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Luiz Fara Monteiro
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Em crônica, piloto brasileiro ressalta valorização do sonho de voar

"O que realmente reverbera é a pureza da paixão pelo que desejamos ser - não importa o resto - pois o que vem depois  não se pode enxergar", diz Conrado Ibri, piloto que atua nos Emirados Árabes

Luiz Fara Monteiro|Luiz Fara Monteiro e Luiz Fará Monteiro


Conrado Ibri, piloto brasileiro residente em Dubai: valor ao sonho realizado
Conrado Ibri, piloto brasileiro residente em Dubai: valor ao sonho realizado

O que você faz da vida? - perguntou o senhor que eu acabara de conhecer no trem e com quem estava há um bom tempo conversando sobre assuntos aleatórios, mas com muita profundidade.

Incrível como as vezes encontramos pessoas ao acaso e nos sentimos conectados desde as primeiras palavras.

Bem, talvez não seja tão ao acaso assim.

Um senhor de uns setenta e tantos anos de idade mas de aspecto ainda bem jovem, um sorriso constante cativante, que falava comigo em italiano mesmo eu não falando sua língua e me ouvia pacientemente respondendo em espanhol, mesmo que ele também não falasse.

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Daqueles encontros que poderiam até parecer cômicos, mas que na verdade se tornou profundo muito mais pela conexão de olhares do que pelas palavras. Estávamos de alguma forma nos entendendo completamente.

Minha viagem era curta, 58 minutos apenas.

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Peguei o trem em Nápoli, onde pernoitava e estava indo passar o dia em Roma.

Um certo capricho gostoso que a profissão nos permite de vez em quando.

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A conversa fluía de forma intensa e profunda e ele me contou que se tornara viúvo há pouco tempo, mas que chorou somente durante uma semana. Exatamente sete dias, pois fora tão feliz ao lado da esposa que fez um pacto com ele mesmo de sorrir sempre que lembrasse dela. Não haveria nunca mais nenhuma lágrima. E como a memória dela aparecia em tudo que fazia, estava então sempre sorrindo. E nunca mais se sentiu triste.

Eu não precisei dizer nada. Aliás, não teria nem palavras. Mas ele ouviu através dos meus olhos marejados tudo o que eu não soube dizer do encanto de estar ao lado dele ouvindo sua confissão transcendental.

Confesso que levei alguns segundos para respondê-lo. Talvez mais.

A pergunta vinda de alguém como ele tinha um significado diferente. Eu não poderia responder de imediato. Tive que dar uma pausa e refletir antes de dizer algo.

Pensei no que representava para mim ser um piloto de avião.

Me vi pequeno, com nove ou dez anos, voando pela primeira vez.

Fechei os olhos por um instante e me transportei para o momento em que a comissária que acompanhava a mim e a meu irmão naquela viajem como menores desacompanhados veio até nós e me disse que o Comandante tinha permitido que eu fosse conhecer a cabine.

Fiz o pedido a ela de forma bem ingênua, mas com um desejo quase que visceral de saber como seria estar lá.

De olhos fechados, senti novamente a pulsação fulminante do meu coração nas veias do pescoço a caminho da cabine e a imagem que vi quando ela abriu a porta me voltou viva e cristalina como um quadro. O mais belo de todos que já vi.

O azul do céu, as nuvens, o painel, todos aqueles switches, os pilotos…. Tudo se fundia em uma imagem que para mim naquele exato momento - posso afirmar hoje - foi um encontro espiritual. Com Deus, comigo mesmo, não sei ao certo. Mas definitivamente foi o encontro com o que eu soube ali naquele instante que seria o que eu queria fazer da minha vida dali em diante.

A partir daquele momento, durante minha infância e juventude sonhei em ser piloto.

Sonhei diversos sonhos e de muitas formas diferentes. Sonhei sorrindo, sonhei chorando por achar que nunca chegaria lá, sonhei desenhando os aviões que via nas páginas da revista Flap, sonhei me imaginando voando ao redor do mundo, sonhei me achando um super herói, sonhei lendo (todos) os livros do Richard Bach, sonhei me apaixonando, sonhei tanto que às vezes até doía.

E agora no trem, ao lado deste senhor que suspeito ter sido colocado aqui por uma força maior para tocar minha vida de alguma forma, busco palavras para dizer o que faço da vida.

Engraçado como é fácil às vezes a gente se esquecer do quanto desejamos algo.

Me vem à mente agora por algum motivo a definição de amor, por Platão. Amor, para Platão, significa desejo, ou seja, amor só existe pelo que não se tem pois a partir do momento que o objeto de desejo é conquistado, logo não é mais amor.

Isso se encaixa muito cotidianamente nas coisas que consumimos, seja um aparelho de telefone, um carro ou uma roupa qualquer.

O desejo de ter mexe com algo intenso dentro de nós e o momento da conquista se torna o êxtase.

E depois invariavelmente vem o vazio. Até a próxima conquista.

Mas claro, não estou buscando palavras para falar de um bem e sim para descrever o que eu faço da vida.

Mas será que alguns de nós não nos perdemos nessa caminhada, deixando que Platão dilacere cruelmente nosso desejo de criança?

Quantos de nós nos esquecemos do quanto intensamente desejamos voar depois que conquistamos nosso lugar ao sol?

Penso que se nos lembrássemos mais constantemente do quanto desejamos ser pilotos, nossas vidas seriam muito mais leves.

Como é fácil reclamarmos do dia-a-dia. Seja voando um Airbus 350 na British Airways ou um avião mais velho em um país remoto.

Certamente nossa profissão não é uma profissão fácil. É considerada em algum estudo que já li como a segunda profissão mais estressante do mundo (não me recordo qual seria a primeira).

As condições de trabalho e salariais se degradaram muito ao longo dos anos e definitivamente o “glamour” só existe (se é que ainda existe) para o usuário, não para os profissionais de vôo. Essa época morreu.

Trabalhamos mais e ganhamos menos, uma dura realidade. E as culturas organizacionais também hoje são muito diferentes de antigamente.

O fato é que há muitas razões para reclamar.

Da escala, do salário, das condições, do chefe, da comida, do uniforme… paro por aqui se não a lista vai tomar algumas páginas a mais deste texto.

Mas antes, uma constatação cruel: reclamar é socialmente agregador. A negatividade tem uma toxidade ao mesmo tempo invisível e magnética. Que atrai pessoas com o mesmo propósito (reclamar) e nos faz, ironicamente, nos sentir amparados pela dor.

É fácil, infelizmente, nos vermos tomados deste hábito pois ele nos dá uma falsa sensação de pertencimento, quando na realidade ele nos afasta da essência pura que temos dentro de nós.

E a pergunta que me faço agora é: o que será que aquela criança sonhadora e apaixonada de 10 anos de idade diria se soubesse de tudo isso lá atrás?

Arrisco com 100% de certeza a dizer que ela não se importaria com isso. Porque o sonho era dividir o céu com os pássaros, era de se sentir livre, era de estar lá onde todos um dia se imaginam, mas quase ninguém chega.

O sonho não era pelo salário,nem pela escala e nem pelo benefício de passagem. Essas coisas só tornavam o sonho um pouco mais doce talvez.

Quando a gente é criança o que importa mesmo é o que está no coração.

O que realmente reverbera é a pureza da paixão pelo que desejamos ser - não importa o resto - pois o que vem depois não se pode enxergar.

Só se vê bem com o coração! diz o Pequeno Príncipe.

E finalmente, inspirado no magnífico personagem de Saint-Exupéry, abro os olhos, dou um leve sorriso de orgulho e digo ao senhor ao meu lado o que faço da vida.

”Sou pago para viver o meu sonho de criança”.

Ele apenas sorri sem conseguir dizer nada.

Sou eu agora quem escuto através dos seus olhos azuis de piscina a minha própria voz a dizer:

“Como sou afortunado”.

Uma mulher anuncia a próxima parada pelo sistema de áudio.

É meu destino.

O Sr Francesco (só fui saber seu nome no final!) sorri e me olha com o mais doce e fraternal olhar que alguém pode receber. Talvez como o de um Pai.

Nos despedimos de um encontro que ficará para sempre guardado em minha memória e sigo meu caminho, com a sensação de que o que se passou na última hora parece nem ter sido real de tão impactante.

Saio andando sorrindo sozinho pelas ruas de Roma com a vontade de gritar para todo mundo que conheço: “busquem neste exato momento a criança que sonhava estar onde você está hoje!”

Ouçam o que o seu coração dizia quando você sonhava em ser o que você é agora!

Asseguro sem dúvida de errar que o seu desejo por voar não era um amor à forma de Platão.

Ele era a sua própria essência.

Não podemos permitir que a rotina nos tire a chama e o brilho da criança que fomos.

Portanto, feche os olhos e converse com quem você era lá atrás.

Converse e sinta.

Deixe o você jovem lembrar a você hoje quem você verdadeiramente é. E na próxima vez que entrar na sua cabine para fazer o que hoje é a rotina do que sempre sonhou, leve-o para desfrutarem juntos a essência do que te trouxe até aqui.

Ele certamente lhe dará o maior sorriso do mundo e sentirá um orgulho maior do que o próprio céu.

Então viva como se ele sempre estivesse ali!

Afinal, “o essencial é invisível aos olhos”.

*Conrado Ibri é brasileiro e atua como piloto nos Emirados Árabes Unidos

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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