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Filial do inferno  

Não sei mais por quanto tempo São Paulo vai ter que lidar com isso. Adoraria, como repórter, não ter que voltar à cracolândia pra reportar esse cenário de guerra contínuo.

Conversa de Repórter|LUCAS CARVALHO, do R7 e Lucas Carvalho

Conflitos entre comerciantes e usuários aconteceram na região central de São Paulo
Conflitos entre comerciantes e usuários aconteceram na região central de São Paulo Conflitos entre comerciantes e usuários aconteceram na região central de São Paulo

Não faz muito tempo que a cracolândia, na região central de São Paulo, era uma só. E, uma só, já dava o maior trabalho. Agora, são várias. É como se ela tivesse ganhado "filiais" muito mais difíceis de combater. O centro da capital, que é o ponto principal do problema, está um horror. Deveria ser o cartão postal de São Paulo, já que parte da história da metrópole está, justamente, ali. Mas não. É de dar medo passar por aquelas ruas.

Nos últimos dias, estive por lá de novo. Me lembro, como se fosse hoje, a primeira vez que pisei os pés na cracolândia. Eu não tinha nem três meses de São Paulo ainda. Havia acabado de chegar do interior e, de repente, me vi diante de uma megaoperação pra combater o tráfico de drogas na região. De lá pra cá, já perdi as contas de quantas vezes precisei encarar os riscos de coberturas semelhantes.

Como repórter, me cabe, apenas, o relato. Mas sempre que tenho a possibilidade de sentir, nem que por alguns instantes, o clima pesado daquele lugar e testemunhar, tão de perto, o cenário do caos, me pergunto se algum dia a cracolândia e suas filiais ficarão no passado. Sinceramente, acho que não. Posso estar abusando do pessimismo, mas esse problema, talvez, possa ser amenizado e nunca solucionado.

Desde que a Polícia Civil passou a desencadear operações pra enfraquecer o tráfico na região, houve uma mudança de comportamento dos próprios usuários. Se antes, eles pareciam isolados num canto de São Paulo, hoje, parece que estão em todos os cantos. Quase todos os dias, existem relatos de moradores e comerciantes da região central sobre ataques e invasões aos estabelecimentos. Arrastões também são frequentes.

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Na semana passada, mesmo, um grupo de usuários – liderado por criminosos – saiu pro "tudo ou nada" e passou a depredar comércios do centro. Fui o primeiro repórter a chegar ao local, com os meus parceiros de equipe, Zé Paulo e Ronaldo Gouveia. Eu já tinha recebido algumas fotos, mas quando vi aquela lanchonete toda destruída, pessoalmente, fiquei impressionado. Parecia que um furacão tinha acabado de passar por ali. E, na verdade, era.

A porta do comércio, instalado há mais de 30 anos no mesmo ponto, estava toda arrebentada. Lá dentro, tudo revirado. Outros estabelecimentos na mesma rua apresentavam marcas de violência. Assim que chegamos, nosso trabalho foi colher informações, ouvir relatos e reportar tudo, ao vivo, no Balanço Geral Manhã. Desde as primeiras horas, eu estava em busca das imagens de câmeras de segurança que pudesse ilustrar aquele episódio. Conseguimos.

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Seu Eduardo, subsíndico de um dos prédios da região, me chamou pra dentro da casa dele pra me passar os vídeos. Eram cenas impressionantes, uma completa selvageria. Conversa vai, conversa vem, e ele me disse que a situação nunca esteve tão grave. Quem mora na região, não quer mais ficar. Quem sai, não volta nem pra passear. Com isso, apartamentos bonitos e espaçosos estão ficando vazios. Ninguém pensa em comprar ou alugar um imóvel.

Quem pisa no centro de São Paulo se sente ameaçado o tempo todo. Naquela madrugada, um dos usuários da região veio em nossa direção e esbravejou: "mostrar a guarda jogando bomba na gente, vocês não mostram". Minha equipe e eu não devíamos, mas retrucamos: "e quebrar o que é dos outros, está certo?"

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O rapaz saiu gesticulando, bravo, e olhando pra trás em tom ameaçador. Cinco minutos naquela região são o suficiente pra gente entender o que se tornou a vida daqueles moradores. Não há paz. Não há sossego. Não há prazer em voltar pra casa depois de um dia intenso de trabalho. O centro da capital coleciona, hoje, histórias de dor e sofrimento. A cracolândia deve ser vista como uma demanda social, de saúde, mas também como questão de segurança pública.

Não pretendo, aqui, me estender sobre de quem seria a culpa ou querer dar uma de entendido com soluções para o problema. Está todo mundo cansado de engenheiro de obra pronta. Mas penso que algumas coisas sejam fundamentais: primeiro, deixar de tratar o tema com hipocrisia. Constantemente, guardas municipais e policiais são acusados de abuso por quem nunca nem passou por perto da cracolândia. A arbitrariedade sempre foi dos criminosos. São eles que dominam com tirania os dependentes químicos da região. Escravizam as vítimas do crack, fazendo delas verdadeiros fantoches. A violação dos direitos humanos está exatamente aí, não no conceito de internação compulsória, por exemplo.

Não é possível imaginar que um dependente químico da região da cracolândia tenha condições autônomas de decidir alguma coisa. Ainda mais sobre as formas de iniciar um tratamento. Não é assim. Na maioria dos casos, o usuário não aceita ajuda mesmo estando no fundo do poço. A internação compulsória – e não estou falando aqui de internação em massa – é a maior prova de humanidade com aquele que nem sabe mais quem é. É a chance de promover o reencontro do dependente com ele mesmo. 

Segundo aspecto: força policial, sim, até mesmo em respeito aos moradores do centro. Operações bem coordenadas são necessárias porque a luta contra o crack é diária. É uma junção de iniciativas que vão, a longo prazo, minimizar a situação, porque resolver, como disse lá atrás, é algo muito distante de ser palpável.

É preciso tornar os dependentes, independentes. Lutar por eles. Mostrar às crianças que a vida no tráfico e no vício não compensa, que um dia a casa cai. Não sei mais por quanto tempo São Paulo vai ter que lidar com isso. Adoraria, como repórter, não ter que voltar ali pra reportar esse cenário de guerra contínuo. É sempre o mais do mesmo. Se eu, que não vivo ali, já estou cansado dessa realidade, imagine quem não tem outra escolha a não ser manter-se refém, dentro de casa, optando por sobreviver ao invés de viver com dignidade.

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