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A leitura do mundo pela cor da pele

É interessante e imperioso saber como se dão as ocorrências da vida pelo prisma racial

Eduardo Olimpio|Do R7

Avenida Paulista amanhece pintada com frase 'Vidas Pretas Importam'
Avenida Paulista amanhece pintada com frase 'Vidas Pretas Importam' Avenida Paulista amanhece pintada com frase 'Vidas Pretas Importam'

Ao ser abordado por policiais quando adentrava a um barzinho (nos anos 1980 assim chamava-se o boteco com mais cara de lanchonete do que de inferninho) perto da avenida Santo Amaro, zona sul paulistana, senti o peso de ser confundido com um assaltante que, momentos antes, havia feito seu ‘serviço’ numa pizzaria ali perto. O meliante vestia uma jaqueta preta de couro e fugira em uma motocicleta, segundo relato dos servidores públicos da Segurança a quem acabei chamando a atenção, mesmo tendo acabado de fechar a porta de um Fiat 147. E adivinhem qual era meu agasalho naquele quase início de noite com temperatura arrepiante...?

Depois de um jogo nervoso entre perguntas e respostas no meio fio, a poucos passos da entrada daquele local onde iria beber, prosear e, de quebra, paquerar (outro termo daquele tempo cuja tradução para hoje poderia ser azarar... ou algo mais atual). Ao dar as costas para as forças de Segurança uniformizadas depois de liberado, percebi que as supostas vítimas dos meus olhares sedutores testemunharam tudo com um mix de curiosidade, riso, medo e revolta pelo ocorrido, e alguma sedução (!).

O detalhe desse episódio é que foi um repeteco — exceto pelo bar — de outro que também envolveu uma baratinha (como era conhecido o carro de polícia que chegava até nós na forma de um fusca) e este narrador, agora noutro ponto da cidade, na mesma época, vagando à noite pela marginal Tietê ao lado do finado Playcenter. Em ambas eu senti que os policiais escolheram a quem abordar entre demais transeuntes que por perto se encontravam.

Até aí, nada de muito novo numa metrópole acostumada desde sempre a fazer rondas ostensivas, correr atrás de bandido e enxugar gelo. Fizeram perguntas depois de dizerem para ficar calado e parado, e revistaram da ‘Antártida’ ao ‘Ártico’, passando pelo ‘Trópico do Equador’ vasculhando todas as latitudes minhas. Ao final, pediram RG e que eu sumisse dali pois o lugar era... perigoso.

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Conto essas passagens, que mesclam realidade e fantasia, porque eu estava acompanhado de um amigo negro, um elemento-verdade dentro destas memórias e que muito me ensinou (e ainda ensina) sobre agruras, perrengues, preconceitos e mesmo uma ou outra vantagem de ter sua cor de pele mais escura do que a minha. E meu problema continua sendo o daltonismo, pois não faço distinção dentro do arco-íris e, quando fora dele, entre o preto e o branco.

Se estivesse com outro amigo, um branco com qualquer tipo de acabamento entre o fosco e o acetinado, provavelmente não teria sido abordado nestas duas situações. Ah, o detalhe é que não foram as únicas desse tipo ocorridas na minha branca vida saideira, viajante e curiosa, tanto em terras brasileiras como estrangeiras. Dentro e fora já fui confundido com marroquino, argentino, italiano, mineiro, carioca e indígena, estando eu só ou acompanhado. 

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Voltando à questão das abordagens que o estado inflige, a mim ficou claro a forma enviesada e conceitual de como segmentos, estratos, carreiras, ambientes e demais pessoas, enfim, nos enxergam, marcam e julgam pela aparência da pele, da roupa, do cabelo, do calçado, da bolsa, dos adereços, das tatoos, da barriga.

Percebi claramente nas minhas andanças e ‘batidas policiais’ que negro é, sim, discriminado por sua pele. Que, sim, o país que vivemos tem racismo estrutural provado em versos e prosas acadêmicas e literárias de vasto campo de pesquisa a quem quiser ler e entender. Que, sim, ler Macunaíma é obrigatório. Que, sim, a alardeada democracia racial carece de releitura e revogação urgentes.

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Que, sim, meu amigo ‘de cor’ — que, quando em sampa ainda nos vemos à medida do possível numa jornada de 40 anos de amizade — , aos meus olhos nunca teve cor, mesmo que eu tenha alguma vez me traído nessa percepção que não me pertence como indivíduo, mas me entranha como fruto de uma sociedade racista e violenta, nada alheia aos desígnios humanos globais.

* Escrevo em homenagem ao amigo João Dagoberto dos Santos e a João Alberto Silveira Freitas

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