Dos 26 mil moradores de BH com deficiência intelectual, apenas 100 estão no mercado de trabalho
Pesquisa do Instituto Mano Down reflete desafio para geração de renda própria e mercado quase inacessível para PcDs
Minas Gerais|Ana Paula Pedrosa, da Record TV Minas
Todo dia, Tatiany Nascimento sai de casa, veste o uniforme, pendura o crachá e passa o dia na cafeteria onde trabalha atendendo clientes, limpando mesas e organizando o espaço. A rotina seria comum para uma mulher de 31 anos como ela, se não fosse por uma diferença: Tatiany tem deficiência intelectual, uma condição - como todos os outros tipos de deficiência - que dificulta a autonomia e, consequentemente, a inserção no mercado de trabalho.
Chegar onde ela está não é fácil. Belo Horizonte tem cerca de 26 mil pessoas com deficiência intelectual e mental. Destas, menos de cem conseguem gerar a própria renda, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Mano Down. O estudo é o único dessa natureza e não contempla a inserção de outros tipos de deficiência no mercado, já que não estão na área de atuação da entidade.
Em uma pesquisa de 2019, que é a última disponível sobre o tema, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que apenas 28,3% das pessoas com deficiência estavam inseridas no mercado de trabalho, mas não mostrou quantas estavam efetivamente trabalhando e quantas estavam desempregadas ou sem ocupação.
Tatiany saiu da estatística da maioria e passou a integrar a População Economicamente Ativa (PEA) depois de passar pelo projeto Talento Apoiado, do Mano Down. Com ações multidisciplinares e um olhar personalizado para cada indivíduo, o projeto já garantiu vagas no mercado formal para cerca de 50 pessoas.
Inclusão é legitimar cada pessoa. Não é só 'me manda uma pessoa com down'. Tem que ver quem se adequa a cada função%2C qual a habilidade daquela pessoa%2C contar com o apoio da família%2C que muitas vezes fica com medo%2C despertar no jovem o interesse pelo trabalho e fazer um trabalho com a empresa para receber aquela pessoa. São várias frentes para conscientizar da importância daquela vaga.
A Tatiany passou por todo esse processo e, hoje, sonha com voos maiores. Com o dinheiro do trabalho ela já comprou móveis para o quarto e o próximo plano é comprar um notebook. "Eu quero fazer um curso de informática", diz.
Colega de trabalho dela no mesmo café, Italo Matheus de Faria tem síndrome de Down e trabalha desde agosto de 2022. "Eu tenho alegria de trabalhar, acho muito chique", diz ele, que já comprou até presente para a avó.
O gerente do café, Idílio Gontijo, avalia que é importante que os empresários "abram a cabeça" para a inclusão. Ele ressalta que Tatiany e Ítalo têm bom desempenho e criam laços com os clientes. "Aqui, eles têm suas habilidades desafiadas. É surpreendente como são capazes de muita coisa que nem eles sabiam", conta.
Descobrir o seu potencial para trabalhar é mesmo uma conquista enorme. Eduardo Dias, o Dudu, tem 28 anos e síndrome de down. Ele sempre gostou de música, mas descobriu que pode mais do que ouvir o som: ele pode comandar uma pista.
Dudu é DJ e diz que sente orgulho quando anima uma festa. "É muito legal". Para chegar lá, ele contou com a ajuda do Cristiano Cheyne, que é DJ, produtor musical e orientador socioeducativo. Ele e a mãe mantêm o Núcleo de Vida Inclusiva (Nuvi), que ajuda pessoas com deficiência a desenvolverem autonomia para tarefas cotidianas e também a encontrar um caminho profissional.
"Levei o Dudu para tocar em uma cidade fora de BH. Ele levou sozinho uma pista com 200 pessoas. Eu fiquei emocionado", lembra. O DJ Cheyne conta que quando leva um dos alunos PcDs para tocar com ele nas festas, é comum receber olhares de desconfiança por parte do contratante. "Eu falo 'pode confiar. Se não pudesse confiar, eu não traria'. Todo mundo é capaz", conta.
Assim como o Dudu, Pedro Henrique Scarpelli tem 28 anos, síndrome de Down e frequenta o curso de DJ. Ele já tinha trabalhado em um escritório antes e, agora, se realiza nas festas. "Dá uma alegria", diz.
Por lei, as empresas com mais de 100 funcionários devem reservar 2% de suas vagas a pessoas com deficiência. Nas companhias menores, a contratação não é obrigatória, mas acontece naquelas que enxergam o valor da inclusão.
Rafael Gregório, analista de educação e especialista em diversidade do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), defende que não basta contratar pessoas com deficiência para cumprir a cota. "Não adianta ter uma pessoa com deficiência para representar todo esse grupo. Se elas são 7% da população, têm que ser 7% do quadro da empresa. E se as pessoas com deficiência não estiverem participando da tomada de decisão, eu tenho uma organização diversa, mas não inclusiva", defende o especialista.
"Quando eu tenho dentro da minha empresa a representatividade, eu estou trazendo para dentro da minha organização a potencialidade de oferecer produtos, serviços e experiências adequados a toda a sociedade e não apenas a um pequeno grupo", detalha Gregório sobre as vantagens.
Produtos e serviços
Especialistas indicam que para que mais pessoas com deficiência desenvolvam a autonomia e consigam chegar ao mercado de trabalho, é preciso um investimento amplo em educação e nas necessidades de cada um, com oportunidades, produtos, serviços e experiências adequados.
Assim como no caso do emprego, a oferta desses produtos é pequena e esse mercado consumidor sequer é mapeado pelas instituições e organizações que estudam a economia brasileira.
Para Rafael Gregório, a falta de dados reforça a exclusão, já que dificulta a criação de políticas públicas e a abertura de negócios voltados para esse público. Ele aponta a educação empreendedora inclusiva como um caminho. "Essa educação vai ensinar as pessoas a olharem para o mundo e para todas as possibilidades que existem de renda, empregabilidade, de transformação e geração de modelo de negócios", pontua.
Esse foi o caminho feito pela pequena empresária Rovana Schettino Rezende, quando abriu a Vestindo Bem - uma confecção destinada a pessoas acamadas e cadeirantes. Ela estava fazendo um curso de design universal quando o professor desafiou os alunos a criarem um produto inclusivo em qualquer área.
"Eu fiquei pensando o que ia fazer. Primeiro, pensei em móveis", lembra. A resposta, porém, estava mais perto do que ela imaginava. Na época, uma pessoa muito querida estava com um AVC [acidente vascular cerebral] e Rovana estava ajudando nos cuidados.
"Quando fui trocar a vestimenta dela, eu percebi a dificuldade para vesti-la. Comecei a pesquisar e vi que tinha muito pouca coisa que pudesse facilitar. Aí comecei a desenvolver uma roupa para ela e, em 2014, acabou virando a empresa", conta.
A empreendedora produz peças com botões, fechos, bolsos e aberturas estratégicas para facilitar o vestir e acomodar equipamentos médicos como sondas e extensores. A empresa já atendeu a mais de 1.000 pessoas com roupas personalizadas e sob medidas.
Como são produtos mais caros e menos acessíveis a boa parte das pessoas com deficiência, Rovana montou um sistema para recolher as peças que não servem mais e revendê-las em um bazar, por preços bem menores.
A renda do bazar vai para um projeto voltado a pessoas com deficiência. "Parece pequeno. As famílias deixam de sair com pessoas com deficiência pela dificuldade de vestir ou porque as roupas não permitem acomodar os equipamentos. É um transtorno. Quando elas me relatam como a roupa adequada mudou a vida delas, meu coração fica cheio. É uma emoção ver a vida de uma pessoa transformada", concluiu a comerciante.