Ver o conteúdo do artigo
Johnny Negreiros, do R7*

São cinco governos e quatro mandatos presidenciais ideologicamente diferentes. Nesta sexta-feira (20), o Programa Bolsa Família completa 20 anos. Ao longo desse tempo, ele não só foi mantido mas também ampliado. A iniciativa deixou de ser um programa de governo e se transformou em algo permanente, uma política de Estado.

Em 2004, mais de 3,6 milhões de famílias eram atendidas pelo projeto. Em 2006, esse indicador saltou para mais de 10 milhões. Hoje, são 21,1 milhões de famílias, que recebem, em média, R$ 686,04, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome do Brasil.

De acordo com um estudo do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social, ao longo dos anos o Bolsa Família passou por ajustes e atualizações, como a adição dos benefícios variáveis pagos a adolescentes com idade entre 16 e 17 anos e o benefício para a superação da extrema pobreza.

Em 2020, com a pandemia de Covid-19, o valor pago aumentou. A adição de R$ 600 do auxílio emergencial fez o benefício superar a marca de R$ 1.300. Além disso, foi implementado o chamado 13º salário do Bolsa Família ainda em 2019 — uma parcela a mais de pagamentos aos beneficiários no fim do ano. Essa ferramenta, porém, não deve ser concedida em 2023.

Quando o programa foi lançado, por meio da medida provisória nº 132/2003, a remuneração mensal mínima era de R$ 50 (o que equivaleria hoje a R$ 151) para as famílias com renda média por pessoa de R$ 50. Havia ainda um adicional de R$ 15 (R$ 45) para cada criança de até 12 anos, com o limite de três jovens por família. E outros R$ 45 (R$ 136,45) para gestantes.

Desde março deste ano, o pagamento básico é de R$ 600 por família, e há o adicional de R$ 150 por criança de até 7 anos, além de um extra de R$ 50, concedido a partir deste mês de outubro, a bebês de até 7 meses. Para jovens de 7 a 18 anos, gestantes e lactantes, o bônus também é de R$ 50.

Considerando o censo demográfico de 2022, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que mostrou que as famílias brasileiras são formadas em média por quase três indivíduos, o Bolsa Família atende cerca de 60 milhões de brasileiros — o equivalente a 30% da população do país. Para participar, hoje, a família precisa ter renda média por pessoa de no máximo R$ 218.

Desafios


Tendo em vista a importância do Bolsa Família, destacam-se também as adversidades que ele terá de enfrentar.

Entre as principais delas estão os casos de fraude, em que pessoas da mesma família se cadastram no programa como se fossem arranjos familiares diferentes, para receber mais benefícios — o que é apontado como o motivo de as famílias unipessoais terem aumentado de 15% para 26% entre 2021 e 2022.

E configuram um desafio para a atual gestão. Em setembro, dos 5 milhões de beneficiários que declararam morar sozinhos, 934 mil foram excluídos do programa, por estarem com o registro irregular.

Outro dado alarmante é que a miséria em território nacional aumentou desde a implementação do Bolsa Família. De acordo com dados do IBGE, a taxa de pobreza no país passou de 23,2% em 2002 para 29,6% em 2022. O que quer dizer que, no ano passado, cerca de 62,9 milhões de brasileiros viviam com renda domiciliar per capita inferior a R$ 497 mensais.

Além disso, dois meses após o lançamento da nova edição do programa e cinco após a posse, em maio, o governo Lula admitiu que, das 19,2 milhões de crianças que deveriam ser acompanhadas, ainda não havia informações sobre 5,2 milhões delas — não se sabe sequer se 27,47% das crianças contempladas frequentam a escola.

O problema é ainda maior com a evasão escolar causada pela pandemia do coronavírus. Um levantamento da organização Todos pela Educação mostra que 244 mil crianças de 6 a 14 anos estavam fora da escola no segundo trimestre de 2021 — 171% a mais do que em 2019. Uma pesquisa deste mês da Unicef revela que cerca de 2 milhões de crianças e adolescentes de 11 a 19 anos não estão frequentando a escola no território nacional. Ainda há muito a ser feito.
 

Condições para receber o benefício

A política de transferência de renda continua a ter contrapartidas por parte das famílias beneficiadas. Hoje, essas condicionalidades se referem a três áreas:

• educação: as crianças de 6 a 17 anos devem estar matriculadas na escola e ter frequência mínima de 85%. Os adolescentes de 16 e 17 anos devem estar matriculados no ensino médio e ter frequência mínima de 75%;
• saúde: as crianças até 7 anos devem receber as vacinas previstas no calendário do Ministério da Saúde. As mulheres grávidas devem realizar consultas pré-natais e exames de saúde;
• nutrição: as crianças até 7 anos devem ser acompanhadas pelo Programa Saúde da Família (PSF) para a avaliação do seu estado nutricional.

https://img.r7.com/images/bolsa-familia-por-estado-19102023120132101

Mobilidade social


Apesar de existirem críticas e itens a ser desenvolvidos, especialistas ouvidos pelo R7 convergem em um ponto: o Bolsa Família auxilia na ascensão social.

Uma pesquisa publicada neste ano pelo Centro de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV) avaliou dependentes que tinham entre 7 e 16 anos em dezembro de 2005. Após 2019, somente 20% deles permaneciam como beneficiários do programa.

Além disso, nesse ano, 64% desses jovens se encontravam fora do Cadastro Único, que reúne aquelas famílias com renda mensal inferior a meio salário mínimo, e 45% haviam acessado o mercado formal de trabalho ao menos uma vez. Isso não significa que os demais não tenham trabalhado, apenas que não ocuparam vagas com carteira assinada.

O Bolsa Família se sustenta porque ao menos uma parte das crianças beneficiárias quebra o ciclo intergeracional de pobreza

Rafael Osório, pesquisador do Ipea

O estudo da FGV ressaltou ainda o custo orçamentário relativamente baixo para algo dessa projeção: em média, de 0,5% a 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) ao ano — em 2022, por exemplo, esse número equivaleria a cerca de R$ 120 bilhões.

Neste ano, estão previstos R$ 175,7 bilhões do orçamento para o PBF. O Ministério da Educação, por exemplo, deve contar com R$ 147,2 bilhões em 2023, segundo dados da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados.

Na visão de Rafael Osório, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o Bolsa Família se sustenta porque ao menos uma parte das crianças beneficiárias quebra o ciclo intergeracional de pobreza. Ou seja, os filhos ajudam sua família a deixar de ser pobre no futuro.

https://img.r7.com/images/pagamento-bolsa-familia-19102023130044916

Lugar na história

O Bolsa Família foi implementado pelo então e atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que juntou outras ferramentas de transferência de renda existentes durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso em um único registro, a plataforma do Cadastro Único. Eram eles: o Bolsa Escola, o PNAA (Programa Nacional de Acesso à Alimentação), o Bolsa Alimentação e o Auxílio Gás.

Esses projetos, idealizados inicialmente pela então primeira-dama Ruth Cardoso, serviram de base para o funcionamento do Bolsa Família e tinham modelos semelhantes ao do programa atual.

O Bolsa Escola, por exemplo, remunerava mensalmente as famílias a partir de três faixas etárias. Eram elas, em valores da época: R$ 15 para crianças entre 6 e 10 anos; R$ 20 para as de 11 a 15 anos; e R$ 25 para adolescentes de 16 e 17 anos.

Podiam participar da iniciativa as famílias com renda per capita de até R$ 90. Porém, elas precisavam cumprir contrapartidas. Na área de educação, crianças de 6 a 15 anos deviam ter frequência mensal mínima em sala de aula de 85%. Já a frequência exigida para os de 16 e 17 anos era de 75%.

A fiscalização era feita pelo Ministério da Educação. Todo mês, os colégios enviavam relatórios à pasta, que analisava os dados.

Inspiração em modelo mexicano

Marcelo Neri, pesquisador da FGV, e Rafael Osório, do Ipea, comparam a iniciativa brasileira ao programa de transferência de renda do México, iniciado em 2002.

Segundo um estudo do Banco Mundial, o Oportunidades, como era chamado o programa mexicano, ajudou a reduzir a pobreza extrema no país em 10% até 2014. 

Ele foi remodelado na virada de 2018 para 2019, pelo presidente López Obrador, e passou a se chamar Progresa. Mas deixou de ser uma transferência de renda para se tornar, na visão de Osório, “uma bolsa de estudos”.

https://img.r7.com/images/beneficio-bolsa-familia-19102023115834429

O pesquisador do Ipea afirma que o formato brasileiro, focado em dar suporte financeiro a famílias com crianças, serviu de inspiração para outras nações, mesmo que não tenha sido o primeiro.

“Praticamente todos os países que implantaram programas desse tipo a partir dos anos 2000 se inspiraram na experiência latino-americana, em particular no Bolsa Família, no programa mexicano e em um chileno. Em parte porque os governos desses três países, principalmente o do Brasil e o do México, tiveram disposição e capacidade para cooperar com outros países", diz Rafael Osório.

Segundo ele, o primeiro programa de transferência de renda com foco em famílias com crianças foi implantado em Honduras. Mas quem o divulgou mesmo foi o governo brasileiro, que chegou a ser tão procurado entre 2011 e 2012 que passou a promover seminários internacionais, pois não dava conta de atender a pedidos individuais.

Marcelo Neri, da FGV, diz que o Bolsa Família produziu resultados sem precedentes. “A partir de 2001, que é quando esses programas de transferência de renda começam a se difundir no Brasil, a desigualdade social começou a cair, e essa queda persistiu até 2014, 2015. Foi uma coisa inédita na história estatisticamente documentada.”

Osório afirma que o Bolsa Família não tem prazo de validade e que a tendência é que os programas de transferência de renda "sejam expandidos até se tornarem universais" — o que passa longe de ser um consenso entre especialistas.

Filhos do Bolsa Família

Dener Silva Miranda, de 31 anos, é um caso concreto de mobilidade social proveniente da política de transferência de renda. Sua família começou a receber R$ 15 do Bolsa Escola em 2001, o que equivaleria hoje a R$ 55,67.

Morador de Parnaíba, no Piauí, Dener hoje é engenheiro de software, formado pela Universidade de Dundee, na Escócia, e trabalha remotamente para uma empresa dos Estados Unidos.

À reportagem, ele contou que o benefício ajudou a família a fechar as contas. Quando garoto, pediu aos pais que o transferissem para uma escola pública, onde ele também teria acesso à merenda, o que não ocorria na instituição privada em que estudava. Assim, o Bolsa Escola poderia ser gasto com despesas domésticas.

“Eu percebia que aquele dinheiro talvez estivesse fazendo falta em casa. Foi aí que conversei com os meus pais e falei: ‘Me coloca na escola pública mesmo, está tudo bem, não tem problema’.”

Ele diz que o momento de crescimento econômico também foi fundamental para que sua família melhorasse de vida.

“Não foi apenas o Bolsa Família, foi uma série de ações por parte do governo do estado e do governo federal que permitiram que eu quebrasse esse ciclo de pobreza da minha família.”

Ele lembra que estudou, no ensino médio, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí. A autarquia foi fundada em dezembro de 2008, na esteira dos investimentos do governo central na região.

Mas, diferentemente de Dener, há casos de beneficiários que não têm perspectiva de sair do programa, principalmente porque quem tem carteira assinada não pode receber mais o dinheiro.

Rose Souza, de 44 anos, na foto abaixo, é um exemplo. Beneficiária e produtora de eventos, é casada e mãe de três filhos. Ela recebeu os pagamentos entre 2014 e 2017, quando foi excluída do programa porque seus primogênitos estavam faltando muito à escola. Com a pandemia, voltou a receber o dinheiro e permanece no programa até os dias atuais.

Rosa Souza, mãe de três filhos que recebem o auxílio Bolsa Família do governo (Edu Garcia/R7 - 09.10.2023)

Rosa Souza, mãe de três filhos que recebem o auxílio Bolsa Família do governo

Edu Garcia/R7 - 09.10.2023



Moradora da zona norte da capital paulista, ela diz que prefere não procurar um cargo com carteira assinada: “Deus me livre”.

“Eu trabalho por conta própria. Eu e meu marido temos uma equipe de eventos que está há 25 anos no mercado.”

Luana Lourdes, de 42 anos, na foto abaixo, também trabalha de forma autônoma, como cabeleireira. Ela mora na zona leste de São Paulo e recebe auxílios desde 1999. Atualmente, conta com R$ 600 do Bolsa Família mais um adicional de R$ 50 por causa de uma das filhas. 

A beneficiária diz que evita cargos com carteira assinada para não ter o Bolsa Família cortado e afirma que ele ajuda a pagar as despesas das enchentes em sua casa. 

"Não quero ficar no foco [do programa]. Quero sempre trabalhar. Me ajuda a comprar comida, a pagar uma conta de gás. Não é que a gente não quer trabalhar, é necessidade mesmo. Faria muita falta para mim", diz Luana.

Luana Lourdes, beneficiária do Bolsa Família (Edu Garcia/R7 - 18.10.2023)

Luana Lourdes, beneficiária do Bolsa Família

Edu Garcia/R7 - 18.10.2023

Estudiosos consultados pela reportagem negam que as iniciativas de transferência de renda na verdade estimulem os beneficiários a não trabalhar nem lutar para melhorar de vida, o chamado "efeito preguiça".

“As pessoas não deixam de trabalhar porque são beneficiadas. Muito pelo contrário, existem evidências de que o programa tem efeitos benéficos até sobre as economias locais”, afirma Osório, do Ipea.

Já Rodrigo Saraiva, do Instituto Mises, relativiza essa atuação da ferramenta como algo permanente: "Quanto mais o Estado dá, mais as pessoas vão procurar. Por isso, o ideal é sempre comemorar a saída de pessoas do programa, não a entrada".

* Sob a supervisão de Vivian Masutti


Diretora de Conteúdo Digital e Transmídia: Bia Cioffi
Reportagem: Johnny Negreiros
Edição e Diagramação:
 Vivian Masutti
Fotografia: Edu Garcia
Coordenação de Arte: Adriano Sorrentino
Arte:
 Adriano Sorrentino, Ana Viñas, Bruna Santana e Gabriel Marques 
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Coordenação de Vídeo e Produção de Conteúdo:
 Danilo Barboza
Operação de Captação Audiovisual: Guilherme Cabral
Produção de Conteúdo Audiovisual: Julia Vizioli e Matheus Mendes 
Edição e Finalização:
Edimar Sabatine e Fabricio Oliveira