Pequenas vitrines
O delegado me revelou que algumas crianças eram alugadas para servirem de isca. Ali, eu já me via incrédulo. Só que a história, que já era absurda, ficava ainda pior cada vez que eu descobria um novo detalhe.
Conversa de Repórter|LUCAS CARVALHO, do R7 e Lucas Carvalho
Sinceramente, achei que aquela operação policial não iria render muito. Quando cheguei à Delegacia do Metropolitano, instalada na Estação Barra Funda, não vi movimentação nenhuma. Achei estranho. Esperava encontrar dezenas de agentes mobilizados, armados e prontos pro combate, como de costume. Mas, não.
A única coisa que eu sabia era que a ação seria pra coibir a exploração infantil em plataformas de trem e metrô. Todo mundo, em algum momento, já deve ter visto – e, talvez, até ajudado – adultos, com crianças no colo, que pedem esmola nas estações. É uma prática comum todos os dias, mas, especialmente, no fim do ano. Era, praticamente, véspera de Natal quando a polícia decidiu intensificar as buscas por flagrantes.
De qualquer forma, tudo estava muito discreto. Cheguei a pensar que a operação tinha sido cancelada. Só depois de conversar com o delegado é que eu entendi que aquela seria uma operação completamente diferente de todas as que eu já havia reportado. Talvez, a que mais me marcou, inclusive.
O monitoramento dos alvos já tinha sido feito. Os agentes, sem chamar a atenção, se juntaram aos seguranças do metrô pra garantir que tudo sairia conforme o planejado. Durante algumas semanas, a Polícia Civil, o Conselho Tutelar e o próprio metrô mapearam plataformas e vagões. O objetivo era desvendar uma rede que explorava crianças na hora de pedir doações.
O delegado, Wellington Marinho, me revelou que algumas crianças eram alugadas para servirem de isca. Ali, eu já me via incrédulo. Só que a história, que já era absurda, ficava ainda pior cada vez que eu descobria um novo detalhe. Bebês, de colo, chegavam a ser dopados. Eles recebiam uma espécie de sonífero para que não esboçassem reação e conseguissem ficar o dia todo nas estações. Sério. Eu desacreditei.
O cinegrafista Felipe Marques e eu acompanhamos a blitz. Seguíamos atrás do pequeno grupo de policiais e agentes do metrô na tentativa de fazer os flagrantes. Não foi difícil. Já no primeiro minuto um corre-corre em plena estação. Policiais visualizaram pessoas, com crianças, em atitude suspeita. Um casal, que estava com o filho, negou que usasse o menor pra ganhar dinheiro. Eu mesmo fiz questão de perguntar. "Não, moço, jamais. É porque estamos desempregados. Por causa da pandemia, fomos mandados embora", justificaram os pais.
Repórter, geralmente, tem um feeling apurado. Mas, confesso que, ali, o meu não funcionou direito. Eu me sentia incapaz de, sequer, raciocinar. Sabe quando você fica sem saber o que pensar sobre algo? Eu estava assim. Porque, de fato, a desigualdade faz muitas famílias recorrerem às ruas em busca de ajuda. Mas, naquele caso, segundo a polícia, eu estava diante de criminosos sem o menor escrúpulo.
Um conselheiro tutelar me disse, durante a gravação da reportagem, que algumas pessoas envolvidas na rede de exploração ganhavam de R$ 200 a R$ 500,00 por dia, apenas, por estarem com as crianças. Ou seja, os menores eram uma estratégia certeira para o lucro.
Coincidentemente, a editora que montou a matéria pra ir ao ar foi a Paloma, com quem divido minha vida. O trabalho, pra variar, virou pauta em casa. Só que esse foi marcante demais. Ela, que quase não chora – estou sendo irônico, gente – não conseguiu evitar que os olhos lacrimejassem enquanto separava os pontos mais importantes da entrevista com o delegado.
Eu sequer imaginava que uma operação policial se tornaria uma das reportagens mais impactantes pra mim. Embora seja um assunto estarrecedor, ter a oportunidade de contar essa história foi algo importante porque trouxe à tona uma realidade que precisa ser conhecida. O jornalismo deve percorrer temas espinhosos, que façam a sociedade pensar e debater. Me senti repórter na mais pura essência da palavra.
Hoje, quando vejo adultos pedindo esmolas com crianças, é inevitável não me lembrar daquele dia. Não vou negar que passei a não ajudar mais, também. Posso ter sido injusto, em algum momento, porque, talvez, tenha deixado de colaborar com alguma família, realmente, necessitada.
Só que agora que sei disso tudo, prefiro levar essa "culpa" a ter que conviver com a possibilidade de ter, mesmo que indiretamente, ajudado a financiar algo que não tem preço e, sim, um valor inestimável: a inocência de uma criança.
Veja a reportagem especial exibida no Balanço Geral Manhã
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