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Família de vítima de estupro na Índia narra suas muitas perdas

Recentes casos de estupro coletivo causaram comoção e revolta no país

Internacional|

Badri Nath Singh (esq.), pai da jovem que foi estuprada em dezembro passado dentro de um ônibus, ao lado do filho e do sobrinho no vilarejo de Medawara Kalan, para onde a família voltou, após o crime em Nova Déli
Badri Nath Singh (esq.), pai da jovem que foi estuprada em dezembro passado dentro de um ônibus, ao lado do filho e do sobrinho no vilarejo de Medawara Kalan, para onde a família voltou, após o crime em Nova Déli Badri Nath Singh (esq.), pai da jovem que foi estuprada em dezembro passado dentro de um ônibus, ao lado do filho e do sobrinho no vilarejo de Medawara Kalan, para onde a família voltou, após o crime em Nova Déli

O vilarejo de Medawara Kalan fica numa estrada de terra de uma só pista, após plantações de mostarda, choupanas de sapé e pilhas belamente alinhadas de "tortas" de esterco seco de vaca, usado como combustível.

Trinta anos atrás, Badri Nath Singh trocou a vila pela capital, Nova Déli, a quase mil quilômetros dali, um dos milhões do vasto interior indiano a migrar para as cidades em rápido crescimento.

No final do ano passado, Singh e a família voltaram, trazendo as cinzas da única filha.

A filha, de 23 anos, que morreu após ser estuprada por uma gangue e agredida com uma barra metálica num ônibus em movimento em Nova Déli em 16 de dezembro, se tornou um símbolo de tudo que está errado na forma pela qual a Índia trata suas mulheres e garotas. Porém, até dezembro, ela era um exemplo de algo muito diferente, de como a ambição, trabalho árduo e amor paterno podem remover uma geração da pobreza rural, a sina da maioria do 1,2 bilhão de habitantes da Índia.

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"Esse episódio estraçalhou meus sonhos", Singh afirmou em entrevista na semana passada no vilarejo no Estado de Uttar Pradesh. Ele se sentou do lado de fora da casa, enrolado num cobertor amarrado por uma corda e sentado numa cama de madeira, enquanto uma multidão sempre cambiante de parentes masculinos, também cobertos por cobertores, sentava cautelosamente por perto, às vezes passando canecas escaldantes de chá.

Singh, a esposa e dois filhos adolescentes voltaram a Medawara Kalan, que tem 2.000 habitantes, após a morte da filha, em 29 de dezembro, para executar 13 dias de rituais hindus culminando nos homens raspando as cabeças e fornecendo uma refeição para centenas de pessoas, com o intuito de dar paz à falecida.

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Pouco mudou na vila desde a partida de Singh, até mesmo enquanto o desenvolvimento se espalha até os rincões mais distantes da Índia. A eletricidade é escassa, a agricultura é a única ocupação e a escola pública só vai até a quinta série.

"No vilarejo, não poderíamos atender nossas necessidades, então era inevitável nos mudarmos", Singh falou em relação à decisão de partir três décadas atrás. Embora a filha tenha nascido em Nova Déli, ela voltava com frequência na companhia da família, da mesma forma que muitos indianos urbanos ainda mantêm laços com os familiares do interior.

Com a mudança para Nova Déli, Singh fez parte da primeira onda de uma lenta mudança a transformar a Índia do país agrário de Mohandas K. Gandhi, para quem a nação "vive em seus vilarejos", numa terra apinhada de megacidades. Em 1991, a Índia tinha 23 cidades com mais de um milhão de habitantes. Em 2011, elas passavam de 50.

O primeiro salário de Singh na cidade girava em torno de R$ 8 (US$ 4) mensais, mas em pouco tempo ele economizou o suficiente para a esposa, Asha, vir lhe fazer companhia na cidade, e, depois, comprar um terreno para construir uma casa pequena. Embora as meninas nem sempre sejam valorizadas na Índia, Singh e a esposa davam extrema atenção à filha, primogênita. Segundo ele, "sendo menino ou menina, é um presente de Deus".

A filha — cujo nome não é revelado porque é ilegal identificar uma vítima de estupro na Índia sem a permissão da vítima ou de um parente — demonstrou desde muito cedo amar a escola, conta o pai.

— Ela chorava se não podia ir à aula.

De acordo com o pai, ela costumava ser a primeira da classe. A educação das meninas geralmente é deixada de lado na Índia em prol dos meninos, mas a família não se opunha à filha. "Demos muito mais atenção à menina" do que aos dois filhos nascidos mais tarde.

"Se os filhos pedissem dinheiro, eu podia recusar, mas nunca recusava se fosse minha filha", ele afirmou, pondo o braço ao redor do filho Gaurav, que permanecia em pé por perto, de forma protetora. Ele chegava a chamá-la por brincadeira de "beta", palavra em híndi para filho.

Juntos, eles conversaram a respeito de como ela poderia ir mais longe do que o parente mais talentoso, um juiz. Ela queria ser médica, mas como o dinheiro era curto, escolheu fisioterapia e se matriculou numa faculdade em Dehra Dun, cidade importante no norte do país.

Para pagar a faculdade, Singh vendeu a maior parte da terra que possuía em Medawara Kalan, tomou dinheiro emprestado de familiares e trabalhava em turnos dobrados, 16 horas por dia, carregando bagagem no aeroporto de Nova Déli.

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A mulher planejara pagar a educação dos dois irmãos mais novos quando começasse a carreira profissional. Um rapaz queria ser engenheiro e o outro, astronauta.

"Meu filho trabalhava com muito afinco para ver a filha realizar seus sonhos", afirmou Lalji Singh, avô da mulher. "Ele nem sabia se era dia ou noite por trabalhar tanto."

Segundo familiares, a mãe da mulher não está bem de saúde. Durante a entrevista, ela ficou sentada num pequeno quarto escuro, ao lado de um quintal recheado de crianças pequenas e pequenas fogueiras fumegantes. Aninhada em cobertores, ela levantou as mãos para formar o cumprimento "namastê", mas nada falou.

Na noite da agressão, a moça, prestes a iniciar um estágio para a nova carreira, foi ao cinema com um amigo. Foi então que o sonho urbano da família colidiu com a feia realidade da vida numa megacidade indiana.

O sistema de transporte público de Nova Déli é tremendamente inadequado, assim ambos tomaram um ônibus particular, como milhares de pessoas fazem diariamente na cidade. A bordo havia um grupo de homens, a maioria de migrantes da classe operária; segundo a polícia, eles estavam bebendo e passeando, em busca de alguém para importunar.

Tentar explicar os motivos por trás do que aconteceu a seguir dominou a discussão nacional na Índia.

A mulher e o amigo foram atacados. Durante a agressão, o amigo foi deixado inconsciente. A mulher mordeu a mão de um dos homens. Ela foi levada até o fundo do ônibus, estuprada e teve uma barra metálica enfiada pelo corpo até o diafragma, machucando tanto os intestinos que estes tiveram de ser removidos, a família disse que os médicos contaram.

Para Singh e muitos que cresceram nos vilarejos na Índia, o episódio brutal aponta nada mais nada menos do que para um declínio geral do caráter nacional do país. Ele traçou um paralelo entre a mudança do interior para as cidades, o foco dos indivíduos em ganhar mais e os eventos daquela noite.

"Conforme aumenta o dinheiro, dentro das pessoas existe cobiça." Segundo ele, um crime do gênero nunca aconteceu em sua vila.

Os médicos que atenderam a mulher afirmaram imediatamente à família ser improvável sua sobrevivência, contam Singh e o filho Gaurav, jovem magro de 17 anos com uma touca de tricô puxada sobre os olhos abatidos.

"O médico afirmou logo no primeiro dia que ela não sobreviveria, mas sua força de vontade a fez resistir por tanto tempo", declarou Gaurav, depois afundou o queixo no peito, enquanto se chacoalhava silenciosamente em meio a soluços.

Naresh Kumar Trehan, cirurgião e diretor geral do Medanta Medicity, hospital nos arredores de Nova Déli, disse nunca ter visto tanta brutalidade. "Já vi todo tipo de violência, de todas as formas", afirmou Trehan, que cuidou da mulher. "Só que desse tipo... eu não conseguia entender."

No dia 29 de dezembro, a mulher morreu num hospital de Cingapura, aonde fora levada para tratamento. O corpo foi cremado, e os rituais hindus relacionados ao seu falecimento deveriam terminar no fim de semana.

Apesar do que aconteceu, a família Singh voltará a Nova Déli, onde Gaurav fará vestibular para a faculdade de engenharia na primavera do Hemisfério Norte. "Não perdi as esperanças", disse o pai. "Farei meus filhos progredirem."

A pouca distância da residência da família Singh, em meados de janeiro, no grande pedaço de terra plano nos arredores da vila que não está sendo preparado para o plantio, cerca de 20 homens transportaram tijolos e areia, envolvidos pela neblina enquanto o barulho de uma retroescavadeira ribombava.

Segundo os moradores, era o primeiro sinal de desenvolvimento que o vilarejo via em décadas. O parquinho da escola estava sendo transformado em heliporto para a visita de uma alta autoridade governamental que vinha visitar a família.

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