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Com a iminência da gripe aviária, as lições de pandemias passadas ganham mais urgência

Problemas enfrentados com a Covid podem ser úteis na busca de soluções para lidar com a disseminação global de uma doença

Saúde|Do R7


Gripe aviária que circula atualmente é causada pelo vírus H5N1 Dida Sampaio/Estadão Conteúdo - 22.03.2017

Em 1918, um vírus da gripe passou das aves para os seres humanos e matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas em um mundo com menos de um quarto da população atual. Dezenas de mamíferos também foram infectados.

Agora estamos diante de outra investida da gripe aviária. Há anos, vem devastando populações de aves no mundo todo e, mais recentemente, começou a infectar mamíferos, inclusive gado, transmissão nunca vista antes. Em outro caso inédito recente, o vírus quase certamente passou de uma vaca para pelo menos um ser humano — felizmente, um caso leve.

Embora muito ainda tenha de acontecer para que esse vírus desencadeie outra pandemia humana, esses acontecimentos fornecem mais um motivo – como se fosse preciso – para que governos e autoridades de saúde pública se preparem para a próxima pandemia. Nesse processo, é necessário ter cautela em relação às lições que, segundo eles, a Covid-19 deixou para trás. Precisamos estar preparados para lutar a próxima guerra, não a última.

Duas suposições baseadas em nossa experiência com a Covid seriam especialmente perigosas e poderiam causar danos tremendos, mesmo que os formuladores de políticas percebessem seu erro e se ajustassem depressa.

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A primeira envolve quem tem maior probabilidade de morrer em decorrência de um vírus pandêmico. A Covid matou principalmente pessoas com 65 anos ou mais, mas esse vírus foi uma anomalia. As cinco pandemias anteriores sobre as quais temos dados confiáveis mataram populações muito mais jovens.

A pandemia de 1889 é a mais parecida com a Covid (alguns cientistas, aliás, acreditam que foi causada por um coronavírus). As crianças pequenas escaparam quase intocadas; morreu sobretudo gente mais velha, mas as pessoas de 15 a 24 anos sofreram o maior índice de mortalidade excessiva, ou mortes acima do normal.

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O vírus influenza causou as outras pandemias, mas, ao contrário das mortes por influenza sazonal, que geralmente mata adultos mais velhos, nos surtos de 1957, 1968 e 2009 metade das mortes (ou mais) ocorreu em pessoas com menos de 65 anos. A catastrófica pandemia de 1918 foi o inverso completo da Covid: bem mais de 90% da mortalidade excessiva ocorreu em pessoas com menos de 65 anos. As crianças com menos de dez anos foram as mais vulneráveis, seguidas por aquelas com idade entre 25 e 29 anos.

Qualquer presunção de que os idosos seriam as principais vítimas da próxima pandemia — como foi o caso na Covid — está errada, e qualquer política com essa premissa poderia deixar jovens adultos e crianças saudáveis expostos a um vírus letal.

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A segunda suposição perigosa é que as medidas de saúde pública, como o fechamento de escolas e empresas e o uso de máscara, tiveram pouco impacto. Isso é incorreto.

A Austrália, a Alemanha e a Suíça estão entre os países que demonstraram que essas intervenções podem ser bem-sucedidas. Até mesmo a experiência dos Estados Unidos fornece provas esmagadoras, embora indiretas, do sucesso dessas medidas de saúde pública.

A prova vem do vírus influenza, transmitido como a Covid, com quase um terço dos casos transmitidos por pessoas assintomáticas. No inverno anterior à Covid, a gripe matou cerca de 25 mil pessoas nos EUA; naquele primeiro inverno pandêmico, as mortes por gripe foram inferiores a 800. As medidas de saúde pública tomadas para desacelerar a Covid contribuíram significativamente para esse declínio, e essas mesmas medidas, sem dúvida, também se refletiram na Covid.

A questão, portanto, não é se essas medidas funcionam, porque sabemos que funcionam. Trata-se de saber se os benefícios superam os custos sociais e econômicos. Esse cálculo terá de ser feito continuamente.

Essas medidas podem moderar a transmissão, mas não podem ser mantidas indefinidamente. E nem mesmo as intervenções mais extremas conseguem eliminar um patógeno que escapa à contenção inicial se, como os vírus que causam a gripe e a Covid-19, ele for transportado pelo ar e transmitido por pessoas que não apresentam sintomas. No entanto, essas intervenções podem ter dois objetivos importantes.

O primeiro é evitar que os hospitais sejam sobrecarregados. Para alcançar esse resultado, pode ser necessário um ciclo de imposição, suspensão e reimposição de medidas de saúde pública para desacelerar a disseminação do vírus. Mas é bastante provável que o público aceite essas medidas, pois seu objetivo é compreensível, restrito e bem definido.

O segundo objetivo é retardar a transmissão de modo a ganhar tempo para identificar, fabricar e distribuir tratamentos e vacinas, e para que os médicos aprendam a administrar o atendimento com os recursos disponíveis. A inteligência artificial (IA) talvez seja capaz de extrapolar, a partir de grandes quantidades de dados, quais restrições proporcionam mais benefícios – por exemplo, se o simples fechamento de bares seria suficiente para reduzir significativamente a disseminação — e quais impõem o maior custo.

A IA também deve acelerar o desenvolvimento de medicamentos. E o monitoramento de águas residuais pode rastrear os movimentos do patógeno, possibilitando limitar os locais onde as intervenções são necessárias.

Ainda assim, o alcance dessas ações vai depender da gravidade e da transmissibilidade do patógeno e, como infelizmente aprendemos nos EUA, da capacidade dos líderes de divulgar as metas e as razões por trás delas.

Mais especificamente, as autoridades vão enfrentar a necessidade de aplicar as duas intervenções mais polêmicas, o fechamento de escolas e a imposição de máscara.

O que fazer?

Em geral, as crianças são grandes disseminadoras de doenças respiratórias e podem ter um impacto desproporcional. Realmente, a vacinação de crianças contra a pneumonia pneumocócica pode reduzir a doença em 87% em pessoas com 50 anos ou mais. E as escolas foram fundamentais para a disseminação das pandemias de 1957, 1968 e 2009. Portanto, havia boas razões para acreditar que o fechamento das escolas durante a Covid salvaria muitas vidas.

De fato, o fechamento de escolas reduziu a disseminação da Covid, mas há um consenso de que qualquer ganho não justificou a perturbação social e os danos ao desenvolvimento social e educacional das crianças. Mas isso não nos diz nada sobre o futuro. E se a próxima pandemia for mais mortal do que a de 1957, mas, como em 1957, 48% da mortalidade excessiva estiver entre os menores de 15 anos, e as escolas forem o centro da disseminação? Faria sentido fechar as escolas nesse caso

A máscara é uma questão muito mais simples, pois sabemos que ela funciona desde 1917, quando ajudou a proteger os soldados de uma epidemia de sarampo. Um século depois, todos os dados sobre a Covid realmente demonstraram benefícios significativos do uso de máscara.

Mas é difícil decidir se a máscara deve ser obrigatória. Muita gente usa máscara de maneira mal ajustada ou incorretamente, de modo que, mesmo sem acrescentar as complexidades da política, a conformidade é um problema. É preciso avaliar a gravidade do vírus para determinar se a imposição governamental do uso de máscara justificará a resistência que vai gerar.

Isso não significa que as instituições e empresas não possam ou não devam exigir máscara. Tampouco significa que não podemos incentivar o uso de máscara com uma comunicação melhor. As pessoas aceitam a proibição do fumo porque sabem que a exposição prolongada ao fumo passivo pode causar câncer. Alguns minutos de exposição à Covid podem matar. Mensagens que combinam autoproteção com valores comunitários podem diminuir significativamente a resistência.

As pessoas devem querer se proteger, dada a ameaça de longo prazo à sua saúde. Estima-se que 7% dos americanos tenham sido afetados pela Covid longa, com gravidade variável, e uma reinfecção ainda pode desencadear a doença naqueles que a evitaram até agora. A pandemia de 1918 também causou problemas neurológicos e cardiovasculares que duraram décadas, e as crianças expostas no útero tiveram uma saúde pior e maior mortalidade do que seus irmãos. Podemos esperar o mesmo da próxima pandemia.

O que devemos aprender com o passado?

Cada pandemia sobre a qual temos boas informações foi única. Isso faz com que as informações em si sejam a mercadoria mais valiosa. Precisamos reuni-las, analisá-las, agir de acordo com elas e divulgá-las.

As informações epidemiológicas podem responder à maior questão: se devem ser implantadas intervenções de saúde pública em toda a sociedade. Mas a epidemiologia do vírus não é a única informação importante. Antes da disponibilização das vacinas contra a Covid, o medicamento que salvou mais vidas foi a dexametasona. As autoridades de saúde do Reino Unido descobriram sua eficácia porque o país tem um sistema de dados compartilhados que lhes permitiu analisar a eficácia dos tratamentos que estavam sendo testados no país inteiro. Não há um sistema comparável nos EUA, e é preciso criar um.

Talvez o mais importante seja que as autoridades governamentais e os especialistas em saúde precisam se comunicar com o público de forma eficaz. Os Estados Unidos falharam muito nesse aspecto. Não houve um esforço organizado para combater a desinformação nas redes sociais, e os especialistas prejudicaram a própria credibilidade ao reverter suas orientações várias vezes. Eles poderiam ter evitado essas distorções se tivessem estabelecido corretamente as expectativas da população.

O público deveria ter sido informado de que os cientistas nunca tinham visto esse vírus antes, que estavam dando a melhor orientação possível com base no conhecimento que tinham naquele momento e que as recomendações poderiam mudar, e provavelmente mudariam, à medida que mais informações chegassem. Se tivessem feito isso, provavelmente teriam conquistado mais a confiança do público.

A confiança é importante. Uma análise da prontidão para pandemias de países de todo o mundo feita antes da Covid classificou os Estados Unidos em primeiro lugar em razão de seus recursos. No entanto, o país teve a segunda pior taxa de infecção entre todos os países de alta renda.

Uma análise de pandemia em 177 países publicada em 2022 constatou que os recursos não se correlacionavam com as infecções. A confiança no governo e nos cidadãos, sim. Essa é a lição da qual realmente precisamos nos lembrar para a próxima vez.

c. 2024 The New York Times Company




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