Rita Lee, Xuxa, um cachorro e o cancelamento
O politicamente correto passou dos limites. Tem seu valor, mas está exagerado. Essa cultura do cancelamento é uma das coisas mais idiotas dos tempos atuais.
Conversa de Repórter|LUCAS CARVALHO, do R7 e Lucas Carvalho
Estive no velório da Rita Lee. Participei da cobertura. Pouco tempo antes de chegar, conversando com a minha mãe, por mensagem, ela confessou que estava incrédula. "Eu curti muito as músicas dela. Até dancei, quando mais nova, na abertura dos jogos abertos do interior uma coreografia com a música lança-perfume. Hoje, você vai cobrir a morte dela. Nunca imaginei que isso fosse acontecer".
Nem eu, mãe.
Rita Lee foi rainha de um estilo musical que não faz muito o meu tipo. Mesmo assim, sempre tive muito respeito por tudo o que ela representou. Da música até os pensamentos mais ousados e representativos, ela resinificou conceitos, quebrou barreiras, estigmas. Isso, por si só, já marca a trajetória dela e o legado que fica.
O velório, no Parque Ibirapuera, esteve cheio o tempo todo. Muita gente enfrentou chuva e fila pra poder se despedir da cantora. Vi gente tão simples, fãs anônimos e lágrimas escorrerem por olhos, realmente, tristes. Vi gente famosa também. Entre elas, a Xuxa. Estive frente à frente com ela.
Xuxa levou o cachorro de estimação dela ao velório da amiga, Rita Lee. Amiga. Isso diz muito sobre o que pretendo falar aqui. Horas depois, vi na internet que a apresentadora estava sendo detonada na web por isso, por ter levado o cãozinho à despedida de Rita Lee.
Em meio à comoção pela morte de uma das maiores representantes da arte brasileira, fiquei estarrecido com a maldade que vem pelas redes sociais. Xuxa foi julgada pelo "tribunal da internet", especializado em disseminar o ódio gratuito. O "júri virtual" que assassina reputações e que põe contra a parede toda uma história de vida baseado num único recorte de uma situação qualquer.
Está chato demais. Está destrutivo. Está insano. Está doentio. Eu estive lá, vi a Xuxa de perto, triste, abatida e não houve nenhum incidente ou constrangimento com o cachorro dela. Aliás, desconfortante foi ver dezenas de pessoas se aproveitarem de um velório para gritar o nome da apresentadora como se estivessem num auditório de televisão. Tinha gente querendo tirar foto com ela diante daquela situação.
Por alguns segundos, teve quem se esqueceu do motivo pelo qual Xuxa estava no Ibirapuera. Nas redes sociais, a própria Rita Lee parece ter sido deixada de lado por aqueles que preferiram criticar a presença de cachorro de colo no velório.
Rita Lee, pra quem não sabe, era ativista e defensora da causa animal. Deve, certamente, ter adorado a presença ilustre do cãozinho. Aliás, em vida, a única restrição imposta por ela para o dia da própria morte era que político algum pisasse na despedida dela, pois ela nunca havia pisado no palanque de ninguém.
Alguns podem perguntar: "Mas será que qualquer outra pessoa poderia entrar com um cachorro no velório?"
Certamente, não.
Mas é preciso entender o que Xuxa era pra Rita Lee e o que Rita Lee era pra Xuxa. Os milhões de fãs, por mais apaixonados que fossem pela cantora, não tinha o laço de amizade entre as duas rainhas. Enquanto não tivermos o mínimo de discernimento continuaremos vivendo numa sociedade odiosa, que vê problema em tudo.
Aquela história do "mi mi mi mi" é real. O politicamente correto passou dos limites. Tem seu valor, mas está exagerado. Essa cultura do cancelamento é uma das coisas mais idiotas dos tempos atuais. Esse ódio pelo ódio só destrói. Você pode não gostar de mim, do meu trabalho, da Xuxa ou do cachorro dela. Isso, no entanto, não dá à ninguém o direito de tentar fazer o próximo – mesmo que pelas redes sociais – experimentar, na marra, o sabor amargo da própria existência. Porque gente assim não é feliz, não faz ninguém feliz e não aceita ver ninguém feliz.
Talvez, eu seja cancelado por criticar o cancelamento. Paciência.
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