Avanço de participação feminina é posto em xeque na Câmara
Reserva 18% de assentos para mulheres implicaria em aumento de cadeiras femininas, mas em ritmo insuficiente, dizem especialistas
Brasil|Fabíola Perez, do R7
O avanço da participação feminina na política brasileira corre o risco de ser posto em xeque caso avance o projeto de lei que prevê somente para 2038 a reserva de 30% de assentos para mulheres nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados. O texto original reservava 15% das vagas às mulheres nesses espaços de poder. Entretanto, o relator do projeto, senador Carlos Fávaro (PSD-MT), considerou que esse percentual havia sido alcançado espontaneamente nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados.
Com isso, acolheu emendas que propõem a cota de 30% de assentos de forma escalonada. Aprovado pelo Senado no dia 14 de julho, o PL 1.951/2021, que seguiu para a Câmara dos Deputados, especifica os seguintes percentuais mínimos para as próximas disputas:
- 18% nas eleições de 2022 e 2024;
- 20% em 2026 e 2028;
- 22% em 2030 e 2032 e
- 26% nas eleições de 2034 e 2036.
Somente em 2038 e 2040, a reserva de 30% seria alcançada. “É uma porcentagem atrasada que, combinada a outras medidas vai gerar um retrocesso na participação de mulheres e, principalmente, de outros grupos marginalizados, como negros e LGBTQIA+ na política”, afirma Hannah Maruci, professora de Ciência Política da UFRJ e co-fundadora do projeto A Tenda das Candidatas.
De acordo com a especialista, a melhor opção é manter as regras atuais, que reservam 30% das candidaturas, e 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do Fundo Partidário para as candidaturas proporcionais femininas, do que aprovar mudanças que provocariam atrasos. “É preciso uma reforma que aprimore e expanda as regras já existentes para a promoção de igualdade, não somente em relação a gênero, mas também no que se refere à raça”, afirma Hannah.
A pesquisadora e diretora do Instituto Alziras, Michelle Ferreti, explica que as mudanças têm ocorrido muito rapidamente, sem o devido debate junto à população. “Seriam necessários quase 20 anos para se chegar ao patamar de 30%”, diz ela. “Além disso, esse mesmo projeto retira a obrigatoriedade dos 30% de candidaturas de mulheres, o que significa que pode sequer haver um número suficiente de candidatas para preencher essas cotas.”
Além do projeto de lei, foi também aprovado pelo Senado a PEC 18 de 2021, que retira a sanção dos partidos que não cumprirem a obrigatoriedade de destinar 5% do fundo partidário para cursos de capacitação política a mulheres.
Outra regra aprovada é a destinação de 30% de recursos de fundo de campanha às mulheres independentemente da proporção das candidaturas. “Essa mudança concentra recursos em algumas candidaturas e fere o princípio da proporcionalidade estabelecido pelo STF em 2018”, diz Michelle. “O conjunto das duas peças, é um avanço muito pequeno em troca de uma série de conquistas.”
Reserva de assentos e atraso na representatividade
Atualmente, o Brasil ocupa a posição 140ª em uma lista de 193 nações, segundo o Mapa das Mulheres na Política de 2020 da ONU (Organização das Nações Unidas). A discussão sobre a reserva de assentos para mulheres começou a ser abordada por meio da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) número 125/2011, inicialmente criada para proibir a realização de eleições em data próxima a feriado nacional. Após incorporar uma série de outras propostas, a PEC discute hoje uma ampla reforma eleitoral.
No que se refere à representação das mulheres no poder legislativo, a PEC estipulava a reserva de 15% dos assentos às mulheres. Essa mudança poderia, na prática, reduzir a participação feminina em 10% somente nos municípios. "O efeito da reserva de assentos não chegaria nem perto do que buscamos rumo à paridade de gênero”, afirma Hannah.
Em 2020, foram eleitas em todo o país 9.196 vereadoras. Se a mudança prevista na PEC fosse efetivada, haveria uma redução de 910 cadeiras ocupadas por mulheres nesses cargos. “Haveria uma diminuição da representatividade em algumas assembleias e nas câmaras municipais onde as mulheres já são mais de 15%”, explica Michelle Ferreti, pesquisadora e diretora do Instituto Alziras.
Para Hannah, qualquer reserva que proponha um percentual abaixo de 30% é considerado um retrocesso. “Isso porque existe em média mais de 15% de mulheres nas assembleias legislativas”, diz. Segundo ela, em alguns municípios a reserva de assentos significa garantir apenas uma mulher nessas instâncias de poder. “Ter uma eleita é muito importante, mas ainda é muito pouco. É importante ter mais de uma mulher nesses espaços porque a violência de gênero ainda é um problema recorrente.”
Agora, com o Projeto de Lei que reserva 18% de assentos no legislativo para mulheres haveria um aumento de 2.737 cadeiras ocupadas por elas nas Câmaras de Vereadores. "Essa mudança implica o aumento da participação feminina no legislativo em um ritmo lento e insuficiente, se comparado com a média mundial e com o desempenho dos nossos vizinhos latinoamericanos", explica Michelle.
Em 2020, foram eleitas em todo o país 9.196 vereadoras. "As práticas adotadas pelos partidos políticos historicamente nos ensinam que a tendência é que a reserva mínima de assentos funcione como teto e não como piso" diz a pesquisadora.
O levantamento do Fórum Fluminense de Mais Mulheres na Política revela que hoje existem 944 municípios sem mulheres nas Câmaras de Vereadores, o que corresponde a 17% das cidades brasileiras. Outros 1.088 municípios, o que equivale a 20% do total, elegeram mais do que 18% de vereadoras. Isso significa dizer que existem hoje 1.522 assentos ocupados por mulheres nas câmaras municipais acima do que a cota propõe.
“A preocupação é de que haja um retrocesso nos lugares em que houve um desempenho acima da cota. E como o texto proposto retira a obrigatoriedade de que os partidos preencham suas chapas com pelo menos 30% de candidatas, há ainda o risco de que não haja mulheres suficientes para preencher as cadeiras” diz Michelle.
Uma luta por mais representatividade
Desde 2009, quando uma intensa pressão conseguiu mudar as regras para as eleições gerais do ano seguinte, para garantir que mais mulheres fossem eleitas, ficou estabelecido que cada partido ou coligação partidária deveria preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Até então, quase nenhum partido ocupava vagas reservadas às candidatas.
Na ocasião, não houve grande impacto. As mulheres preenchiam as vagas das cotas, mas não tinham candidaturas viáveis. Faltava competitividade, com recursos e investimentos suficientes para garantir a eleição.
Somente em 2018 esse cenário começou a mudar efetivamente, quando uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) garantiu que 30% do fundo partidário fosse destinado às mulheres dos partidos. Outra decisão, do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), destinou 30% dos recursos do fundo eleitoral e do tempo de propaganda eleitoral gratuita às mulheres. O financiamento, segundo Hannah, fez com que as candidatas tivessem chances reais de serem eleitas. “Ele não é suficiente para eleger uma candidata, mas é um recurso extremamente necessário. Em 2020, vimos resultados dessa decisão”, diz.
“Apesar disso, os partidos ainda não a cumprem da forma correta: existem questões como a má regulação dessa regra e a alocação desses recursos em uma única mulher. Mas é um passo muito importante para que consigamos candidaturas femininas viáveis e não apenas para cumprir a cota", explica ela.
Michelle reforça a necessidade de haver mais de uma mulher nos espaços de poder. “Cotas inferiores a esse patamar deixam as mulheres muito isoladas nas casas legislativas e a capacidade de atuação é muito restrita nesses espaços”, afirma. Isso faz com que a mulher se torne alvo mais frequente de violências. Nos países com mais equidade de gênero, esse percentual é de 50%. “México, Argentina e Chile aprovaram legislações que buscam reduzir a sub-representação das mulheres nas esferas políticas. O Brasil ocupa a lanterna desses rankings."
A representatividade das mulheres no parlamento brasileiro ainda está aquém do que se espera, tendo em vista o tamanho do eleitorado feminino brasileiro, que corresponde a 52,5%. Na Câmara dos Deputados, das 513 cadeiras, apenas 77 são ocupadas por mulheres. Já no Senado, somente 12 mulheres foram eleitas para 81 vagas.
O estudo da ONU que põe o Brasil no 140º lugar no ranking de representação feminina entre 193 nações coloca, na América Latina, o país à frente apenas de Belize (169º) e do Haiti (186º). O estudo mostrou que, com apenas duas mulheres em 22 ministérios, o país passou a ocupar a 154ª posição em cargos ministeriais quando comparado às demais nações.
Na medida em que lhes é garantido esse espaço, Michelle afirma que as mulheres abrem caminho para a chegada de outras. “Uma cota baixa de assentos não garante que tenhamos candidatas suficientes para preencher as cadeiras”, diz ela.
Mais do que isso: segundo a pesquisadora, ainda não foi possível aprimorar os efeitos dos instrumentos aprovados nos últimos anos, sobretudo, porque as dificuldades enfrentadas por homens e mulheres que desejam se candidatar a cargos públicos são muito distintas. “As mulheres têm barreiras como a sobrecarga do trabalho doméstico, acessos diferenciados a lugares, são vítimas de múltiplas violências, assédios e ameaças de morte”, afirma. “Mulheres negras têm ainda mais dificuldades nesse percurso.”
Impacto nas cadeiras paulistas
Um exemplo de estado que poderia ver sua representação feminina impactada com a aprovação do Projeto de Lei é São Paulo. Os municípios paulistas já possuem, em média, 16% de mulheres nas Câmaras de Vereadores. Foram eleitas mais de 18% de vereadoras em 104 cidades, o que representa 16% do estado. Em 171 cidades (ou 27% do estado), foram eleitos os 18% de vereadoras.
Outros 369 municípios elegeram menos do que 18%. Entre eles, 102, que concentram 10% da população do estado, não elegeram nenhuma mulher para esses cargos.
As mulheres têm barreiras como a sobrecarga do trabalho doméstico%2C acessos diferenciados a lugares%2C são vítimas de múltiplas violências%2C assédios e ameaças de morte
Segundo o levantamento, a mudança significaria dizer que São Paulo teria um saldo positivo de 380 cadeiras em relação ao ocupado nas últimas eleições. Embora ainda esteja em discussão, a proposta pode desencorajar muitas mulheres a disputar espaços políticos.
"Ninguém vai nos abrir portas. É preciso invadi-las"
A socióloga e doula Camila Aguiar, de 41 anos, decidiu concorrer ao cargo de vereadora em São Paulo no ano passado. Sem apoio suficiente da legenda que escolheu, ela teve de equilibrar campanha, pandemia, trabalho e cuidados com as filhas de 7 e 17 anos. Embora não tenha militado institucionalmente por nenhum partido, Camila diz acompanhar as transformações políticas e exercer sua cidadania desde os 16 anos. “Em 2018, entendi que era o momento de ampliar essa participação como mulher, negra e periférica na disputa da narrativa do campo político e institucional”, diz. “Era importante apresentar uma resposta que partisse desse lugar social que ocupo; de uma mulher comum.”
Para Camila, mesmo com o crescimento da participação das mulheres na política, ainda é preciso discutir representatividade. “Às vezes, se escolhe uma pessoa para dar conta dessa ideia de diversidade, como uma mulher negra, uma indígena, mas elas não recebem apoio suficiente tanto em recursos partidários quanto em repercussão”, afirma. Para que uma mudança estrutural aconteça, segundo ela, seria necessário um processo de conscientização dentro dos partidos. “Não tive lastro, fiz uma campanha sem amadrinhamento ou apadrinhamento em meio a uma pandemia.”
Mesmo sem ter sido eleita, Camila pensa hoje em dividir o conhecimento que adquiriu nos meses de preparação e campanha com outras mulheres que desejem concorrer. “O núcleo da minha campanha era formado por quatro pessoas, amigas de longa data. Não fizemos uma campanha de rua, foi 100% no ambiente das redes sociais – isso mesmo em país sem acesso democrático à internet”, relata a socióloga. Para ela, a corrida por um cargo eletivo não favorece as mulheres, sobretudo, mães. “Queria que mulheres comuns pudessem me olhar e pensar que também poderiam fazer isso, que pensassem que já fazem política em suas casas e sobrevivendo em situações cotidianas de vulnerabilidade.”
Se você não se antecipa%2C você não tem dinheiro para fazer nada. Você precisa brigar no partido pelo valor que quer ter acesso
Durante a campanha, Camila afirma que teve dificuldades para acessar o fundo partidário da legenda a qual estava filiada. “Se eu não tivesse repertório e buscado formações, não teria enfrentado algumas situações”, diz. Um exemplo disso é que o partido de Camila destinou materiais impressos para sua campanha, sendo que ela havia optado por uma campanha online. “Se você não se antecipa, você não tem dinheiro para fazer nada. Você precisa brigar pelo valor que quer ter acesso”, relata. Além disso, a socióloga afirma que de um total de R$ 15 mil destinados à sua campanha, R$ 5 mil só foram liberados dois dias antes do pleito. “Não tive tempo hábil para usar.”
Para ampliar sua formação política, Camila participou do projeto A Tenda, destinado à capacitação política de mulheres. “Hoje eu recomendo que as mulheres estudem a respeito, saibam como reconhecer uma candidatura laranja, tenham formação em Direitos Humanos, conheçam legislação eleitoral e entendam o que é diversidade para além de um discurso vazio”, afirma. “Acredito que faz toda a diferença quando alguém compartilha com outras mulheres o caminho porque ninguém vai nos abrir portas. É preciso que a gente as invada.”