Quarenta e nove crianças, 16 psicólogos, oito fonoaudiólogos e quatro médicos. Com essa fórmula em mente, o médico Fabio Barbirato organizou, em agosto deste ano, as salas do Centro Psiquiátrico da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro para inaugurar um projeto na instituição: durante quatro meses, crianças com TEA (Transtorno de Espectro Autista) recebem tratamento gratuito e voluntário, agendado pela secretária Dilma, uma senhora cuja mesa sustenta pilhas de papel e cadernos, bem organizados. As folhas são preenchidas com nomes e datas, que indicam as sextas-feiras e os sábados que os pacientes devem comparecer ao estabelecimento. O nome dos pais das crianças não consta na papelada, mas a presença dos responsáveis das crianças é norma do projeto. Enquanto os meninos e as meninas são orientados pelos profissionais, os pais assistem a palestras em que aprendem técnicas de estímulo para praticar com os filhos. Nesses encontros, a troca de experiência entre a plateia é resultado de um serviço inédito no tratamento a autistas: orientar e confortar pais de crianças diagnosticadas, por psicólogos e psiquiatras, com comportamento fora do comum. Constatado o sucesso do projeto, Barbirato planeja, desde já, dar continuidade ao tratamento gratuito a crianças autistas. Em fevereiro, responsáveis interessados em inscrever o filho no segundo ciclo do programa na Santa Casa devem entrar em contato com a dona Dilma. Após avaliação, a criança inicia o tratamento em março. Barbirato fica empolgado com as medidas para aprimorar a eficácia do serviço: pela primeira vez no Brasil, crianças autistas até três anos poderão ser assistidas por médicos especialistas no tratamento do transtorno. — Nosso grande objetivo é poder oferecer a crianças o que elas dificilmente poderiam receber em consultórios médicos. O tratamento do autismo é muito caro e a Santa Casa oferece todos os serviços gratuitamente. Queremos mudar o rumo da história de crianças com autismo. Se literatura curasse, escreveria um romance sem fim Sentado ao computador, o menino de dez anos assiste a games em inglês sem legenda, enquanto a mãe o analisa. Emocionada, escreve. Parágrafos, frases, letras e pontos compõem registros de cenas do filho, diagnosticado, aos quatro anos, com autismo. Hoje, Barbara observa o troféu recebido em um concurso literário, em 2011, com a publicação do texto O menino sentado ao computador. Mas o objeto em si não importa muito. Caso a literatura pudesse curar o pequeno Eric, escreveria um romance sem fim, pensa Barbara. Mas autismo não tem cura. Bastou-lhe, então, inscrever o filho no primeiro projeto de tratamento gratuito na Santa Casa. Quando recebeu o telefonema de dona Dilma, Barbara sabia que começaria, em agosto deste ano, um novo capítulo na vida de Eric, estruturado por psicólogos, psiquiatras e fonoaudiólogos, em serviço voluntário. No projeto, os pais também integram a programação de atividades. Por muitos anos, um mito atormentou mães de crianças com autismo. Na suposição, o comportamento distante e despreocupado de pais em relação aos filhos origina o transtorno. Barbara não acredita na hipótese, porém julga essencial a participação dos responsáveis para melhora da criança. — Mais importante do que o próprio tratamento é o dia a dia dos pais. Se não der atenção, a criança não se desenvolve. Sempre fui mãe babona, grudada ao Eric. Não deixava ninguém pegá-lo no colo. De curumim a cacique — Seu filho não pode estudar aqui. Ele tem problema. Tira ele da escola e procura um tratamento. Porque ele não vai se adaptar em lugar nenhum. Foi o que o diretor de uma escola disse à Barbara. Era a primeira escola do pequeno Eric, com quatro anos. Acostumado com o silêncio de casa, de dois andares, em Irajá, zona norte, com espaço de sobra, o menino estranhou a companhia de mais 20 colegas dentro de uma sala de aula com apenas um adulto. A presença do professor era tão penosa para Eric quanto o desaforo do coordenador foi para Barbara. O menino ainda não sabia que estava aprisionado em um labirinto sem regras até para a medicina. Ela queria apenas uma explicação à ojeriza da escola. Até que ouviu as palavras duras da psiquiatra, na primeira consulta de Eric. Em alto e bom som. — Não está vendo que seu filho é autista?!!! Acostumada com o silêncio do filho, durante quatro anos, com dedicação de sobra, Barbara estranhou o questionamento da médica dentro de um consultório médico. Como Barbara poderia diagnosticar o próprio filho? Na época era advogada, conhecia as regras dos direitos humanos. Mantinha contato com uma prima, graduanda de medicina na UFF (Universidade Federal Fluminense), que a indicou uma especialista em autismo com quem Barbara tratou logo de agendar uma consulta, na universidade mesmo. A profissional deu os primeiros diagnósticos: — Pouco contato visual e ecolalia, que é repetição de frases e palavras. Depois daquele dia, ocorreram as primeiras mudanças. Ao matricular Eric em outra escola, Barbara se assustou quando foi buscar o filho depois da aula. Era Dia do Índio e Eric, fantasiado, parecia o cacique da nova turma, enquanto jamais encontraria sua tribo de amigos no colégio anterior. A mãe atribui a mudança de comportamento do menino à alteração de ambiente escolar, ao início de tratamento médico e, principalmente, à assistência dela e do marido, Arilson. — Antes ele estudava em um depósito de crianças. Tinha muitos alunos para pouca supervisão. Para Eric, a presença do professor na sala servia apenas para cumprir uma norma da escola: aprendeu a escrever sozinho. Enquanto os coleguinhas recortavam folhas de papel e coloriam desenhos, o menino descobriu na união das letras das palavras ‘correios’ e ‘pare’ o significado, respectivamente, do local de entrega de cartas e de parada dos carros. Acompanhado da mãe, caminhava atento às placas no meio do caminho até a escola. Eric não foi alfabetizado a partir da junção de sílabas. Na cabeça do menino, cada conjunto de letras significava um objeto ou uma ação. Um dia, a professora lhe pediu autorização para aplicar deveres do livro da 1ª série às atividades do menino, com cinco anos, no jardim 3. Na ocasião, Eric terminava as tarefas muito antes dos colegas e fugia, amiúde, para recreação no pátio. Onde permanecia sozinho. A dedicação de Barbara Às terças e quintas-feiras, pratica o inglês em um curso em Irajá. E lá vai a mãe atrás. Barbara é professora de inglês em uma escola pública do município do Rio, mas sempre conversam em português. A facilidade do menino com a língua estrangeira é resultado das horas na frente do computador, em que assiste, em inglês, a batalhas de games. Se deixar, passa o dia com o rosto grudado ao monitor. Quando a internet fica fora do ar, é um desespero. E, na chegada do funcionário da Velox, Eric ataca: — Oi, conserta a internet. Em seguida, entra o marceneiro: Eric recua: permanece vidrado no site wikia.com, em que escreve resenhas sobre os personagens das batalhas dos games assistidos. Na página da internet, descreve as características e a história dos personagens, tudo em inglês. O menino gosta, também, de ilustrar os protagonistas do site. Às quartas-feiras, é dia de aula de desenho no curso Daniel Azulay, em Vila da Penha. E lá vai a mãe atrás. Um dia, a professora incumbiu um trabalho ao menino: devia imprimir imagens de atividades de que mais gosta. Resultado: um computador, uma televisão e uma estante com livros. — Mãe, não consigo pensar em mais nada. A primeira aula de português do semestre é sempre complicada. A folha de papel permanece em branco na frente dele, com o título sugerido pela professora: Como foram minhas férias. Sobre o que escreveria? “Fiquei na frente do computador e ponto final”, imagina Barbara a narrativa do filho. Ela entende as dificuldades de Eric. Para ele, as aulas de história são incompreensíveis. “Aquilo aconteceu há tanto tempo. O que tenho a ver com isso?”, especula Bárbara o pensamento do filho. E os estudos sobre geografia: “Eu moro no Rio de Janeiro. Qual é o sentido de eu conhecer características de outros estados?”, Barbara se coloca mais uma vez na cabeça do menino. Barbara pode imaginar os pensamentos de Eric. Mãe e filho estão sempre juntos. Onde ele vai, lá vai ela atrás. Há um mês, bateu à porta da prefeitura para requerer o direito dela de redução da carga horária de trabalho em 50% por ser funcionária do Estado e mãe de criança portadora de TEA. O pedido foi negado pela assistente social. — Reconheço que seu filho tenha autismo, mas você trabalha tão pouco. — Mas é lei. Eu tenho direito. — Pedido negado. Você é P1, trabalha só 16 horas. É tão pouquinho, não é? Dia de tratamento Nas ruas do Rio, pais e filhos esperam em filas na frente de casas. Todos querem doces. É dia de São Cosme e Damião. Mas ainda é cedo. Na rua Santa Luzia, centro do Rio, pais e filhos sentam em um banco na frente do ambulatório psiquiátrico dentro da Santa Casa. É mais um dia de tratamento para crianças com autismo, divididas em dois grupos: um, de seis a oito anos, e outro, de nove a 12. Às 8h, começa o alistamento: Guilherme, Igor, Eric Garrett e Caíque. Agora os mais novos: Paulo, João Paulo, Tainã, João Pedro e Guilherme. A fonoaudióloga Katia organiza as crianças em filas para conduzi-las ao segundo andar, onde ocorrem as atividades terapêuticas. Os pais seguem para uma palestra em uma sala no mesmo prédio. Os responsáveis das crianças entre seis e oito anos permanecem na entrada do ambulatório. Para se distraírem até a convocação para a palestra, as mães formam uma roda de conversa sobre autismo, e os pais, espalhados em duplas e trios, falam sobre manias dos filhos. — Meu filho aprendeu a ler com três anos. Na época, a professora virou para mim e disse: ‘Fica atento, ele pode ser autista’. — A hora do almoço é bem complicada. Meu filho só come arroz. E tem que ser da mesma marca. — O meu também! Bom, se colocar feijão, meu filho aceita. Mas para convencê-lo a comer carne é muito difícil. — Foi em um dia de sol. Estávamos em casa com um casal de amigos. Meu filho devia ter uns três anos. Ele se aproximou da piscina e falamos para ele, como de costume, que ele não sabia nadar. Mas ele continuou caminhando. Então decidi que ele iria aprender, por bem ou por mal. Eu e meu amigo já tiramos os óculos, caso tivéssemos que pular na água. E não é que o menino mergulhou mesmo. — Sim, meu filho também não tem noção de perigo. O doutor Fabio Barbirato ressalta a importância de os responsáveis colocarem limites aos portadores de autismo. — É necessário saber como se impor. Não é porque a criança é autista — especial como falam — que ela pode morder alguém ou subir no sofá. Deve-se lembrar de que carinho também é dar limites. No dia a dia, Arilson segue os conselhos do médico e costuma ler livros para se informar sobre características do transtorno. — Percebi que o que a gente aprende no instinto, o autista tem de ser ensinado. Ele tem de ser programado. Quando uma pessoa está sorrindo, por exemplo, sabemos que ela está feliz. Os autistas, porém, não sabem fazer esta distinção. Mas, a partir de treinamentos, eles aprendem estas diferenças. E esta era a atividade em grupo, naquela manhã, com os meninos: estímulo do contato visual. A prática é simples: observada uma expressão facial, o paciente tem de classificar o sentimento exposto, como, por exemplo, raiva, irritação, susto, alegria etc. O dever de casa é parecido: a criança deve olhar nos olhos dos pais e relatar a eles as experiências do dia. De repente, Eric desce as escadas muito assustado. No meio do exercício, um coleguinha se antecipou para pegar um objeto e isso o deixou ansioso. Após participar da palestra com o marido e preencher formulários de avaliação, Barbara aguardava a saída do filho. Por sorte, estava sentada na frente do ambulatório e pôde acalmar o menino. — Calma, filho. Você tem que enfrentar a situação. — Eu tentei enfrentá-lo — respondeu ele, com a voz embargada. Os pais de Eric descartam a hipótese de iniciar tratamento com remédios controlados, o que retira o menino de uma lista com 18.975 pacientes autistas que ingerem medicamentos fornecidos pelo governo. De acordo com o Ministério da Saúde, a secretaria gasta, ao ano, R$ 668.549,37, com a compra de Risperidona, substância auxiliadora na diminuição de crises de irritação, agressividade e agitação. Na verdade, Barbara não se incomodaria tanto se o nome do Eric estivesse na lista do governo de pacientes tratados com remédios. Barbara não pode mudar a estimativa da OMS (Organização Mundial de Saúde): 2 milhões de brasileiros são portadores de TEA. E projeto nenhum pode remover Eric dessa contagem. Nem mesmo dona Dilma, com toda sua autonomia para acrescentar e retirar pacientes do caderno intitulado autistas. A única ação possível da secretária para beneficiar o tratamento do autismo vai ocorrer em dezembro. Nesse mês, o nome do pequeno Eric Garrett será removido das listagens de dona Dilma, para abrir espaço para inscrever outro paciente no programa. Daí para frente, Barbara continuará a escrever, da melhor forma que souber, a história do menino Eric. Para inscrição da criança no próximo grupo de tratamento, os interessados devem ligar para os telefones (0xx 21) 2533-0118 ou 2221-4896.Colaborou Hugo Pernet