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A muralha de segurança

Novo secretário de Segurança do Estado de São Paulo, Guilherme Derrite imagina um sistema para proteger paulistas

Arquivo Vivo|Percival de Souza, da Record TV


Guilherme Derrite, secretário de Segurança do Estado de São Paulo
Guilherme Derrite, secretário de Segurança do Estado de São Paulo

Muralha Paulista. Assim Guilherme Derrite, novo secretário de Segurança de São Paulo, denominou um novo formato para a implantação de um sistema destinado a proteger paulistas e paulistanos das ondas crescentes e preocupantes da criminalidade.

As muralhas, como sabemos, são altas e, ao longo da História, protegeram cidades e castelos, cercar terrenos e guarnecer presídios A muralha da China tem extensão superior a 8 mil quilômetros.

Portanto, a muralha da Capital e cidades do interior passa a ser um poderoso obstáculo para todo tipo de ação criminosa, segundo Derrite, numa metáfora que pretende se ajustar apo mundo real. Uma espécie de garantia para todos.

Em tese, uma maravilha que consiste em adotar um sistema onde câmeras e radares se interliguem, movimentações sejam detectadas, permitindo que as ações policiais sejam mais eficazes. A ideia parece muito boa, porque transfere Argos, o monstro mitológico de cem olhos, para uma maior visibilidade das forças do mal, ajudando muito na repressão aos atos criminosos. Com tantos olhos, o monstro horrendo podia ver de tudo, em qualquer direção. Nada poderia escapar ao seu controle.

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É interessante a ideia de, logo de cara na sua gestão, criar um impacto inovador, para proporcionar a sensação do desfrute de uma segurança mais eficiente. É o que todos querem, sem exceção. Não existem vítimas na categoria kamikaze. Ninguém quer.

As muralhas estampam longa história e variadas circunstâncias. As instaladas em Jericó, a bíblica fortaleza invadida por Josué, ao som de milagrosas trombetas, são um exemplo clássico. Emitir o som, por determinação de Deus, como narram as Escrituras, foi um trunfo invencível para derrubar as muralhas.

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As muralhas sem trombetas idealizadas por Derrite, com know-how de ex-capitão da Polícia Militar, não deixam de ser promissoras, embora Argos dê um sentido melhor do que muralhas paulistanas. Até porque, na visão do secretário, a sua imaginária muralha coibiria a entrada de indesejáveis nas cidades, ou sua perigosa locomoção. O segundo objetivo é mais eficiente porque os criminosos de modo geral já estão dentro das cidades. Mas, claro, é bom saber onde andam.

Mas isso não engloba tudo. O crime organizado, por exemplo, é estruturado, comandado e desenvolve suas ações de maneira não perceptível, invisível aos tantos olhos de Argos.

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E se mitologia pode ser analogia do mundo contemporâneo, é lógico que Argos precisa ter a grande capacidade de olhar para si mesmo. É necessário saber prevenir, investigar, policiar ostensivamente e fazer tudo isso de forma bem visível, para eliminar exatamente a sensação de insegurança. Tal insegurança gira principalmente em torno dos crimes contra o patrimônio - roubos e furtos – e os homicídios, mas sua órbita alcança estupro, menores no mundo do crime, estelionatos e lesões corporais, dentre outros previstos num imenso cardápio penal.

Olhar para dentro significa saber dirigir, sem miopia, catarata e astigmatismo, assuntos próprios para oftalmologistas, mas do indispensável conhecimento de quem precisa saber de tudo para resolver o que fazer.

O Estado de São Paulo, o objetivo da muralha de Derrite, tem hoje mais de estimados 40 milhões de habitantes. Os olhos policiais estão parcialmente vendados, portanto prejudicados, por causa de algo que foi se deteriorando ao longo dos últimos anos, por irresponsabilidade do poder público: a defasagem nos efetivos das Polícias Civil e Militar. Ou seja: a Militar conta hoje com uma tropa de cerca de 80 mil homens e mulheres. Mas já teve 100 mil, a força pública que é a sua atividade-fim. Já foram 90 mil, dezessete anos atrás. Traduzindo o que se dispõe para a sociedade como um todo, a proporcionalidade é de 177 policiais militares para cada grupo de 100 mil habitantes. É insatisfatório, mas sem os cem olhos de Argos.

Na Polícia Civil, o buraco é maior ainda, pois o déficit nos quadros chega a 12 mil, lacuna para um efetivo previsto de 35 mil, incluindo os peritos da Polícia Científica. Resultado: policiais em número bem abaixo do que deveria ter, em termos de – por exemplo – delegados, investigadores e escrivães. A consequência é grande no exercício da polícia judiciária, a razão de ser da Polícia Civil, traduzida num crítico percentual de casos esclarecidos, daí existir nas ruas um número absurdo de assassinos e ladrões, além de outros criminosos.

Além disso, que é grave, muitas delegacias de polícia ficam fechadas durante a noite e até mesmo nos finais de semana. Quem mora num bairro e vê uma delegacia sem policiais, fica sem entender nada. Equivaleria a um hospital sem médico. A pessoa fica obrigada, se quiser e puder, a dirigir-se para uma delegacia em outro bairro, que pode situar-se bem distante. Resultado prático: muitos casos ficam sem registro em função dessas dificuldades e também, por não se acreditar muito no êxito numa investigação feita (quando feita) nessas condições.

Há mais, porém: nos registros feitos como se fosse um avanço, o boletim de ocorrência eletrônico, na verdade não é: o boletim por computador não é detalhista, como se exige ao máximo numa investigação que se pretenda bem feita. Tais fatos precisam ser contemplados pelo olhar de Argos, embora escapem da muralha de segurança de Derrite. Criam, assim, uma cifra obscura da criminalidade.

Eis aqui, em apertada síntese, a complexidade exposta pela segurança pública. A muralha de Derrite, que pretende derreter os focos principais da criminalidade, vai passar por desafios múltiplos: os operacionais e as gritarias histéricas de muitos que só prestam atenção no que Derrite tenha dito. Aliás, essa fauna quer memo é mandar na Polícia, embora sobre ela nada entendam, bastando ver a degradação institucional sistemática a que ela foi submetida nos últimos anos.

Outra coisa que o novato secretário precisa dar um jeito: a propalada fama de que a Polícia somente sairia às ruas com o objetivo determinado de exterminar pessoas pela tez, baixa condição social e morar em lugares distantes ou ermos. Se assim fosse, teríamos uma tropa de assassinos agindo de forma dolosa para praticar crimes tipificados como qualificados. Algo assim seria inqualificável, deplorável, intolerável, desumano e deliberadamente criminoso, indigno de ser admitido institucionalmente e exigindo uma pronta intervenção do Estado. Mais: se assim fosse, teríamos que admitir que não existem bandidos em ação (não?!) e sim uma legião de arcanjos e querubins andando pelas ruas e sendo implacavelmente perseguidos por matadores oficiais.

Derrite-secretário procura camuflar a ofensa ética e moral, incluindo na sua muralha sem Argos, as câmeras nos uniformes (como se isso fosse nossa principal preocupação em matéria de segurança), acoplando a elas dispositivos tecnológicos para identificar pessoas com antecedentes, que desfilam pela passarela da impunidade, percebendo instantaneamente a circulação de veículos roubados ou furtados, dirigidos pelos bandos de anjinhos inocentes importunados por abordagens policiais.

É difícil, Derrite. Mas já que você aceitou descascar o abacaxi, esperamos que obtenha sucesso. Afinal, isso é interesse de todos, inclusive dos críticos, ao contrário de Argos, sem nenhum olho. Ah, é dever do Estado e responsabilidade de todos, segundo aquele livrinho que chamamos de Constituição da República.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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