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Pacientes de doenças esquecidas relatam momentos de sofrimento e dor: "Minha defesa é o grito"

A negligência se inicia nas carências sociais e vai até a falta de diagnóstico e tratamento

Saúde|Eugenio Goussinsky, do R7*

Nancy preside associação no Rio de Janeiro e busca tratamento
Nancy preside associação no Rio de Janeiro e busca tratamento Nancy preside associação no Rio de Janeiro e busca tratamento

Um dos mais conhecidos vizinhos das populações pobres no Brasil, que costumam viver em descampados, em cidades de estilo rural ou com saneamento precário, é invisível: o risco de contrair doença típica dessas regiões. Elas em geral se associam a parasitas encontrados em animais ou vegetais. E esse vizinho incômodo não faz cerimônia para, de risco, virar realidade. Silencioso, ultrapassa as portas das casas de alvenaria gasta e se instala como hóspede. Imperceptível. Até que, do dia para a noite, como em um filme de terror, a pessoa se olha no espelho e percebe aquela companhia desagradável, presente há anos na casa que, de tão invasivo, até entrou no corpo dela sem pedir licença.

Moacir Zini e sua esposa, com quem se casou sem calçar sapatos
Moacir Zini e sua esposa, com quem se casou sem calçar sapatos Moacir Zini e sua esposa, com quem se casou sem calçar sapatos

Em torno de 16 milhões de brasileiros, atualmente, sofrem com alguma doença negligenciada. A negligência, na verdade, compõe toda uma cadeia de descaso que se inicia nas carências sociais e se estende até a falta de acesso a diagnóstico e tratamento a esses 20 tipos de moléstia. Nancy Dominga da Costa, 42 anos, natural da pequena cidade de Grão Mogol (MG) e Moacir Zini, da distante (dos grandes centros urbanos) Ipiranga do Norte (MT), sabem bem o que é isso. Nancy contraiu a doença de Chagas e vive um drama na busca de medicamento. Moacir, somente agora, tem conseguido se livrar dos traumas provocados pela leishmaniose, contraída há 26 anos.

A moça de Minas Gerais, hoje morando no Rio de Janeiro, já sabia o que era a doença, ao acompanhar todo o processo que culminou com a morte de seu sobrinho de 29 anos. Seus dois irmãos também contraíram Chagas. Segundo ela, o que a surpreendeu foi, mesmo tendo sempre feito exames de rotina, ter sido diagnosticada com a doença apenas após um AVC (Acidente Vascular Cerebral), causado pela enfermidade. Nancy concilia o trabalho no Detran com a presididência da Associação Rio Chagas. Vivendo sozinha, iniciou um tratamento para tentar controlar sua doença, até agora incurável, já que não existe um medicamento específico no mercado. Muitas vezes ela tenta em vão atenuar o sofrimento.

— Sinto muita dor. Estou em pé porque fiz muita fisioterapia. Desde o AVC, há três anos, faço duas vezes por semana e caminho sempre que posso. Mas a dor ainda existe, o lado direito dói todo. É a carne que dói, não sinto dor nas juntas, tenho um lado paralisado. Mas tocou em mim eu dou um grito, minha defesa é o grito. Se alguém me toca e eu não vejo, sinto muita dor, queima do pé à cabeça. É uma queimação, parece que me jogaram água fervendo, a sensação é essa, não é uma dor normal. E me acompanha 24 horas por dia.

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Presente no Encontro de Parceiros DNDi 2016 (Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas), no Rio, onde interagiu com pacientes de outras doenças e com especialistas do setor, Nancy caminha pelo saguão fora do auditório e vai manquitolando levemente, tal qual suas inseguranças. Mas, como sua esperança, ela permanece de pé. E seus pequeninos olhos emanam um brilho profundo por trás dos óculos, quando ela confessa, por meio de voz delicada e amortecida, o seu maior sonho: viver um pouco mais.

— No momento não há cura para o que tenho, um aneurisma no coração. Tomo anticoagulante para evitar outro AVC, mas poderiam existir mais medicamentos específicos para este tipo de caso. É por isso que estamos lutando, o objetivo da associação é esse, divulgar nossa causa por mais pesquisas para a descoberta de um tratamento. Sou muito nova, tenho 42 anos, não quero morrer agora. Sei que vou morrer, mas é muito cedo, concorda? Estou lutando para conseguir viver pelo menos até os 60. É o que planejei, depois de 60 não sei, mas tenho só 42 agora.

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Mudança das políticas

O mato-grossense Zini só conseguiu descobrir o alívio com a ajuda da DNDi, criada, entre outros, pela Médicos Sem Fronteiras, para a obtenção de um medicamento adequado para a leishmaniose, doença transmitida por insetos hematófagos (que se alimentam de sangue), encontrados principalmente em lugares úmidos e com muita vegetação. Após ele ficar 26 anos atrás de um remédio eficiente, a entidade tomou conhecimento do caso e trabalhou para a obtenção de uma solução medicamentosa que, em cerca de 20 dias, mudou sua vida, segundo ele. Ele mal podia sair de casa devido às feridas causadas pela doença.

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— Meu desejo agora é que os brasileiros não passem pelo que passei e procurem o quanto antes entidades capazes de lidar com essas doenças. Eu fui a vários lugares, Cascavel, Curitiba e por anos não encontrei um medicamento. Graças à DNDi encontrei uma solução.

Zini não esconde a emoção ao contar que, em pouco tempo, a agonia foi interrompida. Ele simplesmente passou a sair de casa. E, como conta, sentiu a alegria de poder nadar ao lado da filha, de três anos.

— Eu olhava para mim e não acreditava. Dizia: "não sou eu!" Eu estava conseguindo calçar sapato! Fiquei 26 anos sem calçar sapato, não ia a lugar nenhum, não tinha acesso a nada porque minha história é difícil. Me casei de pé no chão. Minha filha mais nova de três anos olhava para mim e me falava: você não pode entrar na piscina, você é cheio de machucado. No dia em que me viu (sem as feridas) falou, toda contente: pai, você pode hoje entrar na piscina, hoje você não tem machucado.

O "catastrófico" surto leishmaniose que está se alastrando pelo Oriente Médio

Mas no evento em que puderam falar sobre as tristezas e esperanças, os pacientes, pela primeira vez, talvez, sentiram na alma algo que, em vez da doença silenciosa, cala um pouco a própria dor. Até o representante do Ministério da Saúde do Brasil, Renato Alves, mediador de uma rodada de debate, admitiu que somente a reivindicação trará resultados.

— Falo com maior tranqulidade, sou do Ministério da Saúde e só vou ficar plenamente satisfeito quando a presença dos pacientes e pessoas afetadas, de maneira organizada, começarem a ser um incômodo para o ministério, para o poder público. Quando vocês (pacientes) começarem a incomodar, nos trazer transtorno e ligar no ministério e eu não quiser atender, acho que esse é o cenário que vai provocar de fato a mudança das políticas públicas. Não existe política pública sem demanda social.

E assim, além do grito da dor, pacientes como Nancy estão conhecendo um novo grito, que poderá abrir novas portas e trazer novas descobertas. O grito de desabafo, pelo próprio direito de viver, sem se sentir esquecido.

* O jornalista viajou ao Rio de Janeiro a convite da DNDi (Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas)

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