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Crack vence a educação

Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV

Cracolândia é tão visível que se transformou num pesadelo, do qual nem todos querem acordar
Cracolândia é tão visível que se transformou num pesadelo, do qual nem todos querem acordar Cracolândia é tão visível que se transformou num pesadelo, do qual nem todos querem acordar

Deveria ser horror e profunda vergonha: a droga, nefasta, derrotando a educação, nobre, por nocaute social. Mas as consequências da chaga social chegaram ao máximo, com o encerramento sumário, por falta de segurança, das aulas no colégio Liceu Sagrado Coração de Jesus, sob indiferença quase total. Triste.

Liceu era a denominação de um ginásio perto de Atenas. Também significa a escola filosófica fundada por Aristóteles.

Em São Paulo, é o nome de uma instituição salesiana, de 137 anos, nos Campos Elíseos, que já chegou a ter 3.000 alunos. É uma longa história. Como escreveu o dramaturgo irlandês Oscar Wilde, a história do Liceu, originário da potência filosófica grega, está numa espécie de diário que todos nós carregamos.

Pode ser, também, a história de um pesadelo do qual se tenta acordar, segundo James Joyce na abertura do seu “Ulisses”.

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Wilde e Joyce fundem-se num só. Carregamos nas costas a história da cracolândia. Ela é escancaradamente tão visível que se transformou num pesadelo, do qual nem todos parecem querer acordar.

Mas que chega social é essa, que resiste ao tempo, um pouco mais de duas décadas, e comprime usuários de drogas, em especial as pedras de crack, cocaína sintética, consumida em cachimbos que à noite abrem em profusão os clarões dos isqueiros para acendê-los?

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A chaga, ao contrário das Escrituras, que nos recomendam ter olhos de ver e ouvidos de ouvir, é apenas enxergada e não escutada. Os mais variados tipos de pessoas dizem contemplá-la, com as mais variadas posições, pretendendo mantê-la ou pulverizá-la. Por enquanto, só a manutenção predomina, sob olhares míopes, embora se diga sociais, mas apenas contribuem para o seu crescimento e não para a retração.

Ali perto, avenida Rio Branco, está quase pronta a obra da construção de uma unidade do Pérola Byton, hospital referência para a mulher. As imediações estavam repletas de usuários, numa visão degradante para o quase pronto hospital. Ali prevaleceu o bom senso: os usuários foram desalojados, evitando a derrota da saúde para a desastrosa alteração de funcionamento do sistema nervoso central. São o alimento, como o espinafre do marinheiro Popeye, para os dependentes que, como diz o nome, vivem aos bandos na mais absoluta dependência da droga.

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Há uma diferença entre o Liceu e o domínio das drogas num espaço oficialmente delimitado. Na escola, estudaram figuras como o músico Toquinho e o ator Grande Otelo. O Liceu resistiu aos tiros de fuzil, durante os conflitos de 1924, que antecederam a Revolução Constitucionalista de 1932. As marcas históricas ficaram cravadas nas grades da escola. Tiros de canhão erraram o alvo, Palácio dos Campos Elíseos, e acertaram a tipografia do Liceu, parcialmente destruída, e deixando um aluno ferido.

A Gênese

A região dos Campos Elíseos, onde já esteve o Palácio do Governo, quando a então elite que predominava no bairro foi se mudando para outros lugares, entre eles Higienópolis, Pacaembu e Jardins. Perceptível, olhando para os palacetes ali instalados.

O Liceu representou por mais de um século o ensino de qualidade, a virtude da bondade, as artes e a fé, possuindo em suas instalações teatro e creche, e sua igreja sendo favoritas para celebração de casamentos. Meninos aprendiam uma profissão, gostavam do curso de tipografia – então um dos preferidos. Também foi a primeira escola a criar o ensino médio durante a noite.

A cracolândia de hoje é a sucessão da antiga zona de prostituição no bairro do Bom Retiro, que aos poucos foi se transferindo para outros pontos, entre eles os Campos Elíseos e a Santa Ifigênia. Foi o início da degradação, com os antigos palacetes e casarões se transformando aos poucos em cortiços.

Na Praça Princesa Isabel, onde está o monumental monumento equestre em homenagem ao patrono do Exército, Duque de Caxias, fica estacionado um ônibus, doado pelo Governo Federal, que serve da base para a Polícia Militar, no qual se lê na lateral a dúbia frase: “crack - é possível vencer”.

Estamos diante de um sinônimo indefinido. Dúbio pode ser interpretado como uma ou outra coisa. No caso, seria possível vencer, derrotar o crack. Ou, também, ser vencido pelo crack. É só olhar para a cracolândia e ver quem está vencendo.

Aliás, recomende-se - a quem quiser examinar de perto a chaga social purulenta - dar ao menos uma volta por ela. Não precisa ser grande, uma voltinha já basta. É degradante. A receita é fazer de conta que não está olhando para tudo e de vez em quando tapar o nariz. Por essas razões, que se pode constatar in loco, é que a maioria dos observadores prefere ficar à distância, elaborando teses e palpites, sempre desconectados da realidade, que somente se poderia mudar meio dela mesma. Mas aos palpiteiros isso não parece interessar. Existem ainda, e muitos, que até olham para tudo isso, mas vivem como se estivessem presos a uma grande jaula ideológica e a um gigantesco nó mental, incapaz de raciocinar em torno do que se deveria fazer e aquilo que não se faz sob os mais variados tipos de pretexto. A cracolândia cresce. Os planos de solução, mais cômodos, diminuem. Há propostas tímidas. Sequer podem ser consideradas paliativas.

Como é o horror

Voltinha: na rua Helvétia, um dos focos, está a Igreja Presbiteriana Unida. Tradicionalíssima. Mas seus fiéis não podem frequentá-la, pois a calçada em frente, dentro de um quarteirão, está tomada por usuários. Estão ocupando um espaço cedido pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ali, num pedaço da rua isolada por cones, misturam-se pessoas com cobertores nas costas, em tempos de frio, vagando sem destino, adquirindo drogas vendidas em tabuleiros, por traficantes ali conhecidos como “lagartos”. A lição do cenário é explícita: não existe quem consome sem traficante e não existe traficante sem consumidor. Pedras em profusão. Cachimbos. Isqueiros. Trouxinhas de maconha. Viver fora do ar, entorpecido. Anular qualquer vestígio de razão. Pensar no que fazer para comprar a droga. Não existe amostra grátis.

Os que vivem à margem da sociedade andam sem rumo pelas imediações. Entre os veículos que transitam, estendem as mãos fazendo sinal pedindo uma moedinha. Ou exibindo plaquetas nas mãos com os dizeres: “estou com fome”. Na verdade, é fome de outra coisa. Voluntários passam distribuindo marmitas. Usuários as dividem com cães, sempre fiéis companheiros por perto de seus donos.

Pelas redondezas, estão também os moradores. Deles, ninguém se lembra. Só saem às ruas enfrentando o temor de serem ameaçados por facas, empurrões Assaltos. Roubo de celulares. Bolsas arrancadas. Correntes, pulseiras e brincos subtraídos. Odor por toda parte. Necessidades fisiológicas satisfeitas nas ruas. Lavagem obrigatória por caminhões da prefeitura, todos os dias, por causa do cheiro repugnante. Barulho insuportável à noite. Caixas de som em último volume. Gritaria. Brigas. Agressões. Impossível dormir, a menos que se tome remédios. Horror nas ruas. Terror entre moradores, os ignorados nesse quadro dantesco.

Pobre Liceu. Sucumbe oferecendo qualidade de ensino vencida pela falta de segurança. Que pais ousariam levar seus filhos para estudar num colégio situado em área perigosíssima? A terra do vale tudo?

Pobre Liceu, vítima da sociedade em decomposição, que prefere a carência na educação e prioriza os adictos (dependente, submisso) e seus fornecedores. Deplorável, não?

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