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Insulto à memória do menino Henry Borel

Um enredo macabro está marcando o andamento do processo sobre o assassinato de Henry Borel, repleto de manobras e tentativas de camuflar ou ocultar perversões imagináveis. Vejamos como foram os últimos capítulos desse script horrível

Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV

O menino Henry Borel
O menino Henry Borel O menino Henry Borel

1 - DOR, HORROR

São dois os ofícios dos olhos, observa o padre Vieira num dos seus sermões: ver e chorar. A dor moderada, escreveu ele, solta das lágrimas. A grande dor as congela e as seca. Mas se a dor pode ser moderada, o sofrimento pode ser dosado sem moderação, porque incontrolável. Impossível contemplar certas coisas sem chorar.

Estão assim meus olhos, após um capítulo macabro a mais sobre o caso do menino Henry Borel, quatro anos de idade, trucidado dentro do apartamento onde morava, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.

Como ele morreu? Tortura e detalhes necroscópicos, que obrigam o caso, na tipificação legal, a ser considerado homicídio triplamente qualificado.

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Um circo patético foi montado para tentar ocultar a gravidade do caso, envolvendo-o no manto diáfano da fantasia, como diria o escritor Eça de Queirós. Por que montar o circo sem lona, ou a opereta-bufa, se esta for a preferência?

Porque o menino Henry estava com os olhos revirados, sofreu parada cardiorespiratória, apresentava traumas e esquimoses, hemorragia interna, ferimentos no fígado, edemas no encéfalo, além de muito sangue no abdômen. O que você acaba de ler foi atestado por médicos legistas no Instituto Médico Legal, o lugar onde se examina um cadáver para se verificar, nos caos de violência, quais foram as causas da morte. Ou seja: um laudo desse tipo aponta a causa mortis, não diz quem foi. Este é o papel da investigação, quando necrópsia e apuração se fundem.

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O laudo diz o que você leu. A investigação prova que, no interior do apartamento onde Henry estava antes de morrer, só estavam três pessoas. Um detalhe incontestável. Como não havia mais ninguém lá dentro, e o menino Henry foi a vítima, só restam mais dois personagens no cenário: o padrasto, o médico então vereador Jairo Souza Santos, e a professora Monique Medeiros, a mãe biológica. O que houve? O laudo é irrefutável. “Caiu da cama”, tentaram os dois, no teatro do impossível, porque se tivesse havido mesmo uma queda, a altura insuficiente jamais poderia proporcionar o tipo das violentas lesões constatadas.

Henry junto de seu pai
Henry junto de seu pai Henry junto de seu pai

Sendo assim, e é, restaria, se pudéssemos acreditar na mentirosa versão, seria depositar fé numa grande fantasia. Um pássaro, talvez, teria entrada no apartamento e golpeado o menino com bater de asas e bicadas penetrantes? Ou, quem sabe, cogitar-se que o menino Henry tivesse praticado suicídio? O estímulo do circo é provocar risos. O descontrole diante da dor é chorar.

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Eis, resumido, o conteúdo de opereta-bufa ensaiada dentro de um circo jurídico, o que é absolutamente reprovável, antiético e lamentável. Cenas do último capítulo: a audiência de instrução, presente o réu médico acusado de autoria, foi de fazer chorar.

Os advogados entraram em plenário com a missão de desviar totalmente o foco, empenhados em protagonizar uma chicana sem limites, ou seja, agarrar-se a firulas irrelevantes, criando dificuldades para tumultuar o andamento de um processo, que no caso pode, em tese, resultar numa sentença de pronúncia, isto é, os acusados serem submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri, ou então a impronúncia, que os levaria a não serem julgados pelo tribunal popular e, assim, serem consideras absolvidos, desde que as provas coletadas fossem consideradas insuficientes. São essas, sem tirar nem por, as únicas opções legais possíveis.

Que fez a defesa, então? Os ilustres causídicos postaram-se de pé, à frente da juíza Elizabeth Machado Louro, com o único objetivo de desestabilizá-la emocionalmente, exigindo, diante de provocações sequenciais, que ela demonstrasse as virtudes de Jó e seus descendentes. A magistrada não permitiu que os defensores ficassem de pé, até porque isso seria desnecessário, pois um advogado normalmente se movimenta em plenário, andando (se quiser) de um lado para o outro, para dirigir-se aos jurados, o que não era o caso, pois não se tratava ali de realizar o julgamento.

2 - CADEIRA NO BANCO DOS RÉUS

Sentem-se, ordenou a juíza, autoridade máxima ao presidir a sessão. Não vamos nos sentar, replicaram os doutos. Assim foram consumidos longos e inúteis minutos: senta, não senta, obedece, não obedece. É exatamente o que a defesa queria: ao invés de se falar de Henry Borel, o menino espancado até morrer, transferiu-se o foco para o uso ou não de uma cadeira. Em vez de serem colhidos elementos para um futuro e definitivo julgamento, atenções foram concentradas exclusivamente em deliberar-se o uso ou não de uma cadeira. Data vênia, isso é uma heresia, o fim da picada, piada de mau gosto.

Mais, acrescento: o que aconteceu foi um insulto póstumo, uma ofensa à memória do menino Henry, duplamente vítima: assassinado por motivo torpe, indefeso, esmurrado e chutado até perder a vida, sua história de vida interrompida foi vilipendiada, desrespeitada, insultada, afrontada. Tétrico, o espetáculo grotesco.

A juíza, em alguns momentos, perdeu o equilíbrio emocional, se bem que essa apreciação é passível de debate psicológico. Ela disse: “não chorar aqui é um desafio”. Sei bem o que é isso: ao ver as fotos, feitas pelo Instituto de Criminalística, da menina Isabela Nardoni, arremessada da janela de um edifício pelo próprio pai, eu também chorei. Não foi choro programado, foi choro automático. O delegado encarregado de investigar o caso, Calixto Kalil, também chorou.

Mas e a juíza Elizabeth? Ela disse que não chorar naquela audiência seria difícil, pois o caso a levava a lembrar-se de sua netinha e Henry Borel era “uma criança bonitinha, linda e doce”. Era mesmo. Eu também me lembrei da minha netinha quando vi as fotos de Isabela Nardoni inerte sobre um gramado, corpo molhado por uma garoa fina. Chocante. A juíza disse, em outras palavras, que na situação que estava vivendo, seria difícil emocionalmente segurar-se.

Pronto. Segundo a defesa, por causa disso o mundo estaria caindo. Onde já se viu uma juíza chorar? Não, não pode: ela deve comportar-se como um robô, um autômato, um computador que não tem alma na memória. Chorar seria induzir. Seria parcial. Não poderia. Chorar seria proibido.

Monique Medeiros, mãe de Henry, durante julgamento em fevereiro
Monique Medeiros, mãe de Henry, durante julgamento em fevereiro Monique Medeiros, mãe de Henry, durante julgamento em fevereiro

Risíveis e pueris tais argumentos. Ser humano chora, chorar não é crime, não existe nenhum dispositivo anti-lágrimas no Código de Processo Penal. Chorar não é fator de impedimento ou suspeição. Proibir alguém de chorar é desumano. Gente não é máquina. Tem carne, osso e sangue, não peças de engrenagem e parafusos. Tanto que um defensor pode eticamente recusar-se a fazer uma determina causa, definindo para si mesmo que determinada prática ultrapassou qualquer limite do tolerável. Já vi isso, acompanhando julgamentos pelo júri há décadas. Valdir Troncoso Peres, por exemplo, advogado mago no júri, saudoso amigo, agia assim. Ele mesmo me contou: “determinados casos, não dá”. Ética envolve, como ingredientes, escrúpulos, dignidade, caráter, argumentações centradas, teses bem elaboradas e não chicanas embrulhadas em papel celofane.

Sequência da opereta bufa sem o tenor Pavaroti: engalfinharam-se mais setores ditos competentes: o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil manifestou-se contra a juíza e a favor dos defensores. A AMB, Associação dos Magistrados Brasileiros, presidida por Renata Gil, e a presidente da OAB-RJ, Eunice Haddad, colocaram-se em nota oficial a favor da juíza Elizabeth.

A opereta tem bastidores: o médico padrasto já trocou seis vezes de advogado. A mãe biológica trocou menos, mas trocou, dizendo até que o ex-companheiro a constrangeu a faltar com verdades.

Repare: até aqui, só falamos de trâmites, quase nada de Henry, o menino que é real personagem dessa história trágica, abominável, vergonhosa para a espécie humana, rompendo laços sanguíneos para prestigiar o pai eventual.

Perdão, Henry, por construirmos um frágil castelo de areia em torno da estupidez da sua morte. A memória de Henry deveria ser reverenciada e respeitada, e não para ele ser novamente vítima, agora pelo escárnio cruel.

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