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Ele foi tratado como um nada, diz empresária que teve irmão enterrado em vala comum 

Problema persiste em SP mesmo após acordo dos órgãos responsáveis com Ministério Público

São Paulo|Ana Cláudia Barros, do R7

Em 14 anos, 3.000 foram sepultados como "não reclamados" em SP
Em 14 anos, 3.000 foram sepultados como "não reclamados" em SP Em 14 anos, 3.000 foram sepultados como "não reclamados" em SP

Quando foi procurada, em novembro, pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo) e informada sobre a morte do irmão, a empresária Rita de Cássia Barbosa, 49 anos, levou um susto. Mas a perplexidade dela aumentaria ao descobrir que o corpo de João Alberto Barbosa, 61, havia sido enterrado no início de agosto, em uma vala comum pelo SVOC (Serviço de Verificação de Óbitos do Município da Capital), destino reservado aos cadáveres “não reclamados” por parentes ou indigentes.

Durante cerca de um ano e meio, Rita de Cássia e o irmão, que morava sozinho, não tiveram contato. Uma discussão de família deixou estremecida a relação entre os dois. No dia 2 de agosto, Barbosa passou mal e foi levado para o Hospital do Servidor Público na cidade de São Paulo. Após dois dias de internação, o homem não resistiu. No momento do socorro, ele portava documento de identidade.

A empresária informou ao R7 que, antes de receber a ligação da Promotoria, ela não havia sido contatada por qualquer órgão público. De Rita de Cássia, foi tirado o direito de enterrar o corpo do irmão.

— Você sente como se fosse um nada. A pessoa foi tratada como um nada. Dá uma certa impotência. Você quer gritar e resolver aquilo, tentar levantar quem é responsável ou não.

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O caso da empresária ilustra uma deficiência descortinada pelo MP-SP em abril deste ano. Na ocasião, quando o Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos) começou a levantar informações para formular estatísticas sobre cidadãos que haviam sumido em São Paulo, descobriu falhas que interferiam diretamente no problema. Algumas das pessoas, registradas como desaparecidas na capital, estavam, na verdade, mortas e haviam sido enterradas pelo SVOC como “não reclamadas” ou indigentes.

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De 1999 a 2013, 3.000 foram sepultadas nessas circunstâncias. Junto a algumas delas, havia telefones de contato e outros documentos. O simples cruzamento de dados dos boletins de ocorrência de desaparecimento com os de verificação de óbito abreviaria a dor de parentes que, por anos, procuraram por seus entes queridos. Ao analisar conjuntamente os BOs, a equipe do Plid conseguiu localizar 29 famílias, conforme a coordenadora do programa, promotora de Justiça Eliana Vendramini.

— Não só o corpo era reclamado, como era reclamado por boletim de ocorrência. Há várias formas de reclamar. Bastava que eles perguntassem para a mesma polícia, antes de enterrar, se havia boletim de ocorrência de desaparecimento.

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Depois de a questão vir à tona, duas portarias, uma do SVOC, que é um serviço público estadual gerido pela USP (Universidade de São Paulo), e outra da Polícia Civil, foram baixadas na tentativa de aprimorar os trabalhos. Esta última estabeleceu “diretrizes para o registro e a investigação do desaparecimento de pessoas”, reorganizando a atuação da delegacia especializada.

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Já a portaria do SVOC implementou modificações nos procedimentos internos do órgão. Se anteriormente o serviço aguardava 72h para que o corpo fosse reclamado antes de enterrá-lo, o prazo passou a ser de dez dias.

O SVOC começou também a fotografar a face dos mortos e a catalogar outros identificadores, como tatuagens e cicatrizes, além de coletar impressões digitais dos dedos das mãos. Todas as informações agora são encaminhadas à Delegacia de Investigação sobre Pessoas Desaparecidas. Apesar dos ajustes, o caso de Rita de Cássia sinaliza que ainda há brechas e que as medidas foram insuficientes.

Mesmo não tendo registrado boletim de ocorrência do desaparecimento de Barbosa, que ela pensava estar vivendo em Belém (PA), a empresária critica o fato de não ter sido comunicada sobre a morte dele a tempo de ter a chance de enterrar o corpo. Rita de Cássia aponta dois fatores que facilitariam a localização dela pelas autoridades: o nome incomum da mãe e o fato de os pais terem sido policiais civis — o Estado dispõe dos cadastros de ambos.

Já com as portarias em vigor, a coordenadora do Plid solicitou listagem de corpos “não reclamados” e comunicados pelo SVOC à Delegacia Especial de Pessoas Desaparecidas. Vinte e cinco foram sepultados com a classificação. João Alberto Barbosa estava entre eles, segundo explica a promotora.

— Dez dias não foram suficientes para cruzar dados de novo? Sabe como achei a irmã dele? Ela é vítima em outro boletim de ocorrência [perda de documentos]. Levamos dez segundos para descobrir. Não estou infirmando todo o trabalho bom que existe. Só estou falando que isso não pode acontecer. Se o SVOC fala que vai enterrar em dez dias, neste período tem que, pelo menos, haver alguém que verifique o banco de dados.

Na avaliação de Eliana Vendramini, “uma portaria não dialoga com a outra”.

— Duas portarias praticamente reconhecendo que o serviço poderia melhorar, só que uma não dialoga com a outra e o problema persiste.

Rita de Cássia considera o caso dela “gritante” e entende que houve desleixo por parte dos órgãos envolvidos.

— O Estado precisa ter um sistema. Uma coisa é a pessoa ser indigente. Outra é ela estar desaparecida ou viver sozinha. Uma pessoa que vive isolada na sociedade está condenada a ser indigente? [...] Não era o caso do meu irmão, mas se ele fosse um morador de rua e vivesse na Cracolândia, nós teríamos o direito de saber o que está acontecendo com ele. Nada justifica. Você começa a ver que é uma irresponsabilidade do sistema. É um ser humano.

Indigente identificado

Nos casos de morte violenta, os corpos são levados para o IML (Instituto Médico Legal). O mesmo acontece quando o cadáver não tem qualificação. Apenas corpos identificados são encaminhados para necropsia no SVOC.

Indigente não significa necessariamente sem identificação — o que também pode acontecer. A rigor, está relacionado à falta de recurso financeiro dos familiares para realizar o sepultamento, conforme explica Eliana Vendramini.

— Qualquer família que não tem essa capacidade, o corpo é catalogado como indigente e o serviço municipal inuma gratuitamente. A necropsia é estadual, e o Serviço Funerário Municipal enterra em terreno municipal. 

Ação civil

Por considerar as portarias da Polícia Civil e do SVOC (Serviço de Verificação de Óbitos do Município da Capital) insuficientes para sanar o problema, a coordenadora do Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos), promotora de Justiça Eliana Vendramini, propôs um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) sugerindo ajustes.

No caso do SVOC, ela argumenta que seria necessária a implantação de um trabalho de atendimento aos parentes dos mortos, além de meios para realizar pesquisa e cruzamento de dados.

— Tem que procurar a família ou então se conveniar com a polícia.

De acordo com a representante do Ministério Público, os dois órgãos ainda não se manifestaram. Diante da ausência de resposta, a promotora pretende entrar com uma ação civil pública em fevereiro de 2015, envolvendo a USP, responsável pela gestão do SVOC, e o Estado (Polícia Civil).

Além de solicitar readequações nos serviços, ela pedirá indenização por dano moral coletivo em favor daqueles que tiveram corpos de parentes enterrados sem notificação [a demora provocada pela procura seria proporcional ao ressarcimento] e o recambiamento, no caso dos que desejarem, dos restos mortais dos parentes para jazigo familiar.

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— O que mais nos assombra por parte da polícia, em especial, é que, no dia do Termo de Ajustamento de Conduta, não apareceu ninguém [...] O Ministério Público está tentando ajustar, resolver isso sem ação e tentando sanar o passado com o translado de corpo e o mínimo reconhecimento econômico, e ninguém quer.

Por telefonema e e-mail, o R7 entrou em contato com a assessoria da Faculdade de Medicina da USP e foi informado de que o SVOC é um órgão da Universidade de São Paulo, portanto, a reportagem deveria procurar a instituição, o que foi feito.

Ainda em relação à assessoria da faculdade, o R7 pediu os contatos do vice-diretor do SVO, Carlos Augusto Pasqualucci, uma vez que o diretor estaria de férias. A assessoria respondeu que não tinha autorização para passar dados de professores e que iria tentar localizá-lo.

R7 procurou também o SVOC e a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública. Até o fechamento desta reportagem, nenhum dos órgãos retornou.

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