Médicos plantonistas do Hospital Municipal Doutor Waldemar Tebaldi, em Americana, no interior de São Paulo, estão sem receber pelos serviços prestados há três meses. Para reinvidicar os pagamentos à empresa responsável pela administração da unidade, os profissionais decidiram suspender os plantões no início de setembro. Com a diminuição no quadro de médicos, a população passou a contar com menos profissionais especializados, principalmente nas áreas de ginecologia e obstetrícia, pediatria e cirurgia.
De acordo com um cirurgião que preferiu não se identificar, a empresa Plural é responsável por contratar cerca de 50 médicos para compor as escalas de plantão do hospital, o único que atende pelo SUS (Sistema Único de Saúde) na cidade, junto com os demais médicos concursados. Porém, há três meses a empresa não paga os honorários devidos. A dívida da empresa com esses profissionais ultrapassaria R$ 1 milhão.
— Só para eu e mais três médicos que trabalham comigo, eles devem R$ 80 mil.
Segundo um urologista, que também foi contratado pela Plural, a empresa alegou que o pagamento foi comprometido pela crise econômica. Cansados de esperar, os médicos entregaram um documento à direção do hospital, ao Cremesp (Conselho Regional de Medicina), e ao Sindmed (Sindicato dos Médicos), e decidiram parar de trabalhar no dia 1º de setembro.
— O hospital não parou de funcionar. Eles [a direção] complementavam a escala de plantão com médicos concursados do município, que trabalham de segunda a sexta, com os contratados, que só cumprem expediente nos fins de semana.
Dessa forma, os pacientes que chegam ao hospital são atendidos normalmente no pronto-socorro, caso não necessitem de determinados atendimentos. Porém, o quadro de especialistas em cirurgia, ginecologia e obstetrícia, urologia e pediatra está defasado, informou o urologista.
— As escalas ficam incompletas. Tem dia que tem cirurgia de dia, mas à noite não. Às vezes, tem dois plantonistas, mas em alguns dias não tem nenhum e assim por diante. Se o paciente estiver grave, precisa ser encaminhado para outros municípios e isso implica em risco para a população.
A perda de um filho
A autônoma Glenda Ketlin de Moraes Pereira Maia, de 18 anos, acredita que a falta de atendimento médico especializado foi responsável pela perda de seu filho. Grávida de nove meses, a jovem procurou atendimento no Hospital Municipal Doutor Waldemar Tebaldi três vezes, antes de receber a notícia de que o bebê estava morto.
Casados há um ano, Glenda e Felipe Maia de Souza, de 22 anos, contavam os dias para o nascimento de Lucian Filipe. O bebê estava com o quarto todo decorado e já era considerado o xodó da família, pois seria o primeiro filho e o primeiro neto.
Segundo o pedreiro, a jovem fez todo o pré-natal na rede pública de Americana, com exceção de algumas ultrassonografias.
— Eu optei por pagar uns cinco exames (ultrassonografias) porque o aparelho de lá [do hospital] é horrível.
Todos os exames durante a gravidez de Glenda indicavam que o bebê era saudável. A jovem completou as 40 semanas de gestação no dia 7 de setembro. Dias depois, ela começou a sentir muita dor e foi levada ao hospital.
— No dia 12, eu perdi líquido e senti muita dor. A minha mãe saiu do trabalho mais cedo e me levou para o hospital. Chegando lá, um médico muito ignorante (grosseiro) me atendeu e fez o exame de toque. Ele disse que eu não tinha dilatação, que o coração do bebê estava bem e me deu alta. Mas eu ainda estava com dor.
Já em casa, a jovem continuou com dor por mais dois dias até voltar para o hospital. Glenda foi examinada novamente e recebeu a mesma resposta: de que ainda não era a hora do bebê nascer.
A família chegou a pedir que Glenda ficasse internada para fazer monitoramento — o que não foi permitido. A cesárea também foi negada. Segundo a autônoma, na noite de quinta-feira (15), ela sentiu uma cólica muito forte e teve sangramento. Ela chamou o marido e a mãe e voltou ao hospital por volta das 7h de sexta-feira (16).
— Chegando lá, as enfermeiras me mandaram para a maternidade. Aí, eu fiquei sozinha numa sala até as 13h sentindo muita dor, enquanto elas [as enfermeiras] ficaram conversando, dando risada, mexendo no celular.
Pouco tempo depois, Glenda foi atendida por um médico. Após o exame, a jovem percebeu que havia algo errado.
— A enfermeira tentou ouvir o coração do bebê, mas não conseguiu, e o médico balançou a cabeça. Eu entrei em desespero.
O médico decidiu fazer duas ultrassonografias em aparelhos diferentes para ter certeza do diagnóstico.
— Ele não precisou falar nada. Eu já sabia que o bebê estava morto.
A jovem contou que foi levada para um quarto antes do parto. Segundo ela, o hospital queria que retirassem o bebê via canal vaginal, mas o médico optou por uma cesárea. O bebê só foi retirado 10 horas depois da entrada de Glenda na unidade de saúde, após a mãe dela acionar a direção do hospital.
A placenta de Glenda foi encaminhada a um laboratório para análise. O resultado deve sair em 15 dias com as possíveis causas da morte do bebê.
Glenda ainda ficou uns dias internada. Felipe também reclama do atendimento após a tragédia.
— Até agora o hospital não falou nada. A gente vai conversar e não nos tratam direito.
Em uma rede sociail, Glenda fez homenageou o filho:
“Pensei que eu iria levar você comigo para casa. Sentir o seu cheiro, seu choro, poder levar você em meus braços. Eu pedi a oportunidade de ouvir você me chamar de mamãe e chamar o seu pai de papai. É difícil aceitar que você se foi. Como eu queria você de volta...Amanhã tenho alta e vou embora de braços vazios”.
A família procurou uma advogada e pretende processar o hospital.
"Não se pode cruzar os braços"
O conselheiro do Cremesp (Conselho Regional Medicina Estado São Paulo) em Americana, Renato Fraçoso Filho, afirmou não ter sido comunicado oficialmente sobre o abandono dos plantões por médicos contratados pela Plural. Também não há informações sobre o vínculo empregatício do grupo de médicos com a organização.
— Não sabemos os limites da contratação nem o número de médicos envolvidos. Em nenhum momento, fomos chamados por estes médicos.
Segundo Fraçoso, mesmo com possíveis problemas entre os profissionais e a organização, o atendimento à população não pode ser negligenciado.
— É inadmissível alguém trabalhar sem receber seus devidos honorários. Mas, se existe um compromisso de escala de plantão, com a qual concordaram em participar, não podem abandoná-lo. Se tiver algum médico, tem que atender as emergências.
Ainda de acordo com o conselheiro, a população precisa ser avisada sobre a falta de médicos, bem como sobre os motivos que levaram a esta situação, e orientados para que busquem outras formas de atendimento.
Em relação às denúncias de pacientes, que teriam aumentado após o início da greve, Fraçoso apenas informou que os casos chegam ao conselho diariamente, mas são investigados sob sigilo.
— As denúncias que chegam ao conselho são devidamente apuradas através de sindicâncias. Eu não posso falar dos casos porque correm sob sigilo da Justiça. Só são reveladas ao final da sindicância.
A Prefeitura de Americana negou a falta de médicos e informou que o atendimento no hospital funciona normalmente, sem cancelamento de nenhuma cirurgia. Segundo a administração municipal, a prefeitura faz o pagamento à Plural que, por sua vez, cuida dos pagamentos dos médicos.
“A Prefeitura tem priorizado o pagamento dos servidores municipais. À medida que forem entrando recursos, fará os devidos pagamentos à empresa, como tem feito desde 2015 com todos os seus fornecedores”.
Em relação à demora na cesárea de Glenda, a prefeitura informou que "nesses casos específicos de cesariana, a paciente precisa ser medicada horas antes do procedimento cirúrgico para evitar possíveis infecções, demandando, portanto, um certo tempo de espera". E ressaltou que o atendimento “não tem qualquer relação com a greve dos servidores, uma vez que os funcionários do hospital municipal não entraram em greve”. Ainda segundo a prefeitura, a causa da morte do bebê está sendo investigada.
O Sindmed (Sindicato dos Médicos de Campinas e Região) destacou que “a forma de contratação desses profissionais pela empresa Plural viola a legislação trabalhista e precariza o trabalho dos médicos”, que deveriam ter sido contratados com carteira assinada e pagamento de todos os direitos trabalhistas.
Segundo a organização, não se trata de um movimento grevista “porque esses profissionais não possuem vínculo trabalhista com a Plural, tampouco com o município, pois foram contratados como profissionais liberais, através de contrato de prestação de serviços”.
O sindicato “está adotando as medidas judiciais cabíveis para garantir o pagamento dos meses em atraso, sem prejuízo de denúncia ao Ministério Público do Trabalho para que sejam averiguadas as irregularidades na contratação desses profissionais pela empresa Plural”.
Procurada, a Plural não se manifestou sobre a denúncia dos médicos.