Casa onde criança foi encontrada em local insalubre e sem condições de higiene
DivulgaçãoUma menina de nove anos explorada sexualmente pela mãe em uma comunidade próxima ao Real Parque, bairro da zona sul de São Paulo. Este foi o primeiro caso atendido pelo conselheiro tutelar Gledson Silva Deziatto, de 38 anos. A equipe dele havia recebido a denúncia anônima de que a mãe da garota a mantinha em um barraco para ter relações sexuais com homens por R$ 5. “Chegamos na casa da mãe e descobrimos que o barraco ficava na mesma viela. Quando fui conversar com ela, fui abordado por vários homens com armas apontadas para minha cabeça”, afirma ele, que atua como conselheiro tutelar há dez anos.
Os Conselhos Tutelares, de acordo com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescentes), são órgãos preparados para atender esse público específico diante de situações de violação de direitos. Os conselheiros também têm a função de conversar com os pais de crianças e jovens e facilitar o acesso dessa faixa etária aos serviços de educação, saúde e assistência social do município. Apesar das inúmeras dificuldades que, vão desde as restrições de orçamento e infraestrutura até as ameaças contra a vida, os conselhos ouvidos na reportagem não pensam em desistir. “Acredito que as pessoas podem evoluir”, diz Gledson.
O caso da garota de nove anos explorada sexualmente foi o mais marcante em seus anos de atuação. Gledson afirma que chegou a pedir uma interdição judicial para que o caso fosse levado à delegacia. “Descobrimos que a mãe dela era ligada ao tráfico”, lembra. Ao chegarem ao 34º DP (Vila Sônia), onde foram atendidos, o conselheiro conta que a mãe ameaçou a menina dizendo que, se ela revelasse algo aos policiais, iria matá-la. “A menina negou tudo”, diz ele. “Pedi para conversar em particular com a garota.” Em uma sala, a garota começou a falar. “Ela pegou uma boneca, tirou a roupa e fez gestos sexuais. Dizia que os homens chegavam com carros bonitos.”
Segundo o conselheiro, a garota teve de fazer fonoaudiologia para conseguir se comunicar. “Aplicamos a medida de proteção e ela foi encaminhada a um abrigo. Depois se mudou com uma tia para outro estado.”
Um estudo divulgado recentemente pelo Instituto Sou da Paz afirma que mais de 7 em cada 10 vítimas de estupros em São Paulo são pessoas vulneráveis, menores de 14 anos ou que não podem oferecer resistência por deficiência física, metal, doença ou outra causa, como embriaguez. Elas representam 74% do total de vítimas desse crime no estado durante os seis primeiros meses do ano.
Apesar de os crimes de estupros em geral terem sofrido uma leve redução (cerca de 2,5%) em relação ao mesmo período do ano anterior, o número de ocorrências de estupro de vulnerável aumentou 1%.
O conselheiro Fernando Prata atua há dez anos nos bairros da Vila Mariana, Saúde e Moema. Segundo ele, por meio do relato das crianças e adolescentes é possível chegar a diversos problemas da região, como acesso à educação, serviços de saúde e conflitos interfamiliares.
Fernando Prata visita crianças na Vila Mariana, Saúde e Moema, em SP
Fernando Prata/Arquivo PessoalUm dos casos atendidos por ele também se refere a abuso sexual. Procurado pela mãe de um garoto de oito anos, Fernando foi até a casa da família, no dia em que ocorria sua festa de aniversário. “Ela estava em estado de pânico. Notou que o filho já estava silencioso há dias, mas não chegou a fazer nada.” No dia do aniversário, o menino a procurou para conversar. Ele havia contado que acabara de ser abusado pelo tio e que o assédio sexual já acontecia há tempos. “Ele disse que queria se matar.” O garoto foi encaminhado pelo Conselho ao atendimento psicológico e de saúde da região.
Conselhos tutelares
Os Conselhos Tutelares recebem demandas de diferentes órgãos municipais voltados à educação, saúde, segurança pública, varas da infância. A partir disso, os conselheiros separam as solicitações por ordem de prioridade entre as famílias. “Chegam pedidos de auxílio de todos os tipos, como acesso a creches, sobre violência física, brigas de família”, explica Prata. Com isso, os conselheiros entram em contato com os serviços públicos para dar mais celeridade aos casos.
Um dos cuidados para atender crianças vítimas de violência e abuso sexual é evitar a revitimização. “Nosso desafio é entender a família, orientar e requisitar os serviços que ela precisa, não podemos fazer com que a criança e o adolescente fiquem ainda mais marcados”, diz Prata. No Conselho Tutelar em que ele atua, são mais de 400 casos atendidos por mês. Segundo ele, uma só família gera um fluxo de mais de 15 atendimentos. Desses, ele estima que entre 2% e 3% sejam casos de abuso sexual.
Antes do ECA, não existiam Conselhos Tutelares, mas os comissários de menores, vinculados aos juizados de menores. “Eles atuavam sob um viés punitivo, com o objetivo de recolher crianças e adolescentes à força das ruas de encaminhar para orfanatos e Febens”, afirma Ariel de Castro Alves, advogado especialista nos Direitos da Criança e do Adolescente. Após o estatuto, o papel desses órgão mudou.
Hoje, não raro os conselhos carecem de estrutura, recursos, funcionário, equipamentos e veículos oficiais para atendimentos e visitas domiciliares. Ao tentar retirar a garota que era explorada sexualmente no Real Parque, Gledson foi acompanhado de uma conselheira sem veículo oficial. “Fui ameaçado três vezes. Depois desse caso, qualquer coisa me assustava, se alguém me olhava no ônibus eu já descia. Se alguém me pedia informação, saía correndo.”
Para Castro Alves, ainda que a atuação dos órgãos tenha evoluído, é preciso maior interação e atuação integrada com a rede de proteção social e as varas da infância e juventude. “É preciso fazer vistorias em entidades, escolas, abrigos, unidades de internação e visitas domiciliares para verificação de casos de abusos”, diz. O advogado também defende uma maior dedicação em relação às crianças e adolescentes em situação de ruas, praças e semáforos.
Conselheiros ajudam famílias em condições precárias a fazer mudança
Gledson Silva Deziatto/Arquivo PessoalUm relatório do Disque 100, divulgado em 2018, demonstra que os conselhos tutelares só dão retornos sobre as providências tomadas em casos de violações e violências encaminhados em 16,49% dos casos. “Isso é muito grave, já que não se sabe, na maioria dos casos, se as crianças foram protegidas e se os agressores foram responsabilizados.”
A violência além do abuso
Embora tenha aumentado o número de denúncias de abuso sexual, os conselheiros relatam outros casos envolvendo violência física e conflitos familiares. Lilian Calta Delloti Pinheiro, de 60 anos, trabalha na Lapa, na zona oeste de São Paulo. “Acreditamos que já vimos de tudo, mas a realidade nos surpreende.”
Há três anos, ela recebeu uma denúncia de que uma menina de oito anos estava sendo torturada e castigada pelos pais. “Ela estava muito machucada, faltavam pedaços da língua, da orelha”, afirma. “Ela própria contou que os pais se revezavam nas surras com alicates e cintas.” A menina e os dois irmãos foram encaminhados a um abrigo. “Quando fica difícil, a gente dá uma respirada e continua. Mesmo com essas tragédias, não penso em desistir.”
Além dos pais e de denúncias anônimas, muitos professores procuram os conselhos para pedir orientações. Em outros casos, famílias inteiras precisam do atendimento. Gledson, que hoje trabalha no conselho de Rio Pequeno e Raposo Tavares, na zona oeste da cidade, afirma que foi chamado para atender pais com histórico de alcoolismo. “As crianças iam para a escola todos os dias com mau cheiro. A casa, onde viviam sete crianças, não tinha banheiro, água encanada e o chão era de terra. Era muita pobreza”, diz ele.
Gledson conta que, além das condições de falta de saneamento, a família era ameaçada por traficantes da região. Por meio do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, a família foi retirada da casa e levada para uma cidade do interior.
Casos de violência e abuso não estão restritos às regiões de periferia. Pelo contrário: há diversas denúncias em bairros de maior poder aquisitivo. Segundo Prata, porém, nesses ambientes existe uma subnotificação e os problemas costumam ser invisibilizados.
“Atendi uma família de classe A que rompeu com qualquer estigma”, relata. Em um condomínio de alto padrão, um homem passou a desferir golpes contra o filho de cinco anos. O conselheiro afirma que a violência foi registrada pelas câmeras de segurança. “As imagens foram levadas à delegacia e eles encaminharam para nós”, diz. “A mãe também tinha receio de enfrentar aquela situação que configurava violência doméstica.”
Prata afirma que, apesar de enfrentar histórias como essas diariamente, também não pensa em desistir. “Confirmei isso há alguns dias quando reencontrei um menino que havia tentado suicídio diversas vezes. Ele estava bonito, com outra expressão e me disse: 'Agora, eu tenho amigos, vou à escola, entendo minha mãe. Não penso mais em me matar'”, conta. “Essas coisas deixam de ser experiências individuais e passam a ser causas coletivas.”