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Negros também tiveram escravos, mas esse fato não pode ser usado para minimizar o racismo

Por mais de três séculos, durante o regime escravista no Brasil, os cativos fizeram parte do patrimônio de instituições e pessoas, independentemente da cor de sua pele 

MonitoR7|Marcos Rogério Lopes, do R7


'O bitcoin da época eram corpos humanos', diz reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares
'O bitcoin da época eram corpos humanos', diz reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares

A história mostra que negros também tiveram escravos, mas usar essa informação para minimizar a violência que representou a escravidão e o preconceito racial que ela deixou como legado é má-fé ou falta de entendimento do que foi a época em que o mundo aceitou que seres humanos fossem comercializados como objetos. A análise é do reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente.

Entre os principais nomes do movimento negro do país, José Vicente diz que era natural que todos os povos tivessem escravos entre os séculos 16 e 19, porque a economia mundial estava estruturada em torno desse sistema.

"Mais do que um regime de escravidão, tínhamos um modelo econômico baseado na compra e venda de pessoas. O bitcoin da época eram corpos humanos. Primeiro os europeus fizeram isso com os indígenas, depois com os negros, transformados em ativos com valor de mercado", explica. "Qualquer pessoa com recursos tinha terras, produtos manufaturados ou escravos."

Ele lembra que o governo português e seus representantes por aqui tinham cativos entre seus bens, assim como o Banco do Brasil, a Igreja e todas as pessoas com mais recursos, independentemente da cor de sua pele. "Se hoje podemos ir à Bolsa de Valores comprar títulos ou adquirir veículos e imóveis, antes indivíduos faziam parte dos patrimônios particulares", diz. 

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"Isso não limita ou desconstitui a violência e a perversidade da escravidão no Brasil", adverte o reitor. "Não é porque o regime da época tornava essa exploração natural e dava respaldo jurídico, filosófico e religioso para essa monstruosidade que as pessoas desse período estão isentas de responsabilidade pelo crime contra a humanidade que fizeram."

José Vicente acrescenta que os negros eram usados como garantia em negociações de todos os tipos. "Se você pretendesse montar uma indústria ou conseguir um empréstimo no banco, usava o escravo como caução."

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Retrocesso

No meio da entrevista, o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares desabafa lamentando o retrocesso na discussão sobre o preconceito racial no país. Não confundir sua instituição com a Fundação Palmares, ligada ao governo federal e que nos últimos anos teve como presidente Sergio Camargo, um jornalista que ajudou a difundir, por exemplo, que a escravidão foi benéfica aos negrose que não há racismo estrutural no país.

"Isso [o debate sobre o peso da escravidão] é como o retorno das conversas sobre o sistema de cotas, que nós já concluímos há 30 anos, consolidamos isso em todas as instâncias judiciais e agora vemos reabrirem a discussão. É um enorme retrocesso. Quem em sã consciência vai questionar se existe racismo no país? Só alguém sem honestidade intelectual", opina José Vicente.

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Segundo ele, a argumentação de que se os próprios negros tinham escravos, não haveria dívida social alguma com os descendentes africanos "não tem fundamento, coerência nem lógica". 

"Se um grupo de negros, por diversas circunstâncias, possuía cativos, eles representavam um percentual mínimo dessa população, que como regra era violentada e deixava sua vida de lado para se submeter à força a um sistema econômico criado por brancos."

A minimização da escravidão

O jornalista e escritor Leandro Narloch, que lançou em 2017 o livro Escravos — A Vida e o Cotidiano de 28 Brasileiros Esquecidos pela História, enfatiza em seu texto o fato de que vários desses personagens tinham cativos entre suas propriedades.

Ao mencionar relatos do botânico austríaco Johann Emanuel Pohl, que visitou o Brasil pela primeira vez em 1817, o autor diz que "em pleno século 19, auge do escravismo patriarcal, mulheres negras, quase todas ex-escravas, ostentavam joias e trajes que provocavam inveja em senhoras brancas".

Em setembro de 2021, Narloch, em um artigo no jornal Folha de S.Paulo, voltou ao tema ao comentar outra obra (As Sinhás Pretas da Bahia: Suas Escravas, suas Joias, do antropólogo Antônio Risério), que reforçava a teoria de que para algumas africanas ou suas descendentes a escravidão não foi tão ruim assim. 

No artigo, no entanto, Narloch não ficou só na análise do livro. Disse ainda que a obra "complica narrativas de ativistas" e atacou o que chamou de "teoria crítica racial, em voga hoje nas faculdades de humanas".

"As negras prósperas no ápice da escravidão são uma pedra no sapato de quem acredita que 'o capitalismo é essencialmente racista e machista' e que o preconceito é uma força determinante, capaz de impedir que indivíduos discriminados enriqueçam", escreveu o jornalista.

O presidente Jair Bolsonaro (PL) já utilizou argumentações parecidas. Em sua campanha para a Presidência (2018), em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Cultura, ele afirmou que "o português nem pisava na África, eram os negros que entregavam os escravos". Declarou também que os ativistas tentavam dividir o Brasil usando o racismo como arma. Mais recentemente, ele afirmou ser daltônico e não ver a cor da pele das pessoas.

Para José Vicente, da Zumbi dos Palmares, a intenção desses discursos é clara. "A tentativa é de dizer que o mais longo holocausto da história da humanidade, ocorrido contra os negros, não se tratou de uma perversidade, brutalidade e desumanização por ter eventualmente um sujeito aqui e outro acolá que se beneficiou dele."

Anacronismo

No volume 1 de sua trilogia Escravidão, lançada em 2019, o escritor Laurentino Gomes usa um capítulo inteiro (A Cicatriz) para falar dessa tentativa de desqualificar o movimento antirracismo.

"Enquanto este livro era escrito, 130 anos após a assinatura da Lei Áurea, algumas pessoas ainda insistem em questionar a chamada 'dívida social' em relação aos afrodescendentes", comenta o escritor.

Baseado em uma longa pesquisa de documentos, Laurentino observa que é correto falar que africanos ajudaram a escravizar os africanos, assim como chineses fizeram isso com o seu próprio povo e brancos da Europa e da Ásia, idem. "A escravidão foi uma prática disseminada em quase todas as sociedades e períodos da história humana", lembra o autor.

Em sua obra, ele afirma que culpar os negros pela escravidão é no mínimo um anacronismo, conceito usado na história para caracterizar um "erro de cronologia ao atribuir a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos que são de outra conjuntura".

Laurentino cita que a África era um continente de muitos povos que não se identificavam como uma coletividade. "Se reconheciam pelas suas particularidades étnicas, linguísticas, religiosas e culturais, geralmente limitadas a uma determinada região. Muitos nem sequer saberiam que habitavam um mesmo continente chamado África. Os que estivessem fora de um determinado grupo social, ainda que no mesmo continente, seriam considerados estranhos, rivais ou inimigos, passíveis de escravização."

Os grupos africanos que se beneficiaram do tráfico humano, mostra a extensa pesquisa do escritor, ajudaram na expansão de um modelo econômico mundial já estabelecido e que se apoiava em teorias racistas anteriores, que direta e indiretamente também prejudicavam essas pessoas. Caberia a elas lutarem contra ou aderirem, mas jamais imporem suas próprias regras. 

O que o livro deixa claro também é que não partiram dos africanos a ideia e o estímulo aos mais de 300 anos de escravidão negra no Brasil e em vários países do mundo. "Foi a altíssima demanda dos europeus por mão de obra cativa que possibilitou ao negócio negreiro no Atlântico atingir proporções tão significativas."

"Na época da Independência [1822], praticamente todos os brasileiros livres eram donos de escravos, incluindo inúmeros ex-cativos que também tinham seus próprios cativos."

De acordo com o segundo volume de Escravidão, lançado no ano passado, "no total, o Brasil escravizou cerca de 4,9 milhões de africanos, o equivalente a 40% dos 12,5 milhões que embarcaram da África para o continente americano até meados do século 19". 

A segunda parte da trilogia traz outra informação estarrecedora ao dizer que em 13 de maio de 1888, quando a Lei Áurea foi assinada pela princesa Isabel, há exatos 134 anos, "a expectativa de vida média de um brasileiro escravizado no fim do século 19 não passava de 18,3 anos, muito inferior à norte-americana, que era de 35,5 anos".

Laurentino Gomes, no início da série de livros sobre o período escravista no Brasil, justificou o porquê da escolha desse assunto:

"A escravidão no Brasil foi uma tragédia humanitária de proporções gigantescas. Arrancados do continente e da cultura em que nasceram, os africanos e seus descendentes construíram o Brasil com seu trabalho árduo, sofreram humilhações e violências, foram explorados e discriminados. Essa foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político que deu origem ao país depois da Independência, em 1822. Nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor para a construção da nossa identidade. Estudá-lo ajuda a explicar a jornada percorrida até aqui, o que somos neste início de século 21 e também o que seremos daqui para a frente."

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