'Construir a memória coletiva do Brasil é um caminho para busca pela justiça', diz Daniela Arbex, autora do livro sobre tragédia do Ninho do Urubu
Nos últimos anos, a jornalista tem se dedicado a investigar os casos que comoveram o Brasil, como o incêndio na Boate Kiss e o rompimento da barragem de Brumadinho
Entrevista|Bruna Oliveira, do R7
Foi com uma escrita humanizada que a jornalista e escritora Daniela Arbex se propôs a contar no seu novo livro a história dos 10 meninos mortos em um incêndio no alojamento das categorias de base do Flamengo. O recém-lançado Longe do Ninho resgata a trajetória e os sonhos dos atletas Arthur, Athila, Bernardo, Christian, Gedson, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo, Samuel e Vitor Isaías.
Conhecida por transportar os leitores para os cenários das maiores tragédias que comoveram o Brasil na última década, a autora premiada também remontou o dia 8 de fevereiro de 2019. O trabalho de pesquisa e apuração resultou na dura revelação de que as vítimas não morreram dormindo — como até então se pensava — no centro de treinamento do Ninho do Urubu.
Como a própria Daniela Arbex mesma define, Longe do Ninho é uma declaração de amor de dez pais aos seus filhos e, ao mesmo tempo, uma recusa ao esquecimento da tragédia.
Em entrevista ao R7 Entrevista, a autora comentou sobre os detalhes da investigação jornalística e a relação com as famílias em meio ao luto. Também se emocionou ao falar da luta por justiça de parentes de vítimas do incêndio.
Com o compromisso profissional de construir a memória coletiva do Brasil, Daniela Arbex ainda citou os recentes trabalhos sobre o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais (Arrastados, 2022) e o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul (Todo Dia a Mesma Noite, 2018), que, na visão dela, de alguma forma, se conectam pela falta de responsabilização e o sentimento de impunidade.
Veja a conversa com Daniela Arbex a seguir:
R7: Diferentemente do que o público pode imaginar, você não procurou o caso do Ninho do Urubu para investigar, mas ele chegou até você. No livro Longe do Ninho, você conta que a mãe do goleiro Bernardo, morto na tragédia, entrou em contato pelas redes sociais e deu a ideia do livro. Quando essa história se tornou um projeto profissional?
Daniela Arbex — Sempre digo que os livros nascem para mim. Isso aconteceu em todos os seis. O caso do Longe do Ninho acontece porque, em 2022, eu tinha lançado o Arrastados, que narra o rompimento da barragem de Brumadinho, e dei uma entrevista. A Leda assistiu e mandou uma mensagem. Naquele primeiro momento, ela não falou nada de livro. Absolutamente. Começamos a conversar sobre luto, amor de mãe e filhos, até pela proximidade da idade do Bernardo com a do meu filho. Foi assim que a gente se conectou. Naquele momento, acho que a única coisa que eu podia oferecer a ela era empatia. A gente continuou a conversa ao longo dos dias, até que Leda começou a me mandar fotos do filho. E uma delas me atravessou, que era do Bernardo dormindo com a bola, até cito isso no livro.
O avô do Bernardo dizia para ele: 'Se você quiser ser um bom goleiro, tem que ter intimidade com a bola'. E o Bernardo passou a dormir com a bola desde muito novinho. E, realmente, naquele momento fui atravessada por essa história e pensei: 'Será que posso fazer alguma coisa por essa história? Pelo Bernardo?' E aí, fui me dar conta de que não sabia nada sobre a história dos meninos nem o nome deles. Eu sabia o que todos sabiam, que tinha ocorrido um incêndio com 10 vítimas. Mas quem eram essas 10 vítimas? Fui atrás dessa resposta.
O livro apresenta a história de vida dos meninos e o contexto em que estavam inseridos até a tragédia acontecer. Como foi o desafio de remontar o dia do incêndio a partir do relato de testemunhas, dos sobreviventes e dos pais?
Foi uma investigação muito desafiadora pelo volume do processo, quase 7 mil páginas no momento que entrei na história para investigar, por tantas coisas que, para mim, eram desconhecidas, e acabei percebendo depois que eram desconhecidas também para a sociedade brasileira. Primeiro, fui conhecer as 10 famílias para entender a personalidade desses atletas, de onde saíram, derrubar alguns mitos — que se diz que a família investe no menino, como se ele fosse a bola de ouro daquela família. E não é verdade. A família investe no sonho daquele menino. Percebi ali os esforços que foram feitos, inclusive, de renúncias. Porque ou você pegava o pouco dinheiro que tinha para fazer alguma coisa dentro de casa ou você usava esse dinheiro para manter o menino longe de casa. Depois, para reconstituir o incêndio, a gente fez mais de 150 entrevistas, não só com parentes e sobreviventes, também com agentes públicos que trabalharam na tragédia em si. Para compreender o que havia ocorrido ali, fui para a perícia criminal entender como tinha sido o trabalho deles. Naquele momento, cheguei em um croqui [do alojamento], que, para mim, era muito importante. Porque esse croqui me mostrou, na primeira vez que olhei, que os meninos tinham se movimentado no contêiner e que aquela versão inicial que eles tinham morrido dormindo não se sustentava. Só que os peritos não sabiam quem eram os meninos. Eles não tinham sido identificados no croqui. Então, como descobrir quem eram aqueles meninos? Nós fomos até o IML e conseguimos identificar cada menino na cena. A partir da identificação de cada menino na cena, a gente foi falando com os sobreviventes para entender o que aconteceu em cada quarto. E é interessante que em um dos quartos só tinha um sobrevivente. Eram quatro atletas, três tinham morrido, e esse sobrevivente se recusava a falar. Ele dizia: 'Eu não aguento. É um trauma muito grande. Para mim, é muito difícil'. Falei com ele: 'No seu caso, a gente precisa que você fale, porque você é o único sobrevivente do seu quarto. Você é a voz dos seus irmãos'. E ele ficou tão imbuído de representar os meninos que acabou contando, e a gente conseguiu trazer detalhes inéditos. Então, foi um trabalho desafiador, árduo, para que a gente pudesse recontar, revelar, denunciar o que aconteceu, mas também falar do afeto. Eu falo que o Longe do Ninho é uma declaração de amor de 10 pais e mães pelos seus filhos. Mas ele é uma recusa ao esquecimento.
O que foi esse desconhecido que você precisou entrar em contato no momento que começou a levantar as informações?
Primeiro, o universo do futebol, para mim, era novo. Nesses 30 anos que tenho no jornalismo, sempre trabalhei denunciando violações de populações vulnerabilizadas. Eu nunca tinha feito uma cobertura de esporte, por exemplo. Então, isso foi um grande desafio. Não sabia se ia dar conta de fazer isso. Mas pensei: 'De gente eu entendo um pouco. Então, é por aí que eu vou fazer e contar essa história'. Por exemplo, eu não sabia que, no caso de mortes violentas, quando se tem um número maior de cadáveres, os corpos recebem uma numeração no local do crime e, geralmente, as vítimas recebem outra numeração ao chegarem no IML. Nesse caso do Ninho, felizmente, eles não receberam uma nova numeração. E isso me permitiu saber quem eram aquelas vítimas e onde elas estavam exatamente quando foram encontradas — primeiro, pelos bombeiros e, depois, pelos peritos criminais. Ou seja, é um universo de coisas absolutamente novas, que também precisei aprender e tive que lidar com isso.
Acredito que o mais difícil tenha sido tomar conhecimento do que você revelou, que nem todas as vítimas morreram dormindo e duas delas tentaram escapar juntas até o fim. Este caso foi o que impactou mais?
Tudo foi muito impactante. Para mim, foi muito impactante perceber que, em um ambiente de competitividade, esses meninos, de fato, formaram uma família, porque, se você observar, em toda cena, em toda tentativa de fuga, a afetividade venceu o medo da morte. Nesse caso específico do Jorge e do Samuel, é impressionante: eles estavam em um quarto presos por dentro, porque a porta estava com defeito e travava por fora, então, eles já sabiam que pela porta não sairiam. E ainda assim, o Samuel, que era 10 cm mais baixo do que Jorge Eduardo, se recusou a sair do quarto — não sei como sairia, mas se ele saísse só sairia com o Jorge Eduardo, e ele carrega o Jorge Eduardo nas costas. Isso foi absolutamente emocionante para mim. E o mais bonito é porque, quando os peritos se depararam com essa cena que sugere que um levou o outro nas costas, eles não sabiam quem eram aqueles meninos. E descobrir que os dois eram melhores amigos fez aquela cena ter mais sentido. E acho que o momento mais difícil, talvez, foi o de contar para os pais o que aconteceu em 8 de fevereiro de 2019. De todos os livros que eu fiz, nunca tive uma decisão tão difícil, com uma responsabilidade desse tamanho, de falar para as famílias: 'olha, não foi assim, foi assim'. Acho que, embora todos os meus trabalhos tragam revelações e detalhem cenas de locais crimes, neste livro a responsabilidade foi maior de revelar para as famílias o que realmente havia acontecido. E isso fazia parte mesmo de um pacto de ética, de responsabilidade que construí com essas famílias. Jamais deixaria que descobrissem lendo o livro o que aconteceu. Acho que era uma obrigação falar e ler para eles. Me perguntaram, outro dia, como seria quando lessem no livro, e eu disse que já haviam lido. Li para eles antes de chegar às livrarias. É desse respeito e desse cuidado que eu estou falando.
Houve alguma contestação nessa versão descoberta?
Na verdade, não. O Flamengo se recusou a falar para o livro, não quis dar depoimento. A gente nem pôde apresentar para o Flamengo o que a gente descobriu. Agora, o que a gente descobriu não é uma versão. É uma constatação do que aconteceu. Quando a gente olha o croqui e a gente percebe que os meninos todos se movimentaram no quarto 4, que nenhum deles estava no quarto, é incontestável. Você vai dizer que todos morreram dormindo, se todos morreram no corredor, fugindo. Não tem o que dizer.
Como foi o processo para ter acesso a essas informações e documentos que você mostrou no livro?
É um longo processo de pesquisa. Embora o processo seja público, a investigação jornalística tem como uma das premissas juntar os fatos. É como se fosse um quebra-cabeça em que você vai juntando as peças para conseguir enxergar o todo. A gente partiu de um evento cujo resultado é conhecido [10 atletas mortos e 14 sobreviventes] e passou a buscar o desconhecido, que era como de fato aconteceu, o que antecedeu e o que os meninos estavam fazendo antes do incêndio. E aí, a gente conseguiu descobrir que eles estavam jogando um jogo, o que cada um estava fazendo. Eu acho que a humanização de uma história é a parte mais difícil. Porque a gente tem números, mas não são números. São pessoas cheias de sonhos e projetos de vida, que sacrificaram a infância e adolescência para estarem ali. Então, humanizar essas histórias e trazer de volta essas vidas é o maior desafio.
Durante a investigação jornalística ficou demonstrado que o incêndio era uma tragédia anunciada. O livro cita as várias notificações que o Flamengo havia recebido sobre o problema de manter os meninos dormindo no contêiner, as fiscalizações que não resultaram em medidas tomadas e as multas aplicadas ao clube. Escrever o livro foi também uma maneira de pedir justiça?
Falo sempre que meu trabalho é muito focado na construção da memória coletiva do Brasil. Quem me acompanha sabe disso. E construir a memória coletiva do Brasil é um caminho potente na busca por justiça. Não tenho dúvidas disso. Acho que o livro dá elementos para que a gente possa se instrumentalizar para combater essa cultura de impunidade que fez com que a gente chegasse até aqui, cinco anos depois, sem justiça. Isso é um ponto. Outra questão que queria, a partir do momento que tive acesso, era construir para o leitor a linha do tempo que mostra que, de 2012 até 2019, o Flamengo recebeu dos órgãos públicos do Rio de Janeiro inúmeras oportunidades para adequar o atendimento que era oferecido para os atletas de base. Desde 2012, o Ministério Público começou a fiscalizar o centro de treinamento após um acidente com um atleta em um canteiro de obras. Em 2014, o MP propôs um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta], que o Flamengo se recusou a assinar, alegando que já vinha cumprindo boa parte das medidas que eram propostas ali. Em 2015, isso foi judicializado. Foi instaurada uma ação civil que, em tese, é um baita instrumento de transformação social e da realidade porque é uma ação que pensa no coletivo — ou seja, ela deveria ser efetiva. E aí, a gente tem que questionar o próprio sistema de justiça. Porque o tempo da justiça não é o mesmo tempo de quem precisa dela. É inconcebível pensar que, em 2019, quando o incêndio aconteceu, essa ação civil pública estava tramitando ainda sem uma resposta. Se não bastasse tudo isso, em junho de 2018, uma fiscalização do MP, que chamo de premonitória, que aí você tem a certeza de que foi uma tragédia anunciada, apontou inadequações daquele conteiner, que aquele não era um alojamento adequado para os meninos, embora, reiterasse que os atletas estavam provisoriamente. E aí, [a fiscalização] diz que no caso de uma emergência noturna o clube teria grandes dificuldades. E não foi o que aconteceu? Exatamente pela presença de apenas um monitor. Ter mais monitores já era uma demanda solicitada pelo MP desde 2014. Fora toda a questão de todas as multas aplicadas pela prefeitura. O próprio juiz que acolhe a denúncia e o que condenou a indenizar a família do Christian falam em multas inócuas. Um clube do tamanho do Flamengo [receber] uma multa de R$ 804 é ridículo. Foram oportunidades que o Flamengo recebeu. E os meninos não tiveram as mesmas chances, aliás, não tiveram uma chance.
Recentemente, a Justiça determinou que o Flamengo pague uma indenização de quase R$ 3 milhões à família do goleiro Christian Esmério, única que não havia feito um acordo. A mãe dele afirmava não aceitar o clube dizer quanto valia a vida do filho dela. Como você viu essa decisão judicial?
Fico até emocionada, porque a Andreia, para mim, é uma mãe símbolo de resistência. Não é fácil enfrentar um clube deste tamanho, no sentido de se recusar a fazer um acordo, poxa, todo mundo fez e você não faz. Ela me disse: 'É como se o réu decidisse a sentença que ele quer cumprir. Não é justo. Se o juiz disser que o valor da indenização é mais baixo do que propus, eu vou acatar. Só que quem vai dizer é o juiz'. A sentença dele é muito enfática. Ao falar da responsabilidade, da tutela, no momento em que esses meninos estavam dormindo lá, o clube era responsável. Nesses cinco anos, acho tão simbólico, uma ação, que tramita desde 2021, ter uma resposta agora. Falo sempre que a falta de justiça dói tanto quanto a morte. Embora não alcance a dor que a Andreia sente, imagino como é para ela — apesar de ainda caber recurso, ver que a Justiça reconheceu o tamanho da dor dela, o tamanho da ausência. E que foi a Justiça quem definiu esse valor, que não vai trazer o Christian de volta, mas a reparação é necessária. Se a gente tivesse tido as responsabilizações ao longo da história e das tragédias recentes do país, talvez, a gente não tivesse o incêndio no Ninho do Urubu.
O processo que denunciou oito réus pelo incêndio no centro de treinamento Ninho do Urubu ainda está parado?
Não teve sentença ainda, mas destaco a manifestação do juiz que recebeu a denúncia do MP, quando ele fala em autorias colaterais. Ele critica o fato de que outras pessoas também deveriam ter sido indiciadas. Ele foi muito duro em relação à omissão do poder público, da prefeitura, enfim. Uma manifestação que impressiona. E eu concordo com ele, tanto é que a gente deu o título de 'autorias colaterais' para um dos capítulos.
'Ninguém está preparado para enterrar o futuro' é uma frase do seu livro. Como foi para as famílias lidar com todas essas novas informações em meio ao luto?
Foi muito difícil. Talvez, eles preferissem pensar que as vítimas morreram dormindo. É menos doloroso. Mas, ao mesmo tempo, a verdade é muito libertadora. Percebo ao longo da minha carreira, tanto no jornal como na literatura, que a escuta qualificada é muito potente, no sentido de libertação dessas pessoas. Falo muito que a memória afetiva é um lugar que você só acessa se alguém permitir entrar. Quando alguém te dá acesso a isso, você tem que honrar essas histórias. Acho que é também parte do meu trabalho honrar e dignificar essas histórias. Que é também o que a médica-legista, do IML [Instituto Médico-Legal], faz ao devolver a identidade. A devolução da identidade traz de volta dignidade. Porque esses meninos mereciam, primeiro, ter resgatado os seus nomes e, depois, suas histórias e os seus sonhos. E os pais entenderam. Por mais difícil que fosse, a própria Andreia, a mãe que falamos, que chorou bastante durante a leitura, disse assim: 'Só depois dessa leitura consegui devolver meu filho para Deus'.
E a sua relação com futebol mudou após o livro?
Embora meu pai seja um flamenguista apaixonado — ele tem 96 anos e torce para o Flamengo desde criança, eu não tinha uma relação com o futebol, mas acho que o que mudou foi que esse livro me acendeu um alerta sobre a gente questionar a capacidade que os clubes têm de garantir ou de oferecer cuidados relacionados à saúde mental desses meninos. Me acendeu um alerta sobre quando você tem a infância e a adolescência confiscadas, no momento em que um menino é todo trabalhado durante o período em que está no CT, mas, por algum motivo, ele não se torna um atleta profissional e não vislumbra mais nenhum futuro. Isso ficou muito claro, para mim, em uma entrevista com um sobrevivente, que teve lesões ao longo da trajetória dele e não conseguiu continuar no futebol, e ele disse que se sentia velho demais aos 19 anos. Quem se sente velho aos 19 anos? Passei a fazer vários questionamentos a partir do contato com essas histórias. Então, a necessidade de os clubes pensarem nesse menino como um sujeito integral, que está ali em busca de um sonho e tem a meta de ser um jogador de futebol, mas garantir que ele possa ser qualquer coisa também. Garantir que o atleta tenha escola de qualidade, uma visão de futuro, porque ele sai de casa precocemente, mantém relações comerciais muito cedo, tem os laços familiares fragilizados por essa distância de casa. São muitas perdas ao longo do caminho. Acho que é sobre isso que a gente precisa pensar.
Você se dedicou a contar outros casos que chocaram o país na última década. Qual a importância de participar da construção da memória coletiva do Brasil?
Penso ao longo da minha carreira, mas, nos últimos dez anos, sobre a importância do jornalismo como construtor dessa memória coletiva do país. Eu não tinha essa dimensão — e eu trabalho há tantos anos com denúncias — desse compromisso que a gente tem de contar essas histórias porque eu falo que a falta de responsabilização de uma tragédia alimenta a próxima tragédia. Costumo dizer também que não falo sobre tragédias, eu falo sobre as omissões que causam tragédias. E a gente precisa falar. Esse é o nosso compromisso. Sempre ouvi dizer que o brasileiro é um povo sem memória, não é bem assim. Como você vai ter memória se ela não foi construída? A gente não se habituou a construir memória das coisas. Então, um evento se sobrepõe ao outro e você já esqueceu. É tanta coisa, a gente está mergulhado em tanta violência urbana, que a gente se habituou a conviver com essas injustiças.
Há algo em comum nessas tragédias que você pesquisou?
Boate Kiss, Ninho do Urubu, Brumadinho, Mariana têm em comum a impunidade. Não por acaso a gente tem todas essas grandes tragédias da história recente do Brasil sem nenhuma responsabilização. Ninguém foi preso, ninguém respondeu por nada. Isso me impressiona muito. É quando eu falo que a falta de justiça, a impunidade, alimenta a próxima tragédia. Talvez, se lá trás, na Boate Kiss, a gente tivesse tido uma responsabilização exemplar e efetiva, porque o tempo da Justiça não é o tempo da pessoa que precisa dela... Então, a justiça tardia é justiça? Eu não sei se é. Sinceramente. Eu vejo as famílias da Boate Kiss deteriorando a saúde ao longo dos anos, se desestruturando em função dessa ausência da justiça. Fico pensando que esses casos conversam uns com os outros exatamente porque não houve responsabilização. Isso choca muito. Se você somar o número de mortos nesses casos, ultrapassa 500, e não estou nem falando somente das vítimas diretas. Em Mariana, por exemplo, além das 20 vítimas, ao longo desse processo de luta das famílias por justiça, 59 pessoas da comunidade morreram. Estamos falando de vítimas diretas e indiretas. Em torno das vítimas da Boate Kiss, existem 3500 pessoas, parentes diretos duramente afetados, com a vida e a saúde comprometidas, mortes após a morte dos filhos ou tentativa de autoextermínio. É disso que a gente está falando.
Ao se envolver com histórias tão delicadas, como você cuida do seu psicológico?
Se eu te disser que não fui afetada pelas histórias que contei, é mentira. Acho que ao longo dos processos que passei fui afetada, sim, minha rotina familiar foi afetada, não tem como negar. Na Boate Kiss, por exemplo, eu perdi a metade do cabelo, engordei 10kg, precisei fazer terapia, nunca tinha feito, porque não conseguia me reconhecer. Só que essas histórias, com a experiência e o amadurecimento que o tempo me permitiu ter, fui enxergando que o meu lugar é de muito privilégio. Quando fiquei muito adoecida depois que entreguei o livro da Kiss, eu pensei: 'Gente, eu não sou vítima. Nem de longe eu senti nada parecido com a dor das famílias. Eu não tenho o direito de me sentir dessa forma'. E aí, fui entender esse meu lugar de privilégio que é alguém que recebe do outro essa memória afetiva, que é tão preciosa. E isso me fortaleceu muito. Embora essas histórias me atravessem, penso sempre que é um baita privilégio ter pessoas que confiaram a mim as suas memórias. É uma honra para mim. E eu acho que isso me fortaleceu para conseguir lidar com tudo.
Como foi o seu processo de transição de carreira ao deixar a redação jornalística para se dedicar à literatura?
Não foi planejado. Eu falo que a minha relação com a redação foi um casamento de 23 anos perfeito. Eu amava o que eu fazia. Tenho muita paixão pelo jornalismo. A questão do jornalismo diário é que tem uma adrenalina da manchete que no dia seguinte está lá e você já tem o retorno. É uma coisa incrível. Chegou um momento da carreira, e eu já tinha escrito o Holocausto [Brasileiro], que comecei a ver que não ia dar conta de fazer as duas coisas. A literatura começou a demandar muito de mim. Em 2019, aconteceu essa separação que, inicialmente, foi muito difícil, confesso. Porque desde que me entendo por ser jornalista, há 30 anos, sempre acordei e fui para a redação. Só que tem um lugar que, para mim, é tão potente e mais maravilhoso que é a rua. Com a literatura, entendi que ia continuar na rua, em contato com as pessoas. E o mais importante, para mim, é que eu sou uma contadora de histórias. Não me vejo fazendo outra coisa, só sei contar histórias. A literatura me permitiu continuar contando essas histórias com qualidade, porque me deu a oportunidade de ter mais tempo. Tempo é tão precioso. E, às vezes, o tempo é inimigo do jornalista no jornalismo diário. Uma história foi me preparando para outra. E a redação me preparou para ser essa autora que eu gostaria de ser, não estou dizendo que eu sou, mas que eu gostaria de ser, que é essa contadora de histórias do Brasil.
Como você vê o segmento do livro-reportagem no Brasil e o interesse do público?
Sou uma felizarda porque, hoje, sou uma autora de livro-reportagem, talvez, não sei se estou falando besteira, mas a autora feminina que mais vende livro-reportagem no Brasil. São histórias densas, difíceis de digerir, mas as pessoas entendem que são necessárias e mergulham nelas. O que eu recebo de retorno é que ninguém consegue ler um livro desse e terminar da mesma forma que começou, sem uma reflexão profunda. Porque acho que jornalismo é isso. Não é só contar uma história de forma que toque o leitor, mas acho que o que a gente quer é transformar quem lê de alguma maneira. Eu falo que o jornalismo é ponte para o coração do outro. E é uma travessia maravilhosa. Porque, quando a gente chega do outro lado, a gente também se transforma.