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Conversa de Repórter

'Só porque é o Faustão...': Quando as fake news são mais bem aceitas que os fatos

Qualquer coisa pode virar verdade a depender da quantidade de cliques, curtidas e compartilhamentos

Conversa de Repórter|Lucas Carvalho, do R7 e Lucas Carvalho

Faustão passou por um transplante de coração
Faustão passou por um transplante de coração

Na porta do hospital, um batalhão de jornalistas dividia cada centímetro de espaço. Repórteres, cinegrafistas, câmeras, fios e equipamentos de iluminação formavam uma barreira que, de longe, chamava atenção. Entre um intervalo e outro, corríamos pro hall de entrada do Albert Einstein, onde havia uma mesa com café e alguns pacotinhos de bolacha. Ali, também, jogávamos conversa fora enquanto aguardávamos por novas informações sobre o estado de saúde do apresentador Fausto Silva, recém-transplantado do coração.

Em certo momento, vi uma senhora se aproximando de alguns colegas e comentando: "Tudo isso só porque é o Faustão que está aqui, né?", dando a entender que o caso dele seria muito mais importante do que qualquer outro. A conversa, ali, não era comigo, então eu não tinha por que me intrometer. Mas, sinceramente, às vezes penso que as pessoas perderam a noção do que falam.

Diariamente, contamos histórias e dramas de pessoas anônimas, que enfrentam as mais diversas lutas pela sobrevivência. Muitas delas, inclusive, conseguem alcançar resultados que sem a força da televisão, provavelmente, não seria possível. Eu mesmo posso contar algumas das quais participei. Muitas estão registradas neste blog.

Mas, desde que o mundo é mundo, situações que envolvem figuras públicas são de interesse coletivo. Se é algo relevante, novo, notório e atual atende aos chamados critérios de noticiabilidade. Ou seja, é notícia. Por qual motivo, então, o estado de saúde de um dos principais apresentadores da televisão brasileira não seria destaque na imprensa?


Não só pela figura do Faustão, mas pela importância do tema que esse contexto nos traz. Novamente, o Brasil tem a oportunidade de conhecer, aprender e se informar sobre um assunto tão complexo quanto é a doação de órgãos. Pena que o país — ou parte dele — se negue a essa chance. Por trás de uma tela de computador ou celular — sempre uma tela — existe uma trupe disposta a desinformar e a fazer julgamentos.

A fala da senhora, que talvez tenha achado um absurdo tantos jornalistas reunidos para falar do Faustão, se reproduz — guardadas as devidas proporções — em insinuações absurdas nas redes sociais. Faustão não "furou a fila" do transplante de órgãos para receber um coração. Falem o que for, mas essa afirmação vai continuar sendo mentirosa. Podem até continuar acreditando nela, mas, ainda assim, não vai ser verdade.


No Brasil, a fila para transplantes de órgãos em geral é única. Ela vale tanto para pacientes do sistema público de saúde quanto privado e é organizada conforme a gravidade do caso, tempo de espera e tipo sanguíneo. Existem, atualmente, 65 mil pessoas na fila de espera, segundo o Ministério da Saúde. É um número alto, sim, sobretudo porque a demanda é muitíssimo maior do que a oferta.

A doação só é possível em caso de morte cerebral e, ainda que o paciente seja doador, a palavra final é da família. E, muitas vezes, os parentes não autorizam. Além disso, em alguns casos, a captação não é feita de forma adequada, o que impossibilita o procedimento cirúrgico. Há também fatores como peso, altura, tipo sanguíneo e, evidentemente, a gravidade do quadro de saúde da pessoa.


Em algumas situações, o paciente consegue seguir o tratamento vivendo relativamente bem, sendo acompanhado e aguardando a liberação do órgão em casa. Em outros casos, como o do apresentador Fausto Silva, há necessidade de priorizar a cirurgia. O comunicador era o segundo da fila e recebeu o órgão porque a equipe médica do primeiro colocado considerou que aquele coração não seria útil, provavelmente por alguma incompatibilidade.

Não há nenhum indício de que Faustão tenha sido beneficiado, apenas, por ser rico e famoso. Absolutamente nenhum. Aliás, antes da cirurgia dele, 11 pessoas passaram por transplante de coração no Brasil — entre os dias 19 e 26 de agosto —, segundo o Ministério da Saúde. Sete foram em São Paulo, que é o estado que concentra o maior número de transplantes do país.

Porém, contra fatos existem fakes. E fakes, muitas vezes, são mais bem-aceitas do que fatos. É uma inversão de valores sem precedentes. Qualquer coisa pode virar verdade a depender da quantidade de cliques, curtidas e compartilhamentos. "Meu tio/tia/avô/primo/cunhada/amigo/inimigo/cachorro/gato/papagaio/ está há vinte anos esperando um coração", desabafou o especialista em lorotas na internet. "É rico, um Rolex paga", disse outro.

São tempos difíceis. Para tudo, absolutamente tudo, reinam as famosas "teorias da conspiração". Em se tratando de alguém bem-sucedido — bilionário, como o Faustão —, aí vem uma avalanche de ressentimentos, de explicações mirabolantes, de "opiniões" formadas a partir da primeira frase de um texto.

Não faço ideia de quantas pessoas chegaram até aqui, lendo o que escrevi. Mas posso imaginar que muitas — talvez a maioria — tenham preferido me cancelar a partir do título, sem considerar nenhum argumento. Tem feito parte dos tempos atuais.

O dinheiro pode oferecer muita coisa, mas nem toda a fortuna do Faustão o salvará de qualquer doença que possa colocá-lo em risco. É verdade, realmente, que nem todo mundo tem condições de se tratar no Albert Einstein — eu mesmo não teria nem roupa pra isso —, mas a questão, aqui, é que nem todo o patrimônio acumulado do apresentador o livrou de passar pela angústia da incerteza e pelo medo de ver a possibilidade do fim tão de perto.

A gente precisa entender que, para algumas coisas, não existe opinião. Para algumas coisas, não basta "eu achar" nada. Em certos momentos, é preciso se render ao fato. É necessário aceitar, para doer menos. Faustão não furou fila nenhuma. Nem ninguém que, antes dele, tenha recebido um órgão primeiro que o número 1 da fila de espera.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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