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'Militarização da guerra às drogas só aumentou a violência', diz autora

Para jornalista canadense Dawn Paley, especialista nas consequências do combate às drogas na América Latina, a violência do Estado é 'mascarada'

Internacional|Fábio Fleury, do R7

Para a jornalista canadense Dawn Paley, a guerra às drogas é um "fracasso"
Para a jornalista canadense Dawn Paley, a guerra às drogas é um "fracasso" Para a jornalista canadense Dawn Paley, a guerra às drogas é um "fracasso"

A guerra às drogas é uma guerra perdida, pelo menos do ponto de vista de quem mais sofre com ela, a população pobre dos países em desenvolvimento, especialmente na América Latina. Já para os Estados e os poderosos que os governam, pode ser um negócio bem lucrativo.

Essa é a principal tese defendida pela jornalista canadense Dawn Paley, autora do livro "Drug War Capitalism" ("Capitalismo Antidrogas", ainda sem tradução no Brasil). Ela afirma que a militarização do combate às drogas aumentou exponencialmente a violência em países como a Colômbia e o México.

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Estudiosa da situação nos dois países, Dawn lembra que a taxa de homicídios mexicana explodiu nos últimos 12 anos, depois que o país passou a combater o narcotráfico com um aparelhamento militar cada vez maior.

Centenas de mihares de pessoas morreram devido ao conflito entre o governo e cartéis, outras dezenas de milhares saíram de suas casas. Muitas vezes, isso acaba sendo interessante do ponto de vista econômico, afirmou a autora, em entrevista ao R7. Ela esteve no Brasil em junho, a convite do Instituto de Relações Internacionais da PUC-SP, para participar do seminário "Drogas e Violência nas Américas: as alternativas no limite; os limites das alternativas".

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O foco da guerra às drogas, dos anos 1980 até hoje, tem sido em combater grupos criminosos. Os governos têm encarado o problema do jeito errado?

Sim, definitivamente. A proibição é um desastre, tem sido um desastre para a sociedade e para as pessoas em todo o mundo. Ela é a principal estratégia, no meu livro eu falo disso. Desde os anos 2000, na Colômbia e no México, tem havido um crescimento da militarização desse combate. Essa tragédia levou a 240 mil homicídios no México somente nos últimos 12 anos. Desde dezembro de 2006, a taxa de homicídios no México mais do que dobrou em relação aos 12 anos anteriores. E lá ainda existe uma crise de desaparecimentos, nesse período desapareceram mais de 35 mil pessoas. Isso falando de desaparecimentos registrados, porque existem incontáveis famílias que não registraram por medo e há várias entidades lá que acreditam que esse número pode ser de seis a nove vezes maior. Você tem centenas de milhares de pessoas que tiveram de sair de suas casas também. Tudo isso é impacto direto da militarização do combate às drogas, apoiada não apenas pelo governo mexicano, mas pelo norte-americano também.

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A influência dos Estados Unidos na região tem muita relevância nisso?

Sim. O discurso para a América Latina e o México, durante a Guerra Fria, era combater o comunismo. Agora, estamos numa nova guerra. O discurso é combater as drogas e quem as vende, mas o que vemos é que isso tem muito mais a ver com controle do Estado, disciplina e capitalismo.

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O que acontece hoje no Uruguai e nos estados norte-americanos onde a maconha está sendo legalizada pode levar a uma nova política mundial de drogas?

Acho que pode levar a uma política melhor em muitos países diferentes. O Canadá anunciou a legalização completa da maconha e outros países poderão fazer o mesmo, mas na realidade a maconha é apenas um primeiro passo, ainda pequeno, no caminho certo. Precisamos de uma regularização, a descriminalização completa de todas as drogas.

"Legalizar é importante%2C mas não resolve tudo. Não existe uma solução mágica%2C vai ser muito difícil reverter os danos que a militarização do combate às drogas produziu no México%2C na Colômbia%2C na América Central"

(Dawn Paley)

Você acha que essa é a solução?

Não existe uma solução única. Porque é um problema complexo e a situação é muito grave. Há muitos grupos armados hoje, no México, e muitos deles nem se dedicam mais ao tráfico hoje. Muitos deles se dedicam totalmente à extorsão, por exemplo. Legalizar tudo é um passo importante, lógico, mas não vai resolver tudo. Vai ser muito difícil reverter os danos que a militarização do combate às drogas produziu no México, na Colômbia, na América Central.

A situação da violência no Brasil pode ser comparada com a desses países?

Acho que é uma pergunta que vocês mesmos devem responder. Eu não trabalho no Brasil, não falo português e não fiz essa pesquisa, mas acredito que é óbvio que a mesma coisa acontece aqui. Conheci pessoas no Rio que estão fazendo trabalhos sobre esse assunto, mas me parece que é a direção correta a seguir em termos de estudar a situação no Brasil, não apenas no que diz respeito aos homicídios, mas também no encarceramento em massa, especialmente de jovens negros.

O encarceramento em massa normalmente não é visto como resultado de uma possível falha na política de combate às drogas e à violência. Você acha que essa visão precisa mudar?

No México e em outros países onde eu trabalhei, essa não é a visão mais comum que a sociedade tem do problema. A maior parte das pessoas forma sua visão sobre a realidade com base no que é publicado na mídia. E no México, por exemplo, a principal fonte de informações para matérias sobre o combate às drogas é a própria polícia, então basicamente o que o cidadão tem para se informar é o discurso das mesmas pessoas que estão promovendo essa guerra. Então, no México, muitas pessoas acham que o governo está enfrentando apenas traficantes.

Qual é a principal consequência disso?

Esse é um modo de interpretar as coisas que realmente esconde o que está acontecendo. A realidade tem muito mais a ver com proteger a violência estatal e a militarização do que com carteis de traficantes superpoderosos que podem fazer qualquer coisa, derrotar qualquer unidade do Estado, todas essas ideias fantasiosas que não têm fatos para sustenta-las, mas que são repetidas pela mídia. Sabemos que essa questão da interpretação não é um problema só do Brasil, mas não tenho conhecimento suficiente sobre a visão popular daqui para dar uma opinião mais concreta.

De que maneira a guerra às drogas moldou relações geopolíticas atuais?

No meu livro, exploro a ideia de que nos dizem que esse tipo de guerra é para controlar o uso e distribuição de substâncias, especificamente cocaína e ópio. Por este critério, a guerra fracassou, que a quantidade de cocaína que entra nos Estados Unidos não diminuiu, mesmo com bilhões e bilhões de dólares sendo gastos nessa estratégia. Então, a minha proposta é que se considere novos métodos, outras medidas de sucesso, porque eles continuam a repetir essas políticas que supostamente falharam. Eu pesquisei a guerra às drogas, como a violência foi gerada pela militarização e a paramilitarização, mas também por muitas mudanças políticas que aconteceram no período, como privatizações, reformas legais, medidas de austeridade. São políticas que ocorreram simultaneamente à guerra às drogas, mas no mesmo período foram aceleradas e estimuladas pelos Estados Unidos.

E qual é o resultado disso?

O que esse processo todo conseguiu foi criar condições para a entrada de grandes corporações estrangeiras nesses países e tomar conta de indústrias locais, como a extração de óleos vegetais na Colômbia. Lá existem muitos exemplos de situações claras, de como grupos criminosos foram usados por corporações para quebrar sindicatos, tirar pessoas de suas terras. Depois, essas terras foram compradas por estrangeiros. Nesta região, da Colômbia ao México, a guerra às drogas é um fracasso para as pessoas comuns, mas na realidade é um modelo muito bem-sucedido em termos de controle social e garantia de que investimentos estrangeiros poderiam continuar nesses lugares e até mesmo entrar em outros, antes inacessíveis, por meio do medo e do deslocamento das pessoas.

"O que posso dizer sobre essas políticas promovidas e financiadas pelos EUA é que nada disso causa prejuízo aos grandes investidores"

(Dawn Paley)

Onde isso é mais claro, na sua opinião?

O México é um grande exemplo. Lá houve a revolução no início do século 20, que resultou numa enorme reforma agrária, onde metade do território foi distribuída para pequenos produtores. Até hoje eles resistem, mas depois de muitas tentativas de reconcentrar essas terras legalmente, o que acontece é que muitas vezes os cartéis entram nesses territórios. Supostamente, eles estariam lá para se esconder das autoridades, mas eles destroem tudo, comunidades inteiras. Muitas pessoas desaparecem ou são mortas por eles, e isso efetivamente deixa as terras desocupadas. Os Estados Unidos também realizaram muitas guerras em outros continentes, como no Afeganistão, outros países do Oriente Médio, em Burma, tudo parecido com o que acontece aqui. O que posso dizer sobre essas políticas promovidas e financiadas pelos EUA é que nada disso causa prejuízo aos grandes investidores. É a renovação de um discurso que permite aos Estados massacrar e encarcerar uma parcela de suas populações.

O primeiro passo para derrubar essas estruturas seria a legalização, mas o que mais pode ser feito nesse sentido?

Honestamente, não tenho uma resposta direta para isso. Venho pensando nisso há mais de uma década, mas acredito que as melhores vozes para dizer o que deveria ser feito são as locais, das comunidades. No Brasil, tenho conversado com grupos que vêm das favelas para saber o que tem sido feito por eles e o que funciona. Porque é muito específico, o que funciona e o que deve ser implementado em um determinado local. O tamanho do país e o sistema econômico também são um problema. Encerrar a guerra às drogas não passa apenas por legalizar as substâncias, mas também pelo sistema econômico. Isso deveria ser repensado, é tudo grande demais... Sou a pessoa que está parada no diagnóstico, mas em termos de solução, acho que isso deve ser pensado localmente. E o próprio capitalismo não deve ser ignorado nessa discussão, deve ser mudado de uma maneira significativa. Ouvindo as pessoas que são diretamente afetadas. Hoje não há debate, essas pessoas são mortas e deslocadas e ninguém as ouve.

Isso passa também por mudar a visão que as pessoas têm de crimes e encarceramento?

Acho que colocando de uma maneira simples, o que devemos fazer é ir atrás de quem está sendo beneficiado pelas políticas que estão colocadas hoje. Pode ser no Brasil, na Colômbia, no México, em Honduras ou nos Estados Unidos, quem paga o preço são as pessoas pobres, em geral pessoas negras. E quem está se beneficiando disso? Existe a noção de que os cartéis de traficantes, os políticos corruptos, os traficantes de armas estão, mas normalmente as pessoas param aí. No meu trabalho, eu quero chamar a atenção para o fato de que corporações “legais”, companhias de mineração, grandes empresas de diversos setores estratégicos, todas elas, de diferentes maneiras, estão se beneficiando. Se não estivessem, as coisas não aconteceriam dessa forma, isso não seria sustentável. O Estado age assim, cria o crime, mas também cria uma impunidade sistemática. No México, menos de 1% dos crimes são solucionados de fato, até menos. É muito raro ver uma investigação rigorosa acontecendo. Não se sabe o que aconteceu de fato. O governo propaga que uma determinada pessoa morreu porque ela traficante e fim. Nunca sabemos de verdade quem era a pessoa, na maioria das vezes.

"Esse discurso do Estado é muito eficiente%2C cria pânico%2C cria medo%2C cria uma submissão maior às leis"

(Dawn Paley)

Não é diferente do que acontece aqui, muitas vezes.

Exatamente, nesse sistema em que estamos, supostamente seria normal acreditar no Estado e no funcionamento da democracia. Teoricamente, é tarefa do Estado investigar os crimes, todos eles. Não sei se a noção de “inocente até que se prove o contrário” existe como premissa legal no Brasil, mas as pessoas são sempre culpadas nas capas dos jornais e só se prova sua inocência em conversas privadas, com os pais, quando ninguém mais está vendo. É basicamente um discurso que culpa as vítimas por suas próprias mortes. E a parte triste é que as pessoas realmente acreditam nisso. É uma questão realmente dolorosa, essas coisas ruins precisam acontecer com você ou sua família para você acreditar? Precisa mesmo acontecer com toda e qualquer família? Isso vira um genocídio. Ouvi muitas pessoas falando sobre genocídio de jovens nas favelas. Esse discurso do Estado é muito eficiente, cria pânico, cria medo, cria uma submissão maior às leis. Cria uma facilidade para as pessoas se afastarem das vítimas, da situação real por meio do moralismo. Há muitos estigmas sobre uso de drogas. Por isso, é muito raro que alguém admita que usa drogas e é claro que tem muita gente que usa. E eles também não deveriam ser mortos. O fato de que alguém tenha um pacote com maconha em seu carro não deveria fazer com que essa pessoa fosse alvo da polícia. Mas é muito difícil defender esses argumentos em um contexto onde há muito estigma sobre o uso de drogas.

Os discursos de ódio, de um inimigo invisível e invencível, são muito similares em diversos países. Como isso acontece?

Isso também cria medo na população, as pessoas têm medo de crimes, drogas, das crianças usarem drogas, e é um medo irracional se você observar que quem comete os maiores crimes é o Estado, justamente de quem as pessoas não deveriam ter medo. De maneira lógica, acredito que as pessoas que vivem em comunidades, elas sabem que o inimigo não é o outro morador, as pessoas normais. É um medo irracional se você pensa sobre onde a violência realmente se origina. Tudo passa pela única fonte de informações ser o governo. Você vê no noticiário falando de uma gangue X, o cartel Y, mas você não tem acesso, não tem como saber se tudo isso é verdadeiro.

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