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Medo de sofrer preconceito desencoraja vítima a denunciar

Polícia não está preparada para atender casos de vítimas de violência sexual, diz promotora

São Paulo|Ana Cláudia Barros, do R7

Muitas vezes, mulheres são revitimizadas quando vão à delegacia para denunciar
Muitas vezes, mulheres são revitimizadas quando vão à delegacia para denunciar Muitas vezes, mulheres são revitimizadas quando vão à delegacia para denunciar

Quando procurou a polícia após sofrer um estupro, a jornalista Adriana*, 53 anos, ouviu da delegada perguntas referentes à roupa e à cor do esmalte que usava. Longe de ser um acolhimento, a frieza daquele atendimento aumentou o sentimento de culpa que costuma acompanhar muitas vítimas.

— Cria-se um constrangimento em falar desse assunto até pela forma como a coisa é conduzida. Como pode alguém perguntar com que roupa você estava? Que esmalte você usava? Você já está fragilizada. Aí, você fica pensando: “Meu Deus, será que é porque eu estava de bota?” “Será que eu fiz alguma coisa?”

A jornalista foi atacada, há cerca de nove anos, perto da estação Sumaré do metrô, na zona oeste de São Paulo.

— Eu tinha ido a um espetáculo de poesia com uma amiga. Estava de metrô e na hora de voltar, errei a estação que eu tinha que descer. Desci na estação Sumaré. Era um domingo, 9h da noite. Quando comecei a andar, vi que tinha uma pessoa atrás de mim. Olhei para trás e vi que era um rapaz. Não era mal vestido. Quando cheguei bem na frente da igreja, era um pouco antes do ponto do ônibus, eu parei na faixa de pedestres para fingir que iria atravessar a rua. Ele parou atrás de mim, tampou a mão no meu rosto e me arrastou para uma casa bem na esquina. [...] Não estava de minissaia, não estava de salto alto.

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A maior parte das mulheres que sofrem estupro silencia, afirma o coordenador do Serviço de Violência Sexual do hospital Pérola Byington, Jéferson Drezett. Ele estima que 80% das vítimas jamais chegam a comunicar a alguém o que aconteceu. Na avaliação do médico, o medo de sofrer preconceito é um dos fatores que desencorajam a busca por ajuda. O temor de ser abandonada pelo companheiro, situação comum, segundo Drezett, também ajuda a engrossar a subnotificação.

— A maioria, não só a brasileira — essa evidência temos nas pesquisas do hospital e evidências em outros países —, passa pela situação de estupro solitariamente, sofre sem quem ninguém saiba. Até a hora em que estoura uma doença transmissível, uma gravidez e não tem mais como esconder, e ela acaba tendo que buscar ajuda.

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A promotora de Justiça Maria Gabriela Prado Manssur, que é coordenadora do Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher - Grande São Paulo II, ressalta que muitas mulheres são submetidas a uma revitimização quando procuram a delegacia para denunciar.

— A polícia não está preparada de forma geral para atender casos de vítimas de violência doméstica e de violência sexual. Não podemos generalizar, porque tem muita gente boa em todos setores, mas de uns tempos para cá, temos recebido várias reclamações de vítimas que se dirigem às delegacias e acabam sendo ou maltratadas ou constrangidas ou desprezadas [...] Você não pode ficar perguntando 500 vezes para a mulher por qual razão ela foi estuprada, por que sofre violência. Isso não é de interesse da autoridade que está colhendo as informações.

Maria Gabriela enfatiza, ainda, a importância de se acreditar na palavra da vítima, seja ela criança, adolescente ou adulta.

— O que eu tenho visto são casos de abuso sexual de menores, crianças, casos que ocorrem dentro de casa ou são praticados pelo vizinho ou pelo padrasto ou pelo primo e que o delegado ouve essas vítimas e não toma nenhum tipo de providência, porque precisava de mais testemunhas, de mais comprovação. Mais uma vez, a palavra da vítima não foi levada em consideração.

O problema não é verificado apenas na área policial. No setor de saúde, nem sempre o acolhimento é adequado. Em agosto do ano passado, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei 12.845, que determina o atendimento imediato e obrigatório em hospitais integrantes da rede do SUS (Sistema Único de Saúde) a vítimas de violência sexual. Para Jéferson Drezett, a necessidade de se criar uma lei do tipo reflete falhas no atendimento à vítima.

— Nossos serviços de saúde de maneira geral continuavam não capacitados, despreparados e pouco se importando em se organizar para prestar uma atenção qualificada para essas mulheres. Foi necessário obrigar, por lei, os serviços de saúde a assumirem essa responsabilidade que lhes cabe.

Diante de tantas deficiências, segundo ele, é compreensível a falta de confiança por parte da vítima nos serviços médico e policial.

— Tenho profunda tristeza de ver o que acontece com essas mulheres. Não estamos preparados ainda, como sociedade, para elas acreditarem em nós [...] Agora, aquelas que nos procuram, acho que o mínimo que o hospital tem que fazer é dizer que aqui dentro não é assim. Não é justo que depois do absurdo, da brutalidade de uma violência, dessa violação de direitos, essa mulher chegue e receba um atendimento que coloca em dúvida a palavra dela.

Após o estupro

Para preservar as filhas, na época, adolescentes, Adriana guardou segredo por muito tempo e só revelou para elas no ano passado que havia sofrido violência sexual. A jornalista diz que teve que fazer terapia para tentar a entender o que havia acontecido.

— Eu precisei canalizar isso, entender isso para depois conseguir falar sobre isso [...] Eu me senti bem aliviada [por contar]. Nós choramos muito.

Com o passar dos anos, ela tentou extrair lições do que aconteceu. Diz ter ficado mais cautelosa e esperta ao andar na rua. Aprendeu também que deveria transformar a data em que ocorreu o abuso em uma lembrança positiva.

— Eu me lembro que comecei a contar a data. Passou um ano, eu falei: “Nossa, faz um ano que isso me aconteceu”. No segundo ano: “Faz dois anos que isso me aconteceu”. Quando estava para fazer o terceiro ano, pensei: “Isso não é uma data para eu ficar contando como se fosse um aniversário. Então, vou ter que transformar essa data em alguma coisa que seja boa para mim. Se tenho que me lembrar dela, que seja por um bom motivo”. Aí, parei de fumar nessa data.

O agressor de Adriana não foi capturado. Ela, que chegou a ir à delegacia para fazer o reconhecimento de quatro suspeitos, afirma que a única lembrança que tem do rosto do homem que a violentou é “uma mancha branca”.

—Eu me recordo até hoje da estrutura do corpo, da roupa, do contorno do cabelo, sinto um cheiro de sabonete e o rosto é uma mancha branca. Eu jamais poderia reconhecê-lo. No começo, quando você anda pela rua e você vê uma pessoa mais ou menos com aquela característica, parece que você sai procurando. Você quer achar de qualquer forma, mas na verdade, o que você precisa mesmo é se encontrar dentro dessa situação e encontrar de novo seu ponto de equilíbrio.

*O nome foi modificado para proteger a identidade da vítima.

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