ficando paranoico". Me senti mal por ter julgado o rapaz, mas essa foi a única reação possível diante do que vejo e noticio diariamente. Bandido não tem cara, cor, crachá de identificação nem nada do tipo.
Imagino, então, como o telespectador se sente quando liga a TV e recebe aquela enxurrada de notícias ruins. Há quem pense que tudo é por audiência. Mas, na verdade, esse tipo de informação cumpre o papel de alertar, ainda que nos traga medo. Não é o jornalista que cria ou gosta de histórias tristes. É que faz parte do ofício narrar o que acontece. E, infelizmente, o que a gente mostra é um recorte da realidade.
Um dia desses, parado numa lanchonete, a TV estava ligada e eu ouvi um cliente dizendo: "Credo, só tem tragédia nesses jornais". Ele está errado? Não, não está. A gente, como repórter, às vezes, diz a mesma coisa. Mas e aí? A solução é não mostrar? Penso que não. Muitas mazelas já foram evitadas ou amenizadas por conta da exposição a que foram submetidas na mídia.
É uma faca de dois gumes. Mostrar assusta, amedronta, causa pânico. Só que, ao mesmo tempo, é um grito de socorro. É um pedido de mudança. É uma forma de clamor. Eu, sinceramente, adoraria não ter mais que falar de crime todos os dias. Até porque, dependendo da história, eu fico meio baqueado. Levo pra casa o que deveria deixar na rua. Isso sem contar os riscos que a gente encara: ameaças, agressões, cancelamento, dedo na cara.
Uma vez, durante a cobertura de um suposto tribunal do crime, um dos presos, que seria ligado à uma facção criminosa, assim que foi liberado foi me procurar na delegacia pra tirar satisfação por uma pergunta que ele achou que eu tivesse feito. E não tinha sido eu. É que na hora, ele me viu e acabou me confundindo. Por sorte, eu nem estava mais na delegacia quando isso aconteceu. Soube depois. Foi livramento. Imagine só a situação embaraçosa.
Trabalhar como repórter policial – embora, eu não me considere um – é acordar e dormir pedindo proteção a Deus. É lidar com o trabalho e com os impactos que isso causa na vida da gente. É tentar separar uma coisa da outra. É ter coragem e medo ao mesmo tempo. É ser taxado de "carniceiro", sensacionalista, urubu e mais um monte de coisa impublicável. É você ser visto por alguém que acha que tem tragédia por onde você pisa.
Mas eu entendo tudo isso. Entendo todos os lados. Eu vivo isso. Vivo o lado jornalista, repórter, telespectador, vítima. Eu já fui assaltado trabalhando. Eu já fui personagem das histórias que eu mesmo conto. É surreal. A real é que nem eu nem você temos culpa de nada. Instituições públicas e autoridades seriam mais eficientes no combate às notícias ruins se evitassem que elas acontecessem. O problema não é o que está na TV. É o que está fora dela.
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