Feminicídio e as cicatrizes que marcam uma rua de bairro nobre de São Paulo
Nos bastidores dessa cobertura, comentava-se muito sobre o histórico negativo daquela região. Mais de uma década atrás, Eliza Matsunaga assassinou e esquartejou o marido num apartamento da mesma rua
Conversa de Repórter|LUCAS CARVALHO, do R7 e Lucas Carvalho
Por incrível que pareça, o dia até que estava tranquilo. Minha pauta já estava quase toda concluída. As entrevistas já tinham sido gravadas mais cedo, e, no caminho de volta, eu vinha rascunhando o texto. Só faltavam mais alguns ajustes que passam pelo editor e a geração do material, feita por um equipamento de transmissão via internet.
Paramos para ir ao banheiro e pegar um café. Ainda bem. O que estava por vir faria com que não tivéssemos nem sequer mais tempo de tomar uma água. Um homem, descontrolado, havia acabado de atirar contra a ex-mulher no meio da rua, na Vila Leopoldina, bairro nobre de São Paulo. Até então, seria “mais um caso” de tentativa de feminicídio. Uso aspas porque não estou aqui relativizando o crime, mas trazendo a ideia de que, infelizmente, se trata de uma notícia corriqueira.
Fomos ao local rapidamente. Estávamos distantes cerca de 30 minutos. Faríamos uma entrada ao vivo da rua com as informações atualizadas. Assim que chegamos, o cenário que encontramos era outro. Ruas fechadas, acessos bloqueados e uma intensa movimentação policial. Estacionamos onde deu e seguimos o caminho a pé.
O ex-marido, inconformado com o fim do relacionamento, seguiu a mulher e disparou contra ela no momento em que ela se preparava para entrar num carro de aplicativo. Câmeras de segurança flagraram a ação, e, em questão de minutos, fontes começavam a encaminhar os vídeos. A vítima, que havia saído com vida do local, infelizmente morreu antes mesmo de chegar ao hospital.
Um morador do bairro, socorrista de mergulho, usou todo o preparo que tinha para dar à mulher o primeiro suporte. O esforço foi em vão. “Ela saiu daqui num estado muito grave”, relatou. O atirador havia fugido e foi gravado por testemunhas ao fugir com um carro escuro.
A história passou a ficar ainda mais tensa a partir do momento em que o homem resolveu se esconder na própria casa, que ficava a 500 metros do ponto onde ele atentou contra a ex. Ao ser localizado pelos policiais, o criminoso não quis se entregar. Passou a exigir a presença do advogado e de sua terapeuta. Do 13° andar de um prédio de luxo, ele ameaçava cometer mais uma besteira se não fosse atendido.
Armado dentro de casa, aquele homem representava um risco iminente. Os policiais militares que ali estavam não conseguiram avançar nas negociações e acionaram o Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais), que é um grupo especializado nisso.
Faltavam pouquíssimos minutos para o Balanço Geral começar. As informações iam chegando e havia, naquele momento, dois cenários importantes dessa história. Abrimos o jornal diretamente, ao vivo, do local do crime. O helicóptero da Record sobrevoava o outro ponto. Foi um link movimentado, com "câmera nervosa", que mostrava detalhes e apurava tudo em tempo real.
Dali, partimos para a frente do prédio onde o atirador dava trabalho para se entregar. Numa decisão rápida, mas coordenada, nós entendemos que a notícia mais importante, naquele instante, seria do edifício.
De fato.
Foram, pelo menos, três horas de uma tensa negociação. Cada movimento nos deixava em alerta, e, direto do estúdio, o apresentador, Reinaldo Gottino, nos chamava para informar. A adrenalina do ao vivo testa todas as nossas habilidades em tempo recorde. Falar com o público, ouvir enquanto fala, observar, entender, interpretar, ser ágil e sensível: são muitas missões juntas, mas necessárias.
Em meio a tudo isso, tive uma surpresa. O capitão do Gate, Gabriel Pires, já era um velho conhecido da época em que fui repórter em Bauru, no interior de São Paulo. Naquela ocasião, ele era tenente da PM na cidade e já havíamos nos encontrado em diversas situações. "Tentei fugir de você, mas não teve jeito", disse o capitão, em tom descontraído comigo.
Tivemos pouco tempo para conversar, afinal, ele era o responsável pelo comando de uma operação extremamente perigosa. Mas confesso que não desgrudei os olhos dele, na tentativa de captar alguma informação importante e fazer uma leitura mais acertada do que estava acontecendo.
Os negociadores subiam ao prédio e desciam dele sem dar muita explicação. Era perceptível que algo muito grave estava acontecendo. Mas, na minha cabeça, a dificuldade era mesmo em convencer aquele homem a se entregar e terminar com aquilo de uma vez por todas.
Algum tempo depois, o coronel da Polícia Militar e o capitão do Gate chamaram os jornalistas para uma entrevista coletiva. Finalmente, a operação estava concluída. Estávamos todos na expectativa de que o atirador sairia a qualquer momento. No entanto, o desfecho foi outro.
O homem atirou contra si mesmo e acabou com a própria vida.
A informação foi revelada, ao vivo, durante mais uma entrada para o Balanço Geral. Todos fomos pegos de surpresa. Nem sequer ouvimos um único disparo. Mas, diante de toda aquela pressão, o pior aconteceu. Uma tragédia familiar das mais terríveis.
Nos bastidores dessa cobertura, comentava-se muito sobre o histórico negativo daquela região. A mesma rua, Carlos Weber, na Vila Leopoldina, ficou marcada por ser o endereço onde morava o casal Matsunaga. Mais de uma década atrás, Eliza Matsunaga assassinou e esquartejou o marido, Marcos, dono da indústria de alimentos Yoki.
Casos distintos, mas, ao mesmo tempo, com pontos bem semelhantes. Histórias de famílias destruídas por questões mal resolvidas, amores não correspondidos. Ao jornalismo, cabe documentar tudo isso, ainda que isso sirva como uma espécie de cicatriz das mais variadas dores humanas. Um dia, a ferida se fecha, mas nunca deixará de estar marcada.
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